sexta-feira, 3 de maio de 2024

5058) A série "Ripley" (3.5.2024)



 
O que nos faz torcer pelo criminoso, em tantos romances e tantos filmes? Em tese, nosso anjo-da-guarda politicamente correto nos deveria obrigar a torcer contra ele, acompanhar seus crimes mas querer vê-lo sendo levado à delegacia, à masmorra ou à cadeira elétrica. E no entanto há tantas histórias de crime em que a narrativa acompanha as peripécias do assassino e de repente estamos nervosos, torcendo as mãos, ansiosos para que ele escape. 
 
Deve ser uma versão contemporânea do mandamento de Santo Agostinho: “Odiar o pecado, mas amar o pecador”. 
 
Raymond Chandler tinha uma palavra arguta sobre esta questão, mesmo encarando-a do ponto de vista reverso: “Por que ficamos nervosos quando a protagonista corre perigo, se já sabemos que ela não vai morrer?”.  Diz ele, nos “Adendos” de “Doze Anotações Sobre a Narrativa de Mistério” (texto incluído em A Dama do Lago, Ed. Alfaguara, 2014, trad. BT): 
 
Como já foi sugerido acima, todas as ficções dependem do suspense, seja de que modo for. Mas o estudo da mecânica desse tipo extremo chamado menace, ameaça, perigo, revela a curiosa dualidade psicológica na mente do leitor ou de uma platéia mediante a qual, por um lado, é possível estar aterrorizado pelo que pode haver do outro lado da porta e ao mesmo tempo saber que a heroína ou a protagonista não vai ser morta, visto que é a heroína ou a protagonista. Se uma personagem interpretada por Claudette Colbert está passando um espantoso perigo, temos certeza absoluta de que Miss Colbert não vai se machucar pela simples razão de que é Miss Colbert.  Como é possível, então que a mente da platéia tenha medo real da ameaça, sabendo destes fatos notórios?  
 
Entre as muitas respostas possíveis, eu proponho duas. Nossas reações ao som e às imagens visuais, ou a sua evocação por descrições verbais, independe da nossa razão. O elemento primitivo do medo nunca está distante da superfície dos nossos pensamentos; qualquer coisa que conseguir desencadeá-lo pode suplantar temporariamente a razão.  Daí que os filmes de menace concentram seu apelo sobre essa emoção tão antiga e tão irracional.  Poucos homens estão livres de sua influência.  
 
A outra resposta que sugiro é que em qualquer espécie de projeção, seja ela literária ou de outro tipo, a parte é maior do que o todo. A cena que está diante dos olhos domina o pensamento da audiência; o indivíduo normal não faz nenhuma tentativa de conciliar isto com outros aspectos da história.  Ele é arrastado pelo que acontece naquela cena. Quando você termina de ler o livro, ele pode, mas não necessariamente, ser focalizado como um todo e ser lembrado pelos seus méritos quando visto assim; mas no momento da leitura, o capítulo é o fator dominante. A visão da imaginação emotiva é muito curta mas também muito intensa. 


 
Esta é uma das razões que nos levam a torcer por Tom Ripley, o assassino criado por Patricia Highsmith, resgatado agora numa ótima série da Netflix, em oito episódios. O diretor e roteirista Steven Zaillian, tem um respeitável currículo de roteiros: A Lista de Schindler (de Steven Spielberg), Tempo de Despertar (Penny Marshall), Gangs de Nova York  e O Irlandês (Martin Scorsese), Millenium – Os Homens que não Amavam as Mulheres (David Fincher), etc.
 
Esta parece ser a quarta adaptação deste romance; Ripley já foi vivido na tela por Alain Delon, Matt Damon e John Malkovich. Procurarei não dar grandes spoilers: é a história de como Tom Ripley, um jovem novaiorquino na pindaíba, é mandado para a Itália com a missão de trazer de volta à família um jovem playboy rico. Ele se deslumbra com a boa-vida do outro, e começa a urdir o plano de matá-lo e assumir sua identidade. 



Ripley deveria ser assistido pela maioria das pessoas que fazem filmes de crime e violência. Ele tem violência – os assassinatos são cometidos de forma brusca, fria, sem gritaria, sem espalhafato. Essa secura ressalta mais a violência do ato homicida do que os crimes cinematográficos que a gente vê por aí, cheios de acrobacias, close-ups de corpo humano sendo explodido / baleado / esfaqueado / etc., sangue em abundância, gritos, imprecações... Em Ripley, basta menos de um minuto para matar uma pessoa. E as consequências da violência vêm depois: a odisséia, ou a via-crucis, do assassino para se livrar do corpo e das provas. 
 
Quanto ao suspense, ele nasce da nossa intimidade psicológica com o assassino, mesmo sendo ele a máscara impassível que Andrew Scott (“Ripley”) cria com perfeição. O roteiro usa (isto vem do romance, claro) o efeito da “onisciência do espectador” – nós sabemos algo que os personagens não sabem (que uma pessoa está se fazendo passar por outra). E o suspense, em circunstâncias assim, nasce da nossa capacidade de prever ou de temer catástrofes que podem acontecer de um momento para outro, em função de algum detalhe insignificante. 


