quarta-feira, 15 de junho de 2022

4833) Primeiras Estórias: "Luas de Mel" (15.6.2022)



O décimo-quinto conto das Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa é uma celebração discreta ao tema do “Make Love, Not War”.
 
Joaquim Norberto é um fazendeiro idoso, ao que tudo indica um ex-jagunço, aposentado das valentias, acomodado no ramerrão da boa vida de comer e fazer a digestão na rede. Ele diz ter tido uma mocidade de “desmandos, desordens e despraças”. E agora, na fase grisalha, ocupa-se em “reconciliar, recatar e recompor”.
 
Um dia, desembarca na fazenda dele um casal de jovens, sob a proteção de um chefão rural, Seo Seotaziano, com um bilhete e o pedido para que sejam abrigados ali. O rapaz “roubou a moça pra casar”, e provavelmente os dois serão perseguidos pelos capangas do pai dela.
 
Joaquim Norberto pula da rede e toma providências, saindo “dos suspensos para os preparos”. O casal é rapidamente posto em quartos separados, e fica sob paternal vigilância. O fazendeiro arregimenta homens de armas das redondezas, além dos que já mantinha, para a hipótese de cerco e tiroteio. É uma pequena Tróia sertaneja que se esboça.
 
Passam-se dois, três dias. Chega um emissário da família da moça, que cedeu à realidade e se propõe a levar de volta os dois – que já se casaram, ali mesmo, com padre e testemunhas. E assim se vão em paz os jovens nubentes, rumo ao enfim-sós, por entre renques de homens armados de carabinas.



É uma historieta simples, sem nada de mais, e aborda um tema que não é apenas sertanejo, é nordestino e talvez brasileiro: o casal de namorados que querem viver juntos, enfrentam a resistência das famílias, e acabam fugindo para forçar o casório. Vários amigos meus casaram nesse sistema, e não foi na época em que o conto é ambientado, foi nos anos 1960.
 
Em “Luas de Mel”, o plural indica a importância dos dois casais: os jovens fugidos, e o casal de meia idade da fazenda que os acolhe: o narrador Joaquim Norberto e sua esposa Sa-Maria Andreza. A obrigação de atender um pedido do chefão protetor daquela região, Seo Seotaziano, põe em polvorosa a fazenda que andava na modorra, na rotina, na pisada vagarosa do nada-acontece. Dá uma sacudida na vida deles.
 
De um momento para outro, forma-se a defesa, mobilizam-se os pistoleiros, mensageiros são mandados às pressas para alertar os vizinhos. A fazenda Santa-Cruz-da-Onça começa a se pintar para guerra. Isso acaba elevando não apenas a temperatura bélica, mas a amorosa. Joaquim Norberto rejuvenesce, restaura as antigas forças. E, passo a passo, ele vai mudando a maneira de se referir à esposa.


Mary L. Daniel (em João Guimarães Rosa: Travessia Literária, Ed. José Olympio, 1968, pág. 158) faz a divertida enumeração dos sucessivos tratamentos que Joaquim Norberto dispensa à esposa, saboreando seu nome com lúdica formalidade (as indicações de página correspondem à primeira e à terceira edição):
 
“Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher...” (PE, 106)
“Sa-Maria Andreza, minha correta mulher...” (PE, 107)
“Sa-Maria Andreza, minha mulher...” (PE, 108)
“Sa-Maria Andreza, minha conservada mulher...” (PE
“Sa-Maria Andreza, mulher...”
“Sa-Maria Andreza, minha...”
“Minha Sa-Maria Andreza...” (PE, 109)
“...minha sadia Sa-Maria Andreza – contemplada” (PE, 110)
“... Sa-Maria Andreza, mulher minha”
“Minha Sa-Maria Andreza, mulher...”
“Sa-Maria minha Andreza... (PE, 110-111)
“...Sa-Maria querida Andreza.” (PE, 112)
 
A gente nota assim o reaquecimento gradual das atrações pretéritas. No primeiro exemplo de todos, quando o casal ainda está na prateleira do descanso, incide o termo “meio passada”, que hoje seria considerado altamente pejorativo (lembrando até o chocarreiro “mulher rodada”). Por outro lado, a descrição que o fazendeiro faz de si mesmo é bonachona, mas nem um pouco elogiosa:
 
