quinta-feira, 18 de junho de 2009

1099) Os contos de Rosa (23.9.2006)




Tutaméia (1967) é um dos melhores livros de contos de nossa literatura. Ainda assim, na minha opinião pessoal não chega aos pés de Sagarana (1946) e Primeiras Estórias (1962). 

No seu primeiro livro, o de 1946, João Guimarães Rosa estabeleceu um tipo de conto em que se casavam com perfeição estilo, tema e formato. O melhor formato para Rosa é o conto longo, ou noveleta, como são as histórias de Sagarana (especialmente “A Hora e Vez de Augusto Matraga”) e de Corpo de Baile, livro tão maciço que depois foi desmembrado em três. 

Um romance como Grande Sertão: Veredas é exceção. Mesmo que Rosa tivesse vivido até os 90 anos (ou seja, até 1998), não sei se teria chegado a produzir outro livro com aquelas dimensões, aquela escala.

Primeiras Estórias é magnífico, é superior a Tutaméia (publicado no ano da morte do autor), mas já começa a denunciar certos maneirismos, certo excesso de síntese, que, paradoxalmente, é um dos cacoetes do estilo barroco. 

O Barroco não é apenas extensão desmedida, proliferação caudalosa, multiplicação de formas, excesso de adornos e de mecanismos crescendo em todas as direções. O Barroco tem também um crescimento para dentro, gerando obras de pouca extensão onde o autor se força a empurrar, enfiar, calcar, espremer a maior quantidade possível de efeitos, como se estivesse querendo ganhar uma aposta. 

Os primeiros sintomas disto são visíveis, muito de leve, em Primeiras Estórias, e o processo todo desabrocha triunfante em Tutaméia.

Os livros póstumos (Ave, Palavra e Estas Estórias) têm a ressalva de não serem textos finais, aprovados em definitivo pelo Autor; mas estão mais parecidos com Tutaméia do que com Sagarana

Parece que o sucesso literário e os compromissos diplomáticos de Rosa se avolumaram após o sucesso dos dois livros de 1956 (Grande Sertão e Corpo de Baile), e nos onze anos de vida que lhe restaram ele não pôde se dedicar à escrita na mesma medida de antes. Tinha muitas histórias para contar e sabia não dispor de muito tempo para contá-las. 

A 2a. edição de Corpo de Baile, em volume único, tem sete histórias em 513 páginas. Tutaméia tem 40 contos e quatro prefácios em menos de duzentas.

O “maneirismo” destes últimos contos, o estilo quase criptográfico, a sintaxe cada vez mais truncada, tudo indica a presença de um escritor que precisou optar por esta maneira telegráfica de escrever, por causa do ritmo truncado, ziguezagueante, do seu cotidiano – dividido entre o trabalho de gabinete, as viagens constantes, a copiosa correspondência com a família e os amigos, a supervisão das várias traduções, os compromissos sociais e diplomáticos do Itamaraty. 

No auge do sucesso, Rosa devia recordar com saudade o período de relativa “sombra, silêncio e solidão” pré-1956, que lhe permitiu publicar no mesmo ano duas obras colossais como Grande Sertão e Corpo de Baile, seus melhores livros.





1098) O chapéu do “Corvo Amarelo” (22.9.2006)



Corria o ano de 1967 e a sessão do Cinema de Arte do Capitólio exibiu o filme japonês O Corvo Amarelo de Heinosuke Gosho (eu nem lembrava mais o nome do diretor; fui procurar agora no Google). No domingo seguinte, reuniu-se o Cineclube de Campina Grande, uma horda de doze ou quinze hipopótamos de diferentes formatos, unidos pela paixão cinéfila. Começou o debate do filme, cujo enredo era sobre um menino abandonado pelos pais. A discussão fluiu até chegarmos a uma cena em que alguns personagens vão embora de uma praia. Depois que partem, a câmara se detém num chapéu de palha que fica abandonado na areia. E surgiu a pergunta terrível: “Por quê?”

Um cinéfilo é um adolescente ungido pelos deuses com a consciência terrível de que num filme tudo é de propósito, nada está ali por acidente. Diferentemente da vida real, onde tudo acontece num trambolhão de acasos que se entrechocam, por trás de um filme existe uma Mente, uma vontade organizadora, que dá ordens à equipe: “Filmem o chapéu abandonado sobre a areia da praia!” E lá estava o chapéu, imóvel como a esfinge da lenda, piscando-nos um olho grego e perguntando: “Por quê?”