 
A ambientação “noir”, através da fotografia em preto e branco, traz à mente, nas cenas noturnas, filmes clássicos como O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed ou O Processo (1962) de Orson Welles. É o lado metafísico do noite, a onipresença da ameaça, da incerteza, do mistério e do perigo. O episódio 1 sugere as conotações sociais do cinema “noir” norte-americano, que surgiu com a sensação de fim-do-mundo da Grande Depressão. Ambientada em 1961, a narrativa explora esses homens comuns levados ao crime pela sobrevivência, pela ambição ou por uma fatalidade a que eles se entregam sem questionar. 
 
O filme, porém, tem também outro lado: o branco intenso das casas caiadas, a luz cegante do Mediterrâneo, americanos moderninhos e endinheirados cruzando aqueles enclaves de arquitetura anacrônica, com suas escadas escherianas e intermináveis. 




Ripley é mais uma volta da espiral romanesca em torno de parelhas de elementos sempre em atração mútua e sempre em conflito: Estados Unidos e Europa, por exemplo, em que o chamado Velho Continente vê-se alegremente invadido por turistas ianques cheios de dólares, e reduzido a uma espécie de parque temático da Cultura Universal. 
 
Outra parelha de elementos em conflito é “Arte vs. Crime”, que o roteiro (ou terá sido o romance?) fixa na figura de Caravaggio, o pintor genial que era também assassino. Dickie (Johnny Flynn) explica a história dele para Ripley, ganhando para sempre a admiração deste para com a obra do italiano. Se Thomas de Quincey se atrevia a considerar o assassinato como uma das Belas Artes, não é impossível que na mente silenciosa de Ripley já circulassem, a partir daqueles dias, noções de que ele tinha mais condições de ser um artista do crime do que Dickie de ser um artista da pintura. 




O crime neste filme é mais cruel por ser a vítima uma pessoa mais inofensiva e mais simpática do que a vítima de O Sol por Testemunha. O playboy vivido por Maurice Ronet trata Alain Delon de maneira humilhante e meio sádica de vez em quando. 
 
Há um subgênero do romance policial que nunca foi formalmente definido pelos críticos, mas que eu classificaria como O Crime Que Não Dá Certo. São aquelas histórias em que uma pessoa comete um crime (geralmente um assassinato) sem planejar direito, e daí em diante tem que fazer mil malabarismos para livrar-se do cadáver, destruir pistas, improvisar um álibi, explicar mil pequenos detalhes em que não havia pensado... 
 
Os crimes desse tipo não precisam necessariamente ser impulsivos, não-planejados – há uma variante que consiste em vermos um crime ser minuciosamente planejado com antecedência, e depois vamos acompanhar sua execução; neste caso, em geral é um roubo de cofre, assalto a banco, etc. E quando aquilo começa a acontecer de verdade nós, que sabemos como é o plano, somos capazes de perceber o que não está funcionando direito, as interferências que surgem de surpresa, e por aí vai. 
 
Em Ripley, os crimes não chegam a ser planejados em detalhe, e sua execução se dá simplesmente porque se Ripley não matasse a vítima ali, todos os seus planos de boa-vida financeira desabariam. O crime acaba sendo mal feito, improvisado, desajeitado, cheio de buracos e contradições, espalhando pistas pelo caminho... 
 
Ficamos torcendo pela teimosia obcecada de Ripley, um homem que revela pouco, e que a câmera perscruta o tempo inteiro, como se quisesse extrair a fórceps as suas intenções e os seus raciocínios. Quando ele está pensativo e de repente dá um pulo da cadeira, o filme dá um pulo junto com ele, porque sabemos que ele teve uma idéia ou lembrou de um detalhe de-vida-ou-morte. 



(Johnny Flynn, como “Dickie”, e Dakota Fanning, como “Marge”)

 
O elenco é ótimo. Se há uma coisa que me icomoda na maioria das séries em streaming é o que o pessoal chama de “overacting”, o excesso de interpretação por parte dos atores: olhos arregalados, gestos enfáticos com as mãos, arquejos, sobressaltos. O elenco da série se encaixa no papel de cada personagem: “Dickie” é descontraído, meio blasé, meio mimado, no fundo um playboy que não é totalmente bobo, sabe que não tem nada de artista, mas resolve aproveitar a vida e, afinal, nem todo mundo pode ser um Caravaggio, certo? 



(Elliot Sumner, como “Freddie”)

A namorada Marge (Dakota Fanning) é uma pequena esfinge retraída e desconfiada, ou talvez seja assim a partir do momento em que Tom Ripley entra na vida do casal. Ela olha tudo, com olhos amplos que não perdem um detalhe, e não comenta nada. Muito parecida é a intensidade de Elliot Sumner (Freddie), uma figura andrógina e perigosa capaz de desestabilizar mesmo a frieza de Ripley. Algo parecido pode-se dizer do ótimo Maurizio Lombardi que faz o inspetor de polícia: seus diálogos com Ripley e com Marge são verdadeiras sessões de pôquer em que cada um olha o outro, olha as cartas na mão, e continua impassível, sem mexer um músculo.



(Mauricio Lombardi, “Inspetor Ravini”)
 
Todo bom roteiro dá material-de-atenção para a câmera e para o elenco. Aqui, há a presença muda de objetos que parecem não dizer nada e dizem muito. As incontáveis estátuas de anjinhos barrocos e de tragédias em mármore. Os labirintos das ruelas medievais, onde nunca se sabe o que vai se ver daqui a dez metros. A caneta, o anel, a máquina de escrever. O gato. A echarpe. O roupão bordô. O cinzeiro de vidro. 


 
(Andrew Scott, “Tom Ripley”)