Uma coincidência pode ser vista como uma rima. A repetição de algo para criar uma harmonia. Isto, no entanto, nos obrigaria a postular a existência de uma intenção por trás do mundo, a presença de uma Inteligência Superior planejando e executando essas rimas.
Se não
existe essa tal Inteligência Superior (e esta é minha hipótese-de-trabalho até
hoje) então as coincidências são efeitos indesejáveis, são defeitos. Como a
repetição de um som numa frase em prosa, tornando-a desgraciosa. (E levando as
pessoas pouco inteligentes a fazer aquele mais idiota dos comentários: “Ih,
rimou!”).
Se existe
aquilo que Rômulo Azevedo chama de O Roteirista do Mundo, ele de vez em quando
fica meio preguiçoso (como todo roteirista, aliás) e ao invés de procurar
variar o repertório fica repetindo uma coisa que acabou de escrever, por mera
preguiça.
Você vai
andando na rua e vê uma loja chamada Armarinho Nossa Senhora de Fátima. Esquece
logo. Aí, cinco minutos depois, compra um jornal naquela mesma rua, abre, e vê
uma notícia sobre o turismo no santuário de Fátima, em Portugal.
É uma
informação tão anódina, com um nome tão comum em nossa cultura, que a gente só
percebe por causa da proximidade. Se fosse meia hora depois, talvez a gente nem
se tocasse que tinha visto a mesma palavra duas vezes num só dia.
Isso
acontece muito durante leituras que trazem uma grande carga de informação
(muitos nomes, muitos fatos, etc.) e sobre um assunto que nos interessa, ou
seja, que marca de maneira mais funda essas informações em nossa memória
imediata – e a deixam mais atenta para possíveis repetições desse nome, que se
não fosse assim passariam despercebidas.
Ontem à
noite eu estava lendo Eyes Wide Open,
livro de Frederic Raphael onde ele conta como escreveu com Stanley Kubrick o
roteiro do filme Eyes Wide Shut (“De
olhos bem fechados”), com Tom Cruise e Nicole Kidman.
No filme
tem a cena em que Cruise entra de penetra numa orgia de milionários porque fica
sabendo por acaso a palavra-senha de entrada. Na novela original de Arthur
Schnitzler (Traumnovelle, “Uma novela
de sonho”), essa palavra é “Dinamarca”.
E
Frederic Raphael relata um diálogo com Kubrick em que ele aponta isto como uma
intencionalidade do autor (ou um deslize freudiano), porque a esposa do
personagem do livro tinha confessado ao marido um episódio de quase adultério
com um militar da Dinamarca.
No livro,
essa senha foi mudada por Kubrick/Raphael para “Fidelio”, e eu pensei que foi
sem dúvida como alusão à infidelidade conjugal.
Isso foi
ontem. E hoje de manhã eu peguei um livro de Philip K. Dick e cheguei a um
trecho onde ele se refere a pessoas que “fingiam ter desprezo por televisão e
por qualquer coisa que aparecesse na telinha, desde números de palhaços até a
Ópera de Viena apresentando o Fidelio
de Beethoven.”
Coincidência?
Sim, porque não me lembro de ter ouvido falar nessa ópera (ou nessa palavra,
simplesmente) nos últimos seis meses, pelo menos, e agora vêm duas referências
em poucas horas, em dois livros totalmente não-relacionados entre si.
É pouco?
Tem mais. Na mesma leitura do livro de
Raphael, ontem à noite, li o trecho onde ele comenta que Kubrick, ao convidá-lo
para escrever o roteiro, exigiu segredo absoluto, pois não queria que ninguém
soubesse que ele estava adaptando o livro de Schnitzler, projeto pessoal que há
alguns anos já tinha vazado para a imprensa.
Raphael
diz que obedeceu, mas não podia evitar comentários de outras pessoas.
Conversando com um amigo seu, chamado Stanley Baron, o amigo perguntou em que
projeto ele estava trabalhando no momento. Raphael limitou-se a dizer que era
uma história ambientada em Viena. E Baron perguntou: “Será Uma novela de sonho, de Schnitzler?”.
Ele diz
que a única outra pessoa que adivinhou a natureza do projeto foi o diretor
Stanley Donen (para quem Raphael escrevera o roteiro de Two For the Road), quando soube que Raphael estava trabalhando para
Kubrick. Ele sugeriu essa possibilidade porque já sabia há muitos anos – antes
mesmo dos dois se conhecerem – que Kubrick tinha interesse por aquele livro.
E Raphael
diz:
E assim aconteceu que as
únicas pessoas (além da minha esposa Sylvia) que sabiam o segredo também se
chamavam Stanley.
Essa
repetição de nomes próprios já dá uma boa coincidência, não é mesmo?
Acontece
que justamente nesse trecho eu larguei o livro de F. Raphael e peguei, de uma
pilha que tinha ao lado, uma coisa completamente não-relacionada para ler. (Eu
costumo fazer isso, ler meia hora de cada livro e sair pulando por assuntos
completamente diferentes.)
Peguei um
volume de contos de Vladimir Nabokov para prosseguir na leitura do conto “The
Vane Sisters”, um conto meio fantástico. E a certa altura o narrador do conto
relata uma discussão que tem com uma amiga por ter esnobado um conhecido dela,
chamado Corcoran, durante uma festa.
Diz
Nabokov:
(Ela me disse) que
Corcoran tinha salvo de afogamento, em dois oceanos diferentes, dois homens
diferentes, que por uma irrelevante coincidência também se chamavam Corcoran.
Ou seja,
meia hora depois de ler sobre a coincidência dos três Stanleys, leio em outro
livro a coincidência sobre os três Corcorans.
Não, não
existe O Roteirista do Mundo: o que existe talvez é O Cordelista do Mundo, e
ele repete os efeitos de 3 em 3, como quem está rimando uma sextilha.