Alguém ergueu o dedo e propôs: “O chapéu ficou sozinho, esquecido, abandonado... É o símbolo da solidão do menino”. Outro levantou-se e dissentiu: “Nada disso! Chapéu é proteção. O menino foi abandonado, portanto perdeu a proteção dos pais”. Veio outro e disse: “Vocês estão muito presos à dimensão conteudística. O chapéu tem uma função apenas visual, para enriquecer a imagem da praia, cromaticamente falando”. E veio um mais cínico: “Que nada. O ator esqueceu de levar o chapéu, e o diretor não repetiu a tomada porque tinha pouco negativo”.

Eu voltei para casa tão zonzo que botei um papel na máquina de escrever e usei este filme para escrever minha primeira crítica de cinema, que nunca foi publicada e acabou se perdendo, com dezenas de outras, entre faxinas e mudanças. Imagens enigmáticas de um filme (“O que diabo será que o diretor quis dizer com isto?”) são imagens geradoras de idéias, imagens capazes de desencadear um “brainstorm”, uma tempestade cerebral em que nossos neurônios ficam relampagueando sem parar. A coisa chega a um ponto em que deixa de ser importante responder a pergunta: as respostas que surgem são tão variadas e interessantes que se bastam a si mesmas.

Não digo que esse tipo de reação produz necessariamente uma boa crítica de cinema. Esta deveria ser, idealmente, uma discussão séria e criativa do que é mostrado pelo filme, e não um exercício de livre associação surrealista. Mas esse tipo de discussão mostra um aspecto essencial da criação: ela precisa de um mote, uma idéia geradora, um ponto de partida. É como a sopa de pedras de Pedro Malazarte: o sujeito bota água para ferver com pedras, e vai botando tantos outros ingredientes que a partir de certa altura as pedras podem ser jogadas fora. Agora me respondam: por que é que o corvo era amarelo?

1097) A Estante Virtual (21.9.2006)



Nada se compara a um desses dias em que não tenho nada urgente para fazer e vou “rodar os sebos”, como dizem meus amigos colecionadores. Boto a mochila vazia às costas às duas da tarde, e retorno às sete da noite, com ela cheia. Mas a compra pela Internet também tem o seu encanto, e uma vantagem de ordem prática: os sebos do mundo inteiro à nossa disposição.

Estou exagerando um pouco, mas, para efeito de uma simples vida humana, saites como Estante Virtual e Abebooks podem suprir nossas carências sem apelar muito para a sorte. Estes saites não são propriamente sebos, são conglomerados de sebos. O princípio básico é simples. Qualquer sebo de porte mediano, hoje em dia, tem seu acervo todo informatizado (pelo menos título, autor, editor, formato e preço). O saite interliga todos estes bancos-de-dados num único sistema de buscas. Assim, quando a gente acessa o saite e digita o livro ou autor que está buscando, ele procura em todos os sebos ao mesmo tempo.

O “Estante Virtual” (http://www.estantevirtual.com.br/) reúne um total de 260 sebos em 74 cidades brasileiras, num total de quatro milhões de títulos disponíveis. Verifiquei, orgulhoso, que tanto o Cata-Livros de Ronaldo quanto o Sebo Cultural de Heriberto estão lá, marcando presença. Quando escolhemos os livros, é só ver quanto custa o frete da cidade de origem até a nossa, e combinar com o sebista a forma de pagamento (em geral é depósito bancário).

O “Abebooks” é o saite da American Book Exchange, e abrange algumas centenas ou milhares de sebos na Europa e nas Américas. Não sei calcular quantos. Faça um teste, companheiro: vá em: http://www.abebooks.com/servlet/SearchEntry?errorcode=1. E onde tem “Sort Results By”, peça para organizar a busca a partir de “Lowest Price”, ou seja, aparecerão primeiro as ofertas do livro com preços mais baratos. O frete dos EUA para o Brasil fica em torno de 9 ou 10 dólares, o que muitas vezes é um bom negócio, porque o preço do frete é compensado quando achamos por 5 ou 10 dólares um exemplar que, novo, custaria 25 ou 30. O pagamento é feito com cartão de crédito, que você fornece apenas uma vez, e fica arquivado no saite, para não ter que transmitir de novo cada vez que faz uma nova compra.

Graças a este sistema, já encontrei livros obscuros que ninguém conhece, livros estranhos que eu pensava que não existiam, livros raríssimos a preço de banana (porque ninguém os procura, e quem determina preço não é raridade, é demanda), livros que na loja da esquina custam cinqüenta reais e eu comprei pelo correio por trinta. No caso de livros estrangeiros, aproveito épocas (como agora) em que o dólar está barato, e vou montando minha estante de obras de referência e consulta permanente. Dou preferência aos sebos americanos (nos europeus o frete pode ser o dobro ou até o triplo). Procuro comprar sem euforia, examinando bem. Como quem compra ações. Como quem compra algo que vai ficar pro resto da vida.

