Os valentões são uma galeria curiosa na obra de Guimarães
Rosa. Como todo intelectual livresco, ele era fascinado por quem resolve as
coisas no murro, no tiro e na faca.
A cultura de massas faz o que pode para desmoralizar a
violência, reduzindo-a a mero sadismo gratuito, com um olho nos níveis de
testosterona e o outro na bilheteria. Perde-se
a pulsão trágica do ato de matar, tão sombriamente compreendido pela tragédia
grega, pelo romance de cavalaria, pelo romance policial noir, pelo filme de samurai, pelo cordel de cangaço...
Os quatro irmãos Dagobé, no livro Primeiras Estórias (1962) são quatro valentões que correspondem a
uma fantasia do inconsciente coletivo masculino: o de um grupo de
irmãos-de-sangue, todos da mesma origem, todos parecidos, todos diferentes,
todos unidos por um sortilégio social que os privilegia e os separa da
humanidade. Um bando de bróderes.
Dentro desse grupo homogêneo (porque vêm todos do mesmo
DNA) e heterogêneo (porque o voluntarismo masculino que os acoberta lhes
estimula o personalismo sem-freios), podem acontecer as mais imprevisíveis
dinâmicas, geralmente conduzindo à tragédia, que é o desenlace fatal desse
impulso pelo pelo poder e pela dominação recíproca.
Aí estão os irmãos Karamazov, com seu xadrez
sanguinolento de religião e revolta.
Aí está o arquétipo de todos os faroestes domésticos, o
seriado Bonanza, com o velho Ben
Cartwright fazendo o pai bonachão e passador-de-pano para as estrepolias dos três
filhotes (Ross, Adam e Little Joe). Quem não vive vendo esse filme?
Com relação a Bonanza,
que eu assistia quando pequeno, lembro que Joseph Lewis, já diretor veterano,
foi contratado para dirigir um episódio da série. E os quatro atores (“aqueles
quatro palhaços”, recorda) resolveram desafiar a autoridade dele. Não ensaiavam
direito, ficavam fazendo piadas e pregando peças uns aos outros, não obedeciam
às instruções, etc.
Quando Lewis percebeu, disse: “Muito bem, vamos rodar a
Cena 1”. Rodaram, e foi só palhaçada. Quando terminou, ele disse: “Copia. Cena
2, agora.” Houve um certo silêncio. Começaram a cena e a palhaçada recomeçou.
Quando terminou, ele disse: “Copia. Cena 3, agora.”. Silêncio sepulcral no
estúdio e Michael Landon (“Little Joe”) veio até ele. “Ei, você não vai copiar
isso, vai?” E ele: “Claro que vou. Me
contrataram para filmar o trabalho de vocês quatro, e se o que vocês têm pra
mostrar é isso, é isso que vai ao ar.”
Daí em diante não teve mais palhaçada: “fiquei com os quatro na palma da
mão”. Ele terminou o episódio, embolsou o cheque e nunca mais quis trabalhar
com “os quatro palhaços”.
O que é um valentão? É um cara que dá um empurrão no seu
peito para ver o que acontece. Se você recuar um passo, ele avança um passo. E
na próxima vez dá um empurrão maior, para ver se você recua dois. E se você não
recuar? Aí você dá um salto no escuro, mergulha no Imprevisível. Às vezes vale
a pena. Às vezes você leva uma pisa. Cada caso é um caso. Não existe fórmula. Boa
sorte.
Os irmãos Dagobé de Guimarães Rosa são quatro valentões
que aprontam naquela ribeira, “gente que não prestava”. Os quatro chamam-se
Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, o que não deixa de lembrar o famoso
ensaio “Um lance de dês do Grande Sertão”, onde Augusto de Campos glosa Deus,
Diabo, Demo, Diadorim...
