sábado, 28 de fevereiro de 2009

0853) Canções de escárnio e maldizer (10.12.2005)



Nos velhos livros de Português do ginásio estudamos que no Romanceiro Português Medieval havia vários tipos de cantigas: cantigas de amor, cantigas de amigo, e um gênero cujo nome sempre me fascinou: “cantigas de escárnio e de maldizer”. Por alguma razão freudiana, eu sempre me senti mais habilitado para este tipo do que para os demais, e só não me dediquei desde muito cedo ao seu cultivo por causa do meu espírito cristão (e do medo de levar cascudos). Depois, acabei fazendo algumas, das quais o bolero brechtiano “Soberano Desprezo” talvez seja a mais notória.

O gênero foi mantido vivo através dos séculos pela poesia popular, e ninguém escarnece tão bem quanto um cantador de viola. Em peleja com José Francalino, o Cego Aderaldo mandou: “Puxa fogo, cabeleiro / instinto do mal, Lusbel / febre negra de acobaça / dentes de leão cruel / Judas que cuspiu em Cristo / entranhas da cascavel”. E Francalino ripostou: “Puxa, puxa, cego velho / te sustenta a retintiva / apanha hoje não tem jeito / de chorar ninguém lhe priva / tu ronca no nó da peia / apanha até dizer viva”. A tradição do desafio de ofensas é inesgotável, e o seu encanto rude se prolonga pelo forró; basta ouvir Biliu de Campina cantando “Eu sou melhor do que tu” ou João Gonçalves dizendo “vai tomar banho na cacimba, quando tu levanta o braço ninguém agüenta a catinga...”

Escarnecer e falar mal são uma Grande Arte como qualquer outra. E ninguém é obrigado a recorrer ao insulto, ao palavrão, à ofensa direta. Temperamentos mais chegados à política e a diplomacia podem produzir textos igualmente arrasadores. Veja-se como o nosso atual ministro Gilberto Gil reduziu a pó seus detratores: “Tu, pessoa nefasta, vê se afasta teu mal, teu astral que se arrasta tão baixo no chão...” Leiam esta letra e tremam, amigos. É alta filosofia, e é cantiga-de-maldizer pra nenhum trovador da Galícia botar defeito.

Bob Dylan, que é outro PhD em Sarcasmo, tem duas canções monumentais neste gênero. “Positively 4th Street” (1965) é um acerto de contas, cheio de vitríolo, com os falsos amigos e os aproveitadores em geral: “Eu sei por que você fala de mim pelas costas; já freqüentei sua turma. Eu gostaria que por um momento você estivesse em meu lugar, para poder saber que droga é olhar pra você”. E em “Idiot Wind” (1975) ele diz: “Há um vento idiota que sopra toda vez que você abre a boca... Você é um idiota, rapaz. É um milagre que você saiba respirar”.

Os estudiosos da poética dos trovadores medievais explicam que as cantigas de maldizer eram dirigidas explicitamente contra Fulano e Sicrano, enquanto que as cantigas de escárnio eram menos diretas. A grande vantagem destas últimas é serem suficientemente explícitas para que o destinatário, na primeira vez em que as ouça, saiba de imediato que a carapuça lhe cabe, e ao mesmo tempo terem profundidade bastante (e riqueza exemplificativa) para serem uma receita de larga aplicação. Sempre há quem mereça.

0852) Corra, Lola, corra (9.12.2005)



Revi há pouco tempo, numa sessão de cineclube, o filme alemão Corra, Lola, corra, seguido de um debate com o físico Luís Alberto de Oliveira. O filme brinca com o conceito de Tempo através de uma história muito simples, contada três vezes de modo diferente. Lola recebe um telefonema do namorado, que se meteu numa encrenca. Ele topou fazer um repasse de drogas para um mafioso local, entregou as drogas, recebeu 100 mil marcos para entregar ao mafioso, mas acabou perdendo o saco com o dinheiro. Agora, ele e Lola têm apenas 20 minutos para conseguir 100 mil marcos. Ele pensa em assaltar uma loja. Ela pensa em chantagear o pai, que é banqueiro.

A história é contada num ritmo frenético, principalmente porque Lola tem um preparo físico de cair o queixo: ela corre a pé pela cidade, tentando resolver tudo a tempo. O filme conta a aventura do casal até uma certa altura, com um desfecho trágico. Depois, volta tudo ao ponto de partida, e a história acontece de novo, com vários detalhes diferentes, e outro desfecho trágico. Zera-se tudo outra vez; e novamente Lola sai pela cidade afora, e mais uma vez pequenas coisas acontecem de maneira diferente: ela deixa de esbarrar em alguém com quem esbarrara na “versão” anterior, por exemplo. E na terceira versão, chega-se a um final satisfatório.

