quinta-feira, 15 de setembro de 2022

4863) A arte aleatória (15.9.2022)



(Heitor Villa-Lobos)


Há um pequeno ensaio de Julio Cortázar, em seu livro-almanaque A Volta ao Dia em 80 Mundos, com o título de “Eu poderia dançar esta cadeira, disse Isadora”.
 
É possível “dançar uma cadeira”? Sim, se você é Isadora Duncan, a bailarina que fez uma revolução na dança moderna, expandindo o espaço gestual do balé clássico para assimilar outros movimentos, outros impulsos coreográficos, outras relações com o palco e com o público, e assim por diante.
 
Isadora sugeria (ou é Cortázar quem sugere, nem lembro mais) que é possível olhar para uma cadeira e ver o artesanato que a produziu, a relação entre matéria e forma (ou seja, madeira e design), captar a impressão geral que ela produz – de pesada solidez, de leveza sofisticada, de simplicidade rústica, de impessoalidade industrial – e reproduzi-la através de movimentos de dança.
 
É possível? Talvez sim, talvez não... Em todo caso, é um desafio. Por que não tentar?
 
Em última análise, não é muito diferente de pegar um livro como Guerra e Paz de Leon Tolstoi, que demanda algumas dezenas de horas de leitura, e transformá-lo, “dançá-lo”, num filme de uma hora e meia. E tantos outros exemplos por aí.
 
Adaptar é traduzir. Se Rubens Figueiredo traduziu Guerra e Paz do russo para o português, King Vidor o traduziu da literatura para o cinema.
 
E tanto a tradução quanto a adaptação são atos criativos, mesmo sendo atos condicionados, restritos, presos a limitações obrigatórias. Não se pode (em princípio) colocar na tradução algo que não estava no original. Mas mesmo para colocar o que já estava, é preciso criar, é preciso ser imaginativo, porque sempre se trata de dançar uma cadeira.
 
A perda recente do prof. Maurício Lissovsky, falecido no Rio de Janeiro, fez alguns amigos compartilharem nas redes sociais alguns textos seus, e um deles me chamou a atenção porque tocava exatamente ness questão de criar algo tendo como ponto de partida um estímulo de natureza completamente diferente.
 
O artigo completo de Maurício, cujo tema era a fotografia, está aqui:
https://revistazum.com.br/radar/fotografia-e-musica/
 
A certa altura, ele diz:
 
Isso foi em 1950 ou 1951. O maestro Heitor Villa-Lobos entrou em uma das turmas do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico no Rio de Janeiro, colocou uma fotografia no quadro e perguntou aos alunos: “e então, que música ela toca?”. Não era a primeira vez que surpreendia os estudantes com uma proposta inesperada. Gostava de improvisar – todo mundo sabia. 
 
(...)   A fotografia circulou entre os alunos. A silhueta das montanhas era copiada em um papel, e as notas musicais eram distribuídas, a critério de cada um, pelos picos e vales, suas durações e intervalos sugeridos pelo relevo. No final do exercício, cada aluno, de olho na linha melódica que escrevera, cantava a sua “cordilheira”. Encerrada a aula, Villa sugeriu que procurassem fazer a mesma coisa olhando as montanhas do Rio. 
 
(...)  O método de composição – que era igualmente um instrumento pedagógico – foi denominado “Gráfico para fixar a melodia das montanhas” e consistia em cobrir uma fotografia com papel de seda milimetrado e desenhar nele o contorno das montanhas. Do encontro dessa linha com a grade milimétrica emanava a melodia e, eventualmente, dependendo da habilidade e disposição do estudante ou do professor, o ritmo e a harmonia. 
 
(...)   Talvez tudo não passasse de uma anedota, como uma história de Frederic Chopin que o professor espanhol poderia ter contado à minha mãe. Afinal, dizia-se que o compositor das célebres mazurcas divertia- se pregando papéis pautados em árvores e disparando contra eles uma carga de chumbo. Depois, para deleite de George Sand e sua turma boêmia, improvisava melodias no piano de acordo com os buracos. Música disparada, no tempo em que as máquinas fotográficas ainda não faziam clique.  (...) 



Um leigo despeitado, daqueles que acham que todo artista é picareta, pode ver nisso uma confirmação de que toda criação artística é uma vigarice, uma pegadinha. Que a Arte é uma contrafação para fazer de bobas as pessoas que nunca se interessaram por Arte, que nunca se sentiram à vontade diante dela, que por uma lacuna de formação viram-se sempre incapazes de decifrar seus idiomas. No mundo da Arte, tais pessoas sentem-se sempre estrangeiras, sempre refugiadas, nunca bem-vindas.
 
Na verdade, os exercícios de Villa-Lobos e a brincadeira improvisatória de Chopin não são o núcleo-duro do trabalho artistico (que geralmente é concentrado, é cansativo, exige uma absorção incessante de novos conhecimentos, exige um pensamento sempre alerta, sempre ligado, como uma luz sempre acesa). Isso aí são experimentalismos, tentativas meio às cegas, atividades descontraídas que têm algo de brincadeira com objetivo e algo de pesquisa sem compromisso.
 
Chopin usa o acaso para espalhar na partitura as “bolinhas pretas” das notas musicais. Sai uma música pronta disso aí? Dificilmente. Mas pode surgir uma forma incompleta de melodia que, percebida pelo artista, pode ser reelaborada. Pode ser, mais adiante, transformada numa peça musical séria. Pode resultar numa música executada pelos violinos de praxe, arrancando do “leigo despeitado” um suspiro de conforto, e quem sabe um murmúrio de: “Isso sim, é música de verdade...”
 
Por que tantos artistas plásticos e tantos escritores usam música, escutam música sem parar enquanto trabalham? Porque a música, sendo abstrata, emociona sem interferir. Fornece uma sucessão de estados emocionais que servirão de combustível para que o pintor imagine figuras, misture cores; ou para que o escritor articule situações e faça brotar diálogos carregados de significado... Música é energia. Carrega as baterias da alma.
 
E quantos escritores não gostam de se inspirar folheando revistas ou álbuns de fotografias? Para muita gente que escreve, basta virar uma página e encontrar uma foto banal de pessoas anônimas para começar a imaginar quem são, o que estão fazendo ali, que momento foi aquele que um fotógrafo captou num clique e foi embora, sem nunca mais pensar naqueles figurantes desconhecidos – e sem saber que seu clique levou um escriba a passar dias e noites seguidos contando (criando) a história de gente que nunca existiu, a partir daquela imagem de gente que talvez nem exista mais, e que nunca soube que foi fotografada.


(Maurício Lissovsky)