1096) Bem feito, Paris Hilton (20.9.2006)




Não sei se o caro leitor já ouviu falar em Paris Hilton. Como descrevê-la? Ela parece não ter qualquer essência acessível. É uma colcha-de-retalhos de aparências sem um Ser-em-Si por dentro. Recorrerei, portanto, a circunlóquios e símiles. Paris Hilton, jovem milionária norte-americana (seu pai é dono da cadeia de hotéis Hilton) é uma mistura de Adriane Galisteu, Narcisa Tamborindeguy e Laurita Mourão. A imprensa a descreve como uma multi-profissional: modelo, atriz, escritora, cantora, designer... Ela é aquilo que antigamente os cronistas sociais chamavam de “uma locomotiva do jet-set”, uma pessoa que “é notícia”, faça o que fizer ou deixar de fazer.

Paris lançou há algum tempo um CD onde se apresenta como cantora. O disco está vendendo, e a louríssima cantante inspirou uma idéia ao artista britânico Banksy (http://www.banksy.co.uk/menu.html), que faz ótimas intervenções de “graffitti” nas ruas de Londres. Banksy pegou o disco de Paris, copiou, remixou as faixas, deu-lhes títulos como “Why am I Famous?”, “What have I done?” e “What am I for?”. Imprimiu novas capas com imagens de Paris Hilton com os seios de fora ou com cabeça de cachorro. Deu-se o trabalho de produzir 500 cópias destes álbuns “interferidos” e as espalhou clandestinamente nas prateleiras de cerca de 50 lojas de discos em várias cidades da Grã-Bretanha.

Paris não pode se queixar. Se o que ela gosta é aparecer, a performance desconstrutiva de Banksy está abrindo para ela espaços onde seu nome jamais seria mencionado, a começar por esta modesta coluna. E ela não pode se queixar do caráter apócrifo das obras. Paris apareceu em março de 2005 na capa da Playboy... sem ter posado para a revista. Li algumas matérias sobre este episódio, que não me pareceu muito bem esclarecido. Quem apareceu na capa foi uma dublê igualzinha a ela (o que não é difícil, porque de lourinhas daquele tipo as calçadas americanas estão cheias). Entre a modelo e a revista, não se sabe qual das duas é mais interesseira, mais raposa, mais espertalhona.

No saite de Banksy há um texto mais ou menos assim: “Guia Para Coisar Coisas. 1) Nunca escreva um guia ensinando outras pessoas a coisar coisas”. Banksy faz pichações (desenhos) em paredes, faz performances, faz esses atos de guerrilha cultural tão em moda hoje em dia. Segundo informa a imprensa, as lojas conseguiram reaver apenas 7 dos discos interferidos. Nenhum cliente que comprou um deles reclamou. Paris Hilton é um ponto extremo da indústria cultural, o comercialismo mais destituído de significado, todo o poder do dinheiro e da alta tecnologia em benefício de um produto totalmente vazio. Banksy é um artista de vanguarda que interfere no lixo para dar-lhe significado através da desconstrução crítica. Ironicamente, a existência cultural de Paris Hilton acaba sendo justificada exatamente por quem ataca sua falta de significação.

1095) A sertanização das cidades (19.9.2006)




(ruínas de Canudos)


A falada modernização por que o Brasil começou a passar a partir da Revolução de 1930 envolveu, segundo se comenta nos livros de História, o esvaziamento do poder das aristocracias rurais e o crescimento da burguesia urbana. 

No Brasil daquele tempo, coronéis e caudilhos interioranos mandavam em seus feudos, e, quando necessário, confrontavam o Poder político constituído. As mudanças econômicas da Era Vargas pulverizaram o poder dessas elites e alimentaram um crescimento urbano que conseguiu (em meados da década de 1970) inverter a balança populacional do Brasil: pela primeira vez tínhamos (e temos até hoje) mais pessoas morando nas cidades do que no campo.

Este breve resumo concentra, a meu ver, uma das muitas faces de nossa tragédia social. Quando se fala em “modernização” está-se indicando um conjunto de modos de ver, de ser e de agir que surgiu em tempos mais recentes para suplantar (por ser mais evoluído, supõe-se) os modos anteriores. 

Novas relações econômicas no trabalho, novas formas de representatividade política e distribuição dos poderes, novos instrumentos de controle da população por parte do Estado e vice-versa. 

Esses “novos modos”, por definição, eram gerados nas metrópoles e tenderiam a se espalhar pelo meio rural até chegar aos recantos mais remotos, quando, então, o País inteiro estaria modernizado. Seria, em tese, um processo de urbanização do Sertão.

Ora, olhando em torno, hoje, vemos que o que aconteceu foi exatamente o contrário. 