Luís Alberto, entre outros comentários, propôs que víssemos no filme não três histórias sucessivas, em que depois de cada um “voltamos no Tempo” e começamos tudo de novo. Na teoria dos Universos Paralelos, imaginada pela Física (e muito explorada pela ficção científica), essas histórias existem simultaneamente, e basta uma variação infinitesimal em qualquer fato para que exista um Universo “ao lado”, que difere do nosso apenas nesse pequeno detalhe. As três aventuras de Lola estão acontecendo ao mesmo tempo, em universos um tanto afastados um do outro. Num deles uma pessoa morre num tiroteio. No outro, há o tiroteio mas ninguém se fere. Em outro o tiroteio é evitado, e assim por diante.

Agora à noite, por exemplo, eu ia sair para dar minha caminhada habitual (sou um sujeito de hábitos saudáveis), mas começou a chover e eu sentei ao computador para escrever este artigo. Num universo vizinho, não choveu, e estou lá caminhando. Num terceiro, alguém me chamou ao telefone, e estou batendo papo. Num quarto, fiquei lendo; num quinto, estou tomando café com a pamonha que acabei de comprar no Largo do Machado; num sexto, estou tomando café com bolacha; num sétimo, estou caminhando, mas choveu depois de dez minutos, voltei e fui ver TV; num oitavo, choveu depois de vinte minutos, voltei e estou escrevendo outro artigo... e por aí vai.

Borges explorou belamente esta fantasia físico-matemática em “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”. O filme Corra, Lola, corra nos mostra as três bifurcações do caminho de Lola; ou nos mostra três dos infinitos universos em que a história de Lola, como a nossa, existe simultaneamente.

0851) Superstições (8.12.2005)




Todo mundo as tem, não é mesmo? O mais interessante é que as superstições tanto podem ser coletivas como personalizadas. As coletivas aparecem em todo livro de folclore: espelho quebrado, gato preto, passar embaixo de escada, derramar sal na mesa, treze convivas... 

As superstições individuais podem ter origem familiar. Eu, por exemplo, não posso ver uma tesoura aberta (vou logo fechar) nem um chinelo emborcado (vou lá e desemborco). Por que? Imagino que porque minha mãe era assim, e eu herdei telepaticamente essa enorme sensação de desconforto diante dessas coisas. 

Algum crítico metido a espertinho virá me brandir o dedo: “Arrá! Quer dizer que você vive se gabando de ser científico e agnóstico, e tem medo dessas coisas?” Não é medo, meu caro. É incômodo. Tesoura aberta? Uma criança pode vir e se cortar. Chinelo emborcado? É como quadro torto na parede, prato sujo na mesa, cueca largada no chão do banheiro. Dá uma má impressão danada.

As superstições podem ter origem numa razão real. Quem passa embaixo de escada, por exemplo, arrisca-se a ter um tijolo ou uma lata de tinta caindo sobre sua cabeça. Melhor rodear, não é mesmo? 

A história de que treze pessoas à mesa dá azar vem do fato que os serviços de mesa, os famosos “faqueiros”, vinham com doze unidades de cada peça; treze pessoas à mesa significava que os anfitriões iam passar maus bocados para acomodar o comensal extra. (Mentira minha: inventei essa agora, mas, graças à Internet, daqui a cem anos ela estará em todos os manuais de folclore.) 

Quebrar um espelho está associado à morte, porque subentende-se que a pessoa que o fez “destruiu a própria alma”, ou seja, a própria imagem refletida. E assim por diante.

A superstição é uma pequena zona de tabu que estabelecemos, conscientemente ou não, em torno de certos gestos, palavras, objetos. É um folclore-de-uma-pessoa-só, se se pode tolerar o oxímoro, uma vez que a palavra “folk” implica num fenômeno coletivo. Todo mundo as tem, embora em geral só saibamos as dos amigos mais próximos e as das pessoas famosas. 

Guimarães Rosa assim descrevia a superstição: “Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez”. 

Nas páginas iniciais de “São Marcos” (em Sagarana) ele faz um censo minucioso dessas intuições auto-normativas. Rosa detestava que mencionassem seu nome em conexão com o Prêmio Nobel. Diferentemente de Borges, que sonhou em vão com o prêmio a vida inteira, o escritor mineiro achava que esse negócio era de mau agouro. 

Achava o mesmo da Academia Brasileira de Letras: durante anos, como é sabido, adiou a própria posse, temeroso de que o coração (que não andava muito bem) não aguentasse. E foi dito e feito: morreu três dias depois de empossado. Premonição? Auto-sugestão? Ou simplesmente a mente dividida em duas, a que cria tabus para si própria e a que os desafia?







