quarta-feira, 25 de novembro de 2015

3981) A cegueira do expert (26.11.2015)





Um especialista vê certas coisas com uma nitidez absoluta, à custa de não enxergar outras que estão até mais próximas. São como as câmeras fotográficas que focam num detalhe e deixam todo o resto do ambiente num borrão de contornos difusos. 

A mente do especialista funciona como certos exames clínicos. Você pega uma amostra de sangue e quer saber se o paciente tem a doença X. Coloca alguns reagentes, etc., e tem o resultado. O paciente pode até ter as doenças Y e Z, mas como o exame não estava buscando essas duas ele “passa batido”, sem percebê-las. A busca é específica, direcionada, cega para todo o resto.

Na coletânea Blackwood’s Tales of Treasure, um capítulo fala de garimpeiros de ouro que acham minério de prata mas não o reconhecem, pois não era o que estavam buscando. Eles largam tudo e vão embora. 

Do mesmo modo, muitas descobertas científicas são feitas meio por acaso em cima de dados ou materiais já recolhidos por outras pessoas, que, no entanto, foram incapazes de olhar aquilo com o olhar correto. 

Thomas S. Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (Ed. Perspectiva, 1982) exemplifica com o caso do átomo de hélio visto por um químico e um físico eminentes. “Para o químico, o átomo de hélio era uma molécula, porque se comportava como tal desde o ponto de vista da teoria cinética dos gases. Para o físico, o hélio não era uma molécula porque não apresentava um espectro molecular”.

Einstein dizia que a ciência do seu tempo precisava mais de perguntas novas do que de respostas certas. As perguntas velhas eram sempre respondidas corretamente. O que fazia falta era uma maneira nova de olhar os fenômenos – justamente o que Einstein fez, com menos de trinta anos. 

Jacob Bronowski, em seu ótimo Ciência e Valores Humanos (Ed. Itatiaia/EDUSP, 1979, trad. Alceu Letal) refere o caso de um alpinista que resolveu escalar o Everest não pelo lado que mais conhecia, o norte, mas pelo lado sul, que era familiar ao seu guia.

Diz ele: 

– À medida que subíamos o vale, vimos no topo a linha divisória principal de águas. Reconheci imediatamente os picos e as depressões que nos são tão familiares do lado norte. (...) É curioso que Angtarcai, que conhecia essas características do outro lado tão bem como eu, e tinha passado muitos anos da sua infância a pastorear bois selvagens neste vale, nunca os tenha reconhecido como tais; nem mesmo hoje, salvo quando os indiquei a ele. 

É como uma moeda, que parece algo totalmente diferente olhada por um lado e pelo outro. Quando estamos condicionados para reconhecer ou para procurar somente uma coisa, corremos o risco de não achá-la se a imagem avistada não for a que esperávamos ver.












3980) "Número Zero" (25.11.2015)



Este romance mais recente de Umberto Eco é quase uma continuação de O Pêndulo de Foucault (1988), livro que achei muitíssimo saboroso mas que decepcionou muitos leitores, os quais, ao que parece, esperavam algum tipo de continuação de O Nome da Rosa (1980). O Pêndulo mostrava um grupo de editores pouco escrupulosos envolvidos com conspirações esotéricas: o romance deste ano mostra um grupo de jornalistas pouco escrupulosos envolvidos numa conspiração política. Eco está com 83 anos. Enquanto o livro mais antigo tinha (na edição em inglês que possuo, tradução de William Weeaver) 533 páginas, o mais recente (na edição da Record, tradução de Ivone Benedetti) tem 207. É menos divertido, menos barroco, menos delirante, mas o bom-humor, a ironia e a enciclopédica prosa do autor estão lá.

Os personagens de Número Zero são aqueles jornalistas calejados, cínicos, meio fracassados, que topam escrever qualquer coisa desde que descolem a grana do aluguel, da gasolina e da geladeira. O jornaleco é financiado por um comendador de interesses onipresentes e de envolvimentos escusos, que monta o pasquim para servir de instrumento de pressão e chantagem contra seus adversários políticos. Colonna, o narrador, é um desses teclado-de-aluguel, tão conhecidos por quem é do ramo, ansiosos para que alguém lhes faça uma proposta indecente. Ao entrar na redação acaba tendo um caso com Maia, uma redatora jovem e meio perdidona. Juntos, os dois acompanham a investigação de um terceiro personagem, Bragadoccio, que está aos poucos levantando uma concatenação meio fantasiosa de fatos históricos poucos relevantes mas que podem resultar na mais sensacional revelação política da Europa pós-II Guerra Mundial.

Eco trabalha, nesses romances, no subgênero das  “Fantasias da História”, em que fatos universalmente conhecidos recebem novo contexto através da invenção ficcional. Autores como Tim Powers, Kim Newman, Thomas Pynchon, Salman Rushdie, Stephen King, Don DeLillo e outros usam extensivamente, cada um com suas fórmulas, essa mistura de fatos documentados e interpretações imaginárias. É o terreno da paranóia e das “teorias da conspiração”. Bertolt Brecht (cit. por Ernest Mandel, Delícias do Crime) descreveu assim o processo: “Por trás dos acontecimentos que nos são narrados, suspeitamos de outras ocorrências sobre as quais não fomos informados. Estas são as verdadeiras ocorrências. Somente se soubéssemos poderíamos entendê-las. Somente a História pode nos informar sobre essas ocorrências verdadeiras – pelo menos até o ponto em que os atores não conseguiram mantê-las em total segredo. A História é escrita após as catástrofes”.