Houve um momento (na verdade, inúmeros momentos) em que essa bem-intencionada “modernização” deu com os burros nágua. 

Um dos motivos: para que ela não estancasse seria preciso transferir educação, renda e poder político para enormes massas de gente, e isto foi sumariamente riscado desse programa de modernização iniciado pelas nossas elites.

Estancada no meio do caminho, a modernização não chegou até o campo, a não ser em algumas regiões, através das culturas intensivas de exportação. E chegou “aos mais remotos rincões” sob a forma de telecomunicações voltadas para o louvor e a glória dos valores urbanos. 

Começou a migração para os grandes centros, em busca de emprego, riqueza, felicidade. E em vez da urbanização do Sertão temos hoje a sertanização das cidades. As elites urbanas vêem-se cercadas por cinturões de pobreza, dos quais se distanciam mais e mais, economicamente, a cada década que passa. 

Esta situação surrealista inverte a epopéia de cem anos atrás. Em vez do Governo cercar Canudos, Canudos veio cercar o Governo. 

Nos morros e nas periferias, acumulou-se uma multidão tragicamente despojada dos valores que tinham em seu lugar de origem, e expostas ao que a metrópole tem de pior. 

Em vez de fenômenos como o cangaço e o messianismo, que antes eram gerados de sua própria cultura, essa Canudos sem Conselheiro é presa fácil da violência mercantilista do tráfico de drogas, e do messianismo mercantilista das igrejas de ocasião.





1094) Vote Nilo (17.9.2006)





Em 1964, ano do Centenário de Campina, meu pai se candidatou a vereador. Não lembro por que partido. Se eu hoje acho os nossos partidos todos iguaizinhos, imagine naquele tempo. Partidos não passam daquela “sopa de letrinhas” mencionada por Leo G. Carroll em Intriga Internacional de Hitchcock. 

Mesmo sem um vintém no bolso, Seu Nilo alugou um jipe velho durante alguns meses, o qual se transformou em Diretório, QG e jatinho de campanha. O motorista era Zé de Iva, e Iva era filha de Dona Joana, que morava por trás da nossa casa, ajudava minha mãe nas tarefas domésticas, e vivia recitando obscuras décimas de repentistas que sei de cor até hoje e cuja procedência nunca consegui estabelecer.

A campanha era, portanto, uma iniciativa artesanal, familiar. Não foi a primeira candidatura dele; quando li o livro de Josué Silvestre, Lutas de Vida e Morte – Fatos e Personagens da História de Campina Grande 1945-1953, descobri que ele tinha se candidatado pelo PSB na eleição de 1951, e teve apenas 45 votos (o único vereador eleito pelo partido foi o Dr. Bonald Filho).

Na campanha de 64 eu tinha 13 para 14 anos, estudava de manhã no Alfredo Dantas, e passava a tarde montado na parte traseira do jipe, ajudando meu pai e Zé a distribuírem papéis impressos, dos quais só me recordo de uma crônica do Prof. Stênio Lopes onde ele contava alguns episódios malazartianos protagonizados por Seu Nilo. 

Consumimos um Iraque de gasolina, durante meses. Ele não foi eleito, e acho que levou um certo tempo até tapar o rombo financeiro.

Em 1968, resolveu se candidatar de novo, mas, já escolado, não gastou um ceitil. Era na época da explosão do movimento da esquerda estudantil, do qual eu participava intensamente como espectador. Havia em todo o Brasil uma campanha pela anulação do voto, repudiando as candidaturas falsas, “permitidas” pela ditadura. Todos os dias, as paredes do centro de Campina amanheciam misteriosamente pichadas: “VOTE NULO!” 

A única despesa que meu pai teve, durante meses, foi pagar um moleque para percorrer a cidade com um balde de tinta e um pincel, cobrindo o “U” com um traço vertical. Campina ficou coberta, durante meses, de conclamações entusiásticas: ‘VOTE NILO!” Ele teve o triplo dos votos da vez passada, e felizmente não foi eleito.

De quatro em quatro anos eu me sento numa comprida mesa de bar, com amigos que se interessam por política, e consumimos uma Áustria de cerveja discutindo a validade ou não do voto nulo. 

Há quem pregue não apenas a anulação do voto, mas a queima pública dos títulos eleitorais, diante das câmaras de TV, como as feministas de outrora faziam com seus sutiãs. No extremo oposto, há os que se cobrem de urticária à simples menção do fato, como se votar nulo fosse pior do que escolher um entre dois mafiosos. 

Quando eu voltar pra casa hoje, na hora da janta, vou perguntar a Seu Nilo, quem sabe ele tem alguma das suas soluções malazartianas para me oferecer.