Não se trata aqui de um pai e três filhos, mas de quatro irmãos,
quatro matragas desordeiros e de maus bofes. O conto começa com um susto, uma
“enorme desgraça”. O primogênito Damastor Dagobé foi morto a bala por um
sujeitinho qualquer do povoado, “um lagalhé pacífico e honesto”, que se limitou
a reagir a uma provocação e agressão por parte do brutamontes. Estava com uma
garrucha velha no cinto e “despejou-lhe o tiro do centro dos peitos, por cima
do coração”.
A quase totalidade do conto transcorre durante o velório,
onde após cada leva de chuvinhas sucessivas chega mais gente, pra ver o acaba-samba em seu caixão, tomar o cafezinho de uso, e ficar pelos cantos fofocando sobre o
tamanho da vendeta que se aproxima. O cara mata um Dagobé e deixa três vivos? Vai
haver lugar no mundo onde um sujeito assim se esconda?!
Outro susto: durante a madrugada chega um recado do
assassino, que se chama Liojorge. Manda dizer aos irmãos sobreviventes “que não
tinha querido matar irmão de cidadão cristão nenhum, puxara só o gatilho no
derradeiro do instante, por dever de se livrar, por destinos de desastre! Que
matara com respeito.” E pede licença
para vir ao velório, desarmado mesmo, para mostrar sua boa fé e prestar
homenagem ao morto e aos sobreviventes.
Rola um zum-zum-zum de perplexidade e desconcerto no
velório, porque ninguém ali tinha jamais presenciado tamanha ousadia! Fala-se até na velha tradição oral de que na
presença do matador o corpo do matado volta a verter sangue...
Os irmãos não dão resposta pronta, mas recados continuam
a chegar e Liojorge se dispõe a ajudar a carregar o féretro! Aí é que ninguém mais arreda pé, porque o
desfecho de uma situação tão inusitada ninguém quer perder.
E ele vem.
Alto, o moço Liojorge, varrido de todo o atinar. Não era animosamente,
nem sendo por afrontar. Seria assim de alma entregue, uma humildade mortal.
Dirigiu-se aos três: – “Com Jesus” – ele, com firmeza. E? – aí. Derval,
Dismundo e Doricão – o qual o demônio em modo humano. Só falou o quase: “Hum...
Ah.” Que coisa.
A franqueza e a coragem do matador põem em xeque o exército
dagobé. O enterro segue, Liojorge, com “tranquilidade de escravo”, ajuda a
carregar o caixão, assiste as pás de terra. E no fim Doricão, agora o mais
velho, se pronuncia em sua direção: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que
o meu saudoso irmão é que era um diabo de danado... (...) A gente vamos embora,
morar em cidade grande.”
Tem ocasião em que é possível, sim, tomar um miúra pelos
chifres, sujigá-lo, fazer com que se ajoelhe e peça desculpas. Nem sempre dá
certo. Mas Liojorge, mesmo sendo apenas um pacato fazendeiro, era da aldeia, conhecia
os caboclos. Teve sorte de que a agressão viesse da parte do mais velho. Se ele
tivesse matado um dos outros três, a conversa seria outra. Mas do jeito como
foi, ele acabou tendo que esmagar a cabeça da cobra.
Guimarães Rosa já nos previne disso, nos primeiros parágrafos,
ao explicar quem foi o morto: “Este fôra o grande pior, o cabeça, ferrabrás e
mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços – “os meninos”,
segundo seu rude dizer.”
E é desse jeito que circula o sangue por dentro da vida.
Enquanto o valentão bate na cara alheia e pode ficar esgravatando os dentes,
não vão faltar caras alheias onde bater. Um dia, ele enfrenta alguém com
coragem para fazer o que ele não faria. E desarmado. O valentão, que não é nada
mais do que isso, percebe que nesse desarmado um valor mais alto se alevanta.
Ele resmunga mas abaixa a cabeça. Paga respeito. Foge para a cidade grande. Se
civiliza.
Todo mundo respeita a mão que matou um, mesmo quando ela
vem desarmada.