Por moleza do calor é que eu ficava a observar. Nesse dia, nada vezes nada. De enfastiado e sem-graça, é que eu comia demais. Do almoço, empós, me remitia, em rede, em quarto. Questão de idade, digestões e saúde: fígado. Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher, ia ferver um chá, já, para o meu empacho. (pág. 106)
 
Joaquim Norberto é um líder rural intermediário. Ele afirma: “De pobre não me sujo, de rico não me emporcalho.” É dono de força própria, capaz de arregimentar combatentes leais, mas visivelmente submisso a Seo Seotaziano. Em cujo nome, aliás, a repetição do título (Seo = Seu = Senhor) é um reforço do respeito: o tratamento se incorpora ao nome (“Taziano”, “Taciano”) mas depois precisa ser restaurado diante do prenome modificado. E guarda a mesma função duplicadora, meio afetiva, de quando dizemos “Minha Nossa Senhora”.
 
Já vi vendedor na praia chamando um gringo: “Ô, seu míster!...”
 
E de repente desembarca ali o casal de jovens, apadrinhado e acobertado pelo mandachuva. O episódio é clássico, e a mim me lembra um dos “Mistérios” mais bonitos do “Retábulo de Santa Joana Carolina”, de Osman Lins (em Nove, Novena), em que a matriarca, sozinha, encara e peita um destacamento de jagunços que veio arrastar de volta um casal de jovens fugidos.
 
Proteger o amor alheio é proteger o amor. Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza se redescobrem durante aqueles poucos dias de tensão na fazenda, enquanto esperam de uma hora para outra uma invasão para tentar resgatar a moça.
 
A excitação do perigo:
 
“Homens comendo em pé, o prato na mão; alerta o ouvido. A gente, risonhos de guerra, a qualquer conta.” (pág. 111)
 
O chega-mais da valentia guerreira:
 
“—Ah, minha velha, vamos tocar rabecas...” – gracejei, limpando a parabélum. Sa-Maria Andreza, boa companheira, só disse, abanando os topes: “Aroeira de mato virgem não alisa...” Peguei na mão dela, meio afetuoso. Repensei em todas as minhas armas. Ai, ai, a longe mocidade. (pág. 108)
 
O reaquecimento da cumplicidade física:
 
Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo – na outra o rifle empunhado-: “Vamos dormir abraçados...”  As coisas que estão para a aurora, são antes à noite confiadas. Bom. Adormecemos.
Amanheci fora de horas, me nascendo dos conchegos. (pág. 111)
 
Outro aspecto interessante do conto é a convivência política entre poderes colaterais – senhores de terras com propriedades adjacentes, ou próximas o bastante para permitir o confronto de tropas rapidamente convocadas. A chegada do casal na fazenda Santa-Cruz-da-Onça leva Joaquim Norberto a se valer das tropas dos vizinhos:
 
Gente minha já galopava, nessa noite e madrugada. Um próprio à Fazenda Congonha, do meu compadre Veríssimo, por três rifles, três homens, emprestados. Pelo seguro. Povo de lá é de brasas. E um à Lagoa-dos-Cavalos, por outros três – para o meu compadre Serejério não se dar de melindrado. Bem. Eu tiro os outros por mim. (pág. 108)
 
Isso traz à mente a interpretação do Grande Sertão: Veredas de Willi Bolle (no livro grandesertão.br, Ed. Duas Cidades / 7Letras, 2004).
 
Ele vê o Riobaldo que conta a história como alguém que fez carreira dentro do sistema jagunço, e de empregado tornou-se patrão, fazendeiro estabelecido (tendo herdado as terras do seu pai biológico). Ele implanta ao seu redor, nas vizinhanças, pequenas propriedades doadas aos seus ex-companheiros de aventuras, homens de inteira confiança. E vive em paz com sua Otacília.  O Joaquim Norberto de “Luas de Mel” é decerto um personagem assim, vivendo o final-feliz possível para um personagem assim:
 
As passageiras consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinho de carregar água. (pág. 113)