Na sequência inicial do romance O Vale do Medo (que li como O
Vale do Terror, numa tradução
atribuída a Álvaro Pinto de Aguiar), Sherlock Holmes exibe a Watson uma
mensagem criptografada que recebeu de um trânsfuga da quadrilha do Professor
Moriarty. O sujeito chama-se Porlock e está tentando repassar uma mensagem a
Holmes antes que o Professor desconfie da traição.
Holmes executa aqueles saltos acrobáticos de raciocínio
que arrebatam tanto Watson quanto o leitor, mas que dependem sempre de uma
suposição ousada do detetive que, ao ser confirmada, vejam só, era exatamente o
que ele precisava para que desse tudo certo. Conan Doyle era engenhoso, mas não
tão engenhoso quanto seus sucessores no gênero. Era escritor também de romances
de aventuras, e Holmes era teatral e prestidigitador também, porque não dava
para ser cerebralmente dedutivo todas as vezes.
Holmes mostra a Watson os números rabiscados numa tira de
papel que ele extrai de um envelope. Referem-se a páginas e a palavras, diz
ele; e rapidamente chegam a um Almanaque onde basta seguir uma numeração
indicando página, palavra, coluna, etc. Copiando palavra por palavra, eles
reconstituem o recado. ( O seriado de TV Sherlock,
com Benedict Cumberbatch no papel título, usou esse código no episódio The Blind Banker, 2010.)
A certa altura da mensagem aparecem ao invés de números
palavras, dois nomes próprios, um deles repetido. “Eram palavras que não seria
possível encontrar no almanaque utilizado, e ele precisou escrevê-las” diz
Holmes. Talvez esse pequeno deslize criptográfico tenha ajudado a desencadear a
violenta história que envolvia o passado nebuloso de um tal Sr. Douglas, o
senhor da mansão Birlstone.
Salta para 2016. Cory Doctorow (do saite BoingBoing) comentou, numa entrevista,
o fato recente de que quando Edward Snowden foi entrevistado num local secreto pela
jornalista Laura Poitras, foi registrada uma imagem de um livro de Doctorow, Homeland, entre o pertences pessoais de
Snowden. O escritor disse que o livro foi entregue a Snowden pela própria
jornalista. O objetivo dos dois era usar um livro para se comunicar com códigos
numéricos desse tipo (livro tal, página tal, linha tal, palavra tal), onde é
preciso saber que chave (que livro) está sendo utilizada. E como a conversa iria envolver termos técnicos com certa frequência, precisavam de um livro
onde essas palavras pudessem ser encontradas facilmente.
Como organizar um código assim, e ser mais esperto do que
Sherlock Holmes em pessoa? Duas cópias idênticas de um mesmo livro garantiriam
exatidão absoluta. Dá pra tecer muitas variações dramatúrgicas. É possível ter
dois livros que pareçam idênticos mas não o sejam; ou o contrário. É possível também que sejam muito diferentes
um do outro (duas antologias de poemas, p. ex.) mas coincidam num número
mediano de páginas que são gêmeas, e é lá que se faz o código. Alguns romances recentes
usaram variações disto. O Clube Dumas,
de Arturo Pérez-Reverte, tem uma subtrama de código envolvendo ilustrações de livros
raros.
O código mais bem sucedido de Conan Doyle, no entanto, tinha
sido alcançado em 1903 com “The dancing men”, o conto com as famosas fileiras
de bonequinhos em diferentes posições, rabiscados a giz, formando um código
cujo arrazoado de decifração vai na mesma linha de O Escaravelho de Ouro (1843) de Edgar Allan Poe, o mestre que ele
reverenciava. O criptograma de Poe
consistia em letras, números e sinais gráficos comuns. O conto de Doyle ganhou
uma marca visual muito forte com o uso dos bonequinhos. E é um dos melhores de todo o cânone.
Não sei até que ponto era familiar a Conan Doyle o conto
do seu rival francês Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin, porque em 1911
Lupin decifrava “O enigma dos raios solares” (Les jeux du soleil), contando
quantas vezes, sucessivamente, um reflexo do sol era projetado de uma janela.
Depois de anotada a lista de números, havia um pequeno anticlímax quando Arsène
Lupin indicava ao narrador que considerasse 1=A, 2=B, 3=C e assim por diante.
As “histórias de códigos e de cifras” são um nicho
específico da literatura detetivesca, mas são também uma espécie de gênero
transversal, que pode estar presente em diferentes gêneros: espionagem, guerra,
policial, aventura, terror. É qualquer história onde haja um código a ser
decifrado por algum personagem, às vezes em conjunto com o leitor.
Voltando à The
Valley of Fear, um romance de 1915, a lista de números anotada pelo delator
Porlock para Holmes até que podia chamar a atenção e a desconfiança de alguém.
Códigos mais sutis são disfarçados em ações anódinas. Um especialista nisto é
Rand, um agente do serviço secreto que nos contos de Edward D. Hoch consegue
ser mais esperto do que os espiões mais escorregadios. A mensagem subjacente a
todos os contos envolvendo Rand é que qualquer série ordenada (e fielmente
memorizada por pelo menos duas pessoas) pode servir de encriptação para as
letras e os números que usamos para comunicar informações.
Robert Heinlein tem um conto onde aparecem dois presos
numa cela. Estão sendo vigiados, em som e áudio, dia e noite, mas o preso mais
antigo tinha consigo um baralho. O alfabeto inglês tem 26 letras. Um baralho
tem 52 cartas. Valendo-se dessa coincidência, os dois atribuem valores, fingem jogar
paciência e trocam mensagens de texto um com o outro, mesmo submetidos a um
cerrado Big Brother orwelliano 24 horas por dia.
O Rand de E. D. Hoch é um macaco velho do Serviço
Secreto, aquele cara que já viu tudo, mas cada história lhe revela uma
novidade. Há um conto em que uma moça do escritório, agente dupla, está vazando
informações preciosas para o inimigo. Rand manda examinar tudo dela, em casa,
no trabalho, nada encontra. Segue-a pela cidade, por todos os bares que a moça
frequenta. Ela conversa, bebe, fuma, ri, diverte-se inocentemente e Rand, a
três mesas dali, vigia, vigia, e nada percebe. Até que pensa um dia: “Ela fuma
o tempo todo.” A moça soprava fumaça
para a esquerda, para o alto, em jatos longos, em pequenas explosões de
fumaça... “O outro cara a seguia de longe, mas podia vê-la sempre, e ela ficava
mandando sinais de fumaça”, diz Rand, fechando a pasta do caso.
Há um código especial muito explorado por Ellery Queen: a
vítima, depois de ser ferida ou alvejada, e depois do criminoso ter ido embora,
ainda tem forças para um último gesto para denunciar quem a matou. Precisa ser
algo que indique de maneira clara “Fulano”. Mas não pode ser algo como um nome
escrito na areia, porque se Fulano voltar vai apagá-lo depressa. Tem que ser um
gesto denunciando o criminoso, mas um gesto que o próprio criminoso não
entendesse, nem a polícia. Quem acaba entendendo é Ellery Queen, numa série de
deduções miraculosas.