sexta-feira, 12 de julho de 2024

5081) Biliu de Campina, 1949-2024 (12.7.2024)




Não vou seguir sem deixar aqui umas linhas sobre meu amigo Biliu de Campina, que dias atrás bateu-o-31, para usar uma expressão bem de Campina Grande, da cidade que era a cara dele, a cidade onde nasceu. E onde escolheu viver: por afeto, destino, missão, comodidade e esperteza. 
 
Não imagino Biliu morando em outra cidade senão a “Rainha da Borborema”. Mesmo que alguma loteria improvável o transformasse em milionário, ele nunca iria morar numa ilha do Caribe. O mais provável é que montasse um cabaré chamado “Rosa de Acapulco” e fosse morar nos fundos. 
 
Digo um cabaré, mas não pensem que estou fazendo apologia do lenocínio. Longe disso. É que a palavra cabaré me evoca música, antes de qualquer outra coisa. Cabaré é um lugar onde se vai para ouvir música ao vivo, conversar, dançar, aproveitar a vida. Suave é a noite, enquanto se tem no mesmo recinto Jaime Seixas ao piano, Apolo na bateria, um crooner de voz encorpada arrastando um bolero pelos cabelos, e a cerveja é gelada, e a felicidade é uma arma quente. 
 
Esse ambiente de música pela música, sem gêneros, sem fronteiras, une os músicos da noite, aproximando as pontas extremas do ofício, o profissionalismo e a boemia. Biliu celebrizou-se como forrozeiro e defensor do forró, mas seu conhecimento e sua vivência musical puxavam raízes genéticas desde as antigas jazz-bands da Campina de cem anos atrás, dos blocos de carnaval, das orquestras que tocavam nas tertúlias dos clubes aristocráticos. (Campina só tem um, o Campinense; e basta.) 
 
Viramos amigos aos vinte e poucos anos, porque eu já era amigo de seu irmão João Xavier, o famoso Lanka que fabricava os melhores pandeiros do Nordeste. (Uma voz moleca me atanaza: “Do Brasil! Diz que é do Brasil!...”.  Não precisa.) 
 
Lanka era mais velho do que a gente e era uma espécie de líder informal de um grupo de boêmios, e aí talvez não valha a palavra “líder”, e sim “puxador de cordão”. Todos os fins de semana, os “Originais do Samba” se encontravam a partir da sexta à noite ou sábado de manhã, na casa de alguém. Eram quatro, cinco, seis carros cheios de gente: homem, mulher, menino, todos convergindo para um terraço ou um fundo de quintal, cada qual trazendo seu violão, seu cavaquinho, sua tumbadora, seu afruchê, seu pandeiro, sua flauta, sua sanfona. 




Falei, um pouco acima, dos músicos profissionais que tocavam nos cabarés (todos eles exímios instrumentistas).  Sua contrapartida amadora eram esses agrupamentos informais, que não viviam da música: um era gráfico, outro trabalhava em oficina, este era bancário, o outro pequeno comerciante, três ou quatro eram estudantes, tinha Fulano radialista, tinha Sicrano de ocupações incertas e não-sabidas. 
 
Falei nos estudantes, não foi? Pois é, nesse tempo Biliu estava fazendo o curso de Direito (em que se formou), Elba Ramalho estudava Economia e eu Ciências Sociais, na UFPB; Tadeu Mathias, que era talvez o mais novo e uma espécie de mascote da turma, devia estar no segundo grau.  O importante é que todos tinham outra ocupação, nenhum deles vivia da música: viviam para a música. 
 
Era a Batucada de Lanka, o nome informal que a cidade conhecia. Mal saía o elepê com os sambas-enredos do Carnaval carioca do ano seguinte, e todo mundo já comprava e esses sambas viravam a trilha sonora obrigatória de todos os fins de semana. Cantava-se de tudo, de Moreira da Silva a Ataulfo Alves, da MPB de Chico-Caetano-Gil até os forrós de Jackson e Gonzagão.   
 
Isso era nos anos 1970, e muita água ainda iria chover no Açude Velho antes que Biliu gravasse seu primeiro disco, entrasse no circuito profissional de rádio, palco e estúdio, e adotasse o cognome “Biliu de Campina”, com que se celebrizou fora do circuito Praça da Bandeira / Parque do Povo / Calçadão. Compondo suas canções irreverentes, cantando Rosil Cavalcanti, Zito Borborema, Manezinho Silva, Jacinto Silva, Geraldo Correia, Gordurinha, João Gonçalves...   
 
