(Drummond, por Drummond)
Carlos Drummond de Andrade utilizou em vários poemas um
dos variados efeitos de “distanciamento” que seu contemporâneo Bertolt Brecht
preconizava no teatro. No caso, consiste em projetar uma situação humana
qualquer num ambiente exótico e distante, muito afastado da realidade imediata
do público, para que este não se distraia na comparação de detalhes, na busca
de verossimilhanças superficiais.
Para que a fábula se revele e se imponha com seu conteúdo
cru de fábula.
Brecht fez críticas ferozes à Alemanha de seu tempo
ambientando peças na China, em Nova York, ou em cidades imaginárias. Fazendo
isso, ele dilui toda a “cor local” que tantas vezes interfere em nossa leitura
de um livro ou um filme.
Drummond fala, em seu primeiro livro, do Czar búlgaro que
caçava borboletas, fala de variados ambientes de capa-e-espada em “Balada do
Amor Através das Idades” – e comenta com certa ironia a vida deste reizinho do
Sião, que morreu porque não conseguiu fazer um filho homem.
Ele diz:
Pobre rei de Sião que morreu de desgosto
por não ter um filho varão.
Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,
pequenino, bonito, decorativo,
que morreu especialmente para nos comover.
Há um tom de simpatia, de paternalismo, mas ao mesmo
tempo um leve escárnio, como se fosse fácil, ou mesmo obrigatório, mangar dessa
masculinidade incompleta. O que talvez fosse uma preocupação do próprio
Drummond, que dois anos antes do livro tinha sido pai de Maria Julieta, a única
filha que teve. Seria uma prefiguração do seu próprio destino? Drummond viria a
escrever depois: “O filho que não fiz / hoje seria homem.” Um poema melancólico
e resignado (“Ser”, Claro Enigma,
1948-1951).
O filho que desejava, a Ásia não deu,
e seu desejo de um filho era maior que a
Ásia.
Pobre rei de Sião que Camões não cantou.
Por que Camões? Por causa do nome “Sião”, que no poema de Drummond se
aplica ao país hoje conhecido como Tailândia, mas que Camões usou como sinônimo
de “Zion”, ou Israel:
Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m'achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
(Camões,
“Redondilhas”, 1595)
É o pranto dos israelitas escravizados na Babilônia e lembrando com
ardor da pátria perdida, conforme está no livro dos Salmos. Literariamente os “rios da Babilônia” se consagraram como
um local de lamentações de um paraíso-terrestre perdido, das canções de exílio
de um povo escorraçado. Chegou até à ficção científica, num conto clássico de
mundo pós-nuclear, “By the Waters of Babylon” (Stephen Vincent Benet, 1937).
Mas o Sião que compete ao poeta mineiro é o Sião tailandês, é o dele,
não o de Camões. E o dele nada tem a ver com a pátria destruída, e sim com um
reino exótico do Oriente, que por vias transversas acaba cutucando na memória
do poeta a lembrança do Rei Salomão e seu harém de concubinas:
Amou três mulheres em vez de dez mil
e nenhuma lhe deu um filho varão.
De sua costela real nasceu uma pequenina
siamesa.
Ao vê-la, o rei caiu para trás como um
europeu,
adoeceu, bebeu um veneno terrível e morreu.
Creio que “veneno terrível” é melodrama inventado pelo
poeta, mas o resto é verdadeiro. O rei a que ele se refere é o rei Vajiravudh
(1891-1925), que governou sob o nome de Rama VI. O jovem rei passou em branco
ao longo de três casamentos, e acabou sendo pai de uma filhinha, a princesa
Bejaratana. Ela nasceu em 24 de novembro de 1925, e ele morreu no dia 26, aos
44 anos.
Vajiravudh, educado em Oxford, foi um “rei intelectual”.
Seus opositores o acusavam de “ocidentalismo” e de dedicar muito tempo à
leitura dos clássicos e pouco à administração do reino – o que parece ser uma
injustiça, dada a longa lista de modernizações que promoveu no país. Era uma
espécie de D. Pedro II: fundou a primeira universidade do Sião, escreveu
poemas, peças de teatro e romances. Traduziu Shakespeare e Agatha Christie, e
ajudou a introduzir a literatura de detetive na Tailândia, tendo inclusive
criado um personagem inspirado em Hercule Poirot, o detetive Nai-Thong-In.
Mesmo um currículo tão simpático parece não ter sido
suficiente para reduzir a crueldade com que Drummond descreve seus últimos
dias:
Seu coração enegreceu de repente,
o corpo ficou todo fofo.
Depois queimaram o corpo fofo e o coração
preto numa fogueira esplêndida
e a alma do rei de Sião fugiu entre os
canais.
Pobre reizinho de Sião.
É uma mistura de piedade e desdém. Ou, quem sabe, o
problema sou eu, com minha leitura de quase um século depois, mexendo nas
coisas. Literatura é um fenômeno quântico: cada vez que a gente examina a mesma
operação, dá um resultado diferente. Poesia, então, nem se fala.
Vajiravudh (que era neto do Rei do Sião retratado no
musical hollywoodiano O Rei e Eu, com
Yul Brynner e Deborah Kerr) é um personagem que merecia uma elegia melhor. Um
monarca do tipo “ponto fora da curva”. Ameaçado de assassinato em 1912 numa
tentativa de golpe de vários oficiais do exército, perdoou os golpistas,
dizendo que estavam lutando pelo bem do país. Em sua obra literária defendia o
antigo código de honra da cavalaria: “Minha alma é de Deus, minha vida é do
Rei, meu coração é das damas, minha honra é minha.”