Uma coisa curiosa nos tempos de hoje é o modo como a música – o ato de cantar e tocar instrumentos – se confunde, na cabeça das pessoas, com a profissão de músico. Como se o objetivo de toda pessoa que gosta de tocar e cantar fosse virar cantor profissional. Pode ser um sintoma da monetização geral da vida, da existência. Tudo que fazemos pode se tornar fonte de renda, pode se tornar uma profissão, pode se tornar um bilhete informal na grande loteria da fama e da fortuna. 
 
A música (e não só ela) já foi um fim em si, está virando cada vez mais um artifício para ganhar dinheiro. (Não sou contra isto – sou compositor profissional e já ganhei a vida com música, em diferentes fases da minha vida.) Mas vai ser um profissional muito insosso e muito desbotado aquele que só vê na música o ganho. O profissional que liga mais para o borderô do que para o repertório. O cara que não reconhece uma clave de sol mas sabe muito bem o que quer dizer um cifrão. 
 
Toda profissão que mexe com as artes precisa ter essa consciência de que se trabalha para o público, para as platéias, para as pessoas em geral, e se trabalha tanto de forma amadora quanto de forma profissional. Um indivíduo pode ser enfermeiro profissional e músico amador, pode ser um engenheiro / motorista / médico / jornalista / advogado / contabilista / alfaiate / lavrador de profissão... e músico amador. 
 
Essas pessoas criam uma espécie de Música Invisível Brasileira, que não é captada pelas pesquisas nem monetizada pelo mercado. É a música que está fora dos estúdios e dos palcos, mas que está viva no cotidiano de gente rica, gente pobre, gente média, independente de idade ou cor ou classe social. A música que é feita e fruída pelo simples prazer de fazer música, de participar delas, de se deixar levar pela correnteza das melodias e dos ritmos. Música é isso. O resto é consequência. 



 
Não importa que tipo de música. Rock de garagem. Samba de fundo de quintal. Quarteto de câmara na sala de um apartamento. Piano de happy-hour em uisqueria. Hip-hop em palco de festa. Seresta de tiozões num restaurante à beira-mar. Canto gregoriano de mosteiro. Forró de latada. Chacundun de churrascaria. Bolero de cabaré. 
 
Surgem grandes talentos no meio dessa música invisível, e muitos deles tornam-se nomes conhecidos no país inteiro, saem na revista, aparecem na TV, viram atratores nas redes sociais. Nada contra. O erro é quando pensamos que este é o objetivo principal de fazer música: ser “um dos melhores” e ganhar muito dinheiro. Não é. O objetivo da música é colorir a vida e destilar as emoções.  É educar nosso espírito, transmitir um senso de harmonia, de proporção, de estrutura, a capacidade de reconhecer coisas complexas quando traduzidas em estímulos sensoriais. E, por cima disto, ensinar a telepatia da criação coletiva, em que mentes diferentes e corpos diferentes deixam-se levar em uníssono por uma melodia, um ritmo, e nesse momento deixa de haver separação entre a mente e o corpo, entre o indivíduo e o grupo. Torna-se tudo uma coisa só. 
 
A Música Fonográfica é apenas o cocoruto desse imenso iceberg. A que é visível, o que sai na imprensa, o que tem fã-clubes e seguidores de redes sociais. A que movimenta dinheiro, e portanto interessa a todos os grupos que lucram alguma coisa quando dinheiro é movimentado. Todos nós precisamos de dinheiro, e assim como é legítimo um barbeiro tocar violão também é legítimo ele querer largar a barbearia e ganhar a vida com o violão dele. Não se pode legislar escolhas-de-vida pessoais. 


 
E assim voltamos ao meu velho Biliu de Campina, ranzinza, popeiro, rival de Seu Lunga, irreverente, trocadilhista, língua ferina, falava mal de todo mundo e nunca fez o mal a ninguém. Biliu do pavio curto e da conversa comprida, Biliu do ouvido afiado, que pegava tom ouvindo buzina de carro e “plin” de celular. Que passou mais de quarenta anos de vida impedindo que a Paraíba se esquecesse de Jackson do Pandeiro. Que pirateava os próprios discos quando o disco estava vendendo pouco. 
 
Que defendia os artistas da terra, “porque os de Marte ou de Saturno não precisam de defesa”. Que implicava com a expressão “forró pé de serra”, porque no alto da Serra o forró é melhor ainda. Que cantava no Parque do Povo, depois de um show alheio que puxou 20 mil pessoas, e ele entrava no palco e cantava duas horas de coco sem parar, para 300 pirangueiros embaixo de chuva, que berravam palavrões com ele e ele dava a resposta no mesmo tom. 
 
Chamo a isso de Música Invisível Brasileira porque, no curioso mundo de fantasia eletrônica em que existimos hoje, a gente só vê o que é feito de pixels eletrônicos (seja num celular, numa TV ou num computador), e não enxerga o que é feito de carne e osso.