0850) As Crônicas de Narnia (7.12.2005)



Está em todas as livrarias onde entro, espreitando-me do balcão principal, a maciça cabeça de um leão de olhos pensativos. Trata-se da tradução brasileira (Ed. Martins Fontes, 750 pgs.) das Crônicas de Narnia, o clássico de literatura infantil de C. S. Lewis, pela primeira vez com todos os sete livros reunidos num único volume. Cheguei a ler o primeiro, The Lion, the Witch and the Wardrobe, mas era difícil encontrar os títulos na ordem certa, e acabei deixando pra lá. Lewis foi um grande amigo de J. R. R. Tolkien, e não duvido de que o sucesso recente de O Senhor dos Anéis tenha trazido o nome e a obra dele à lembrança dos produtores de cinema (o filme de “Narnia” vai estrear em breve) e das editoras.

Lewis e Tolkien são uma dupla curiosa de escritores. Eram amigos, ambos ensinavam em Oxford, ambos eram homens introspectivos, ambos tinham um profundo problema religioso. E tornaram-se, quase ao mesmo tempo, dois dos principais autores de literatura fantástica da Inglaterra. Tolkien criou seu gigantesco universo da “Terra Média”, onde ambientou as histórias de O Hobbitt, O Senhor dos Anéis, O Silmarillion e tantas outras. Lewis escreveu uma trilogia de romances de ficção científica (Out of the Silent Planet, 1938; Perelandra, 1943; That Hideous Strength, 1945), em que os planetas do Sistema Solar servem como cenário da luta entre o Bem e o Mal. No final dos anos 1940, ele começou a publicar a série das “Crônicas de Narnia”.

Lewis era anglicano, Tolkien era católico. Os dois discutiam extensamente questões de literatura e religião, e tiveram profunda influência na obra um do outro. A rigor, quem quer que se interesse pela obra de Tolkien precisa dar uma espiada na obra de Lewis, para entender melhor o contexto em que as duas foram criadas. Não se pode esquecer também um terceiro escritor, Charles Williams, também autor de obras fantásticas; s três formavam um grupo informalmente chamado “os Inklings”. Lewis foi um típico intelectual solteirão até a idade madura, quando conheceu uma americana com quem se casou e teve um breve episódio de felicidade conjugal até a morte dela, poucos anos depois. Há um belo filme contando esta história, Shadowlands, com Anthony Hopkins e Debra Winger.

“As Crônicas de Narnia” foram lidas por milhões de crianças no mundo inteiro pelo simples prazer das aventuras que narram, e foram estudadas por centenas de acadêmicos pela complexa simbologia cristã que encerram. Fico meio temeroso quando vejo Hollywood adaptar obras desse tipo, porque na melhor das hipóteses o que pode acontecer é o que Walt Disney fez com “Alice no País das Maravilhas” de Carroll – um desenho simpático, criativo, divertido, mas a léguas de distância da riqueza de referências contidas no livro original. Em todo caso, os livros estão disponíveis em português, tanto na edição conjunta quanto em volumes separados.

0849) No princípio era a roda (6.12.2005)



Faleceu recentemente no Rio o jornalista e crítico musical Roberto Moura, após contrair a “febre maculosa” que tem vitimado algumas pessoas aqui no Estado. Ao que parece, Moura hospedou-se numa pousada em Itaipava onde foi picado por carrapatos; morreu alguns dias depois. Nunca o conheci pessoalmente, mas durante anos acompanhei seus artigos na imprensa. Foi uma perda lamentável, além de tudo pelo fato de ser ele uma pessoa que pesquisava a sério a história do samba carioca, em livros como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro (1983) e No princípio, era a roda (2004). [Nota: fiquei sabendo depois que são dois autores diferentes, com nomes parecidos. O autor de Tia Ciata é outro.]

Moura abre este segundo livro com uma tese interessante. Resumindo, ele diz que não foi o samba que deu origem à chamada “roda de samba” (grupo de amigos que se reúne para tocar, cantar, beber, comer, divertir-se), e sim o contrário. Ele afirma que não descobriu a pólvora, que isto é algo mais ou menos sabido por todo mundo que pesquisa o samba e escreve sobre o samba, só que não havia sido ainda afirmado de maneira categórica. Ele o faz agora, e essa pequena inversão que propõe (e que me parece correta) ajuda a entender como surge esse tipo de música – e pode nos ajudar também a estudar melhor o aparecimento do forró e da Cantoria de Viola.

Inspirando-se em teses de Roberto da Matta, Moura estabelece dois tipos de ambiente para a música popular: a casa e a rua. Num, estamos no ambiente íntimo doméstico, comunitário, onde amigos fazem música para se divertir. No outro, estamos na esfera pública, do espetáculo, da organização de entidades, do profissionalismo. Na casa, vigora a roda de samba; na rua, a escola de samba. Para Roberto Moura, já aconteciam rodas de samba (ou seja, esses “pagodes de fundo de quintal”) antes mesmo do samba se firmar como gênero musical, com suas características harmônicas, rítmicas, melódicas, estruturais. Era o folguedo típico das comunidades negras cariocas no século 19 na chamada “Pequena África” – o bairro popular que se estendia do cais do Porto até a Cidade Nova, em torno da Praça Onze, e que as reformas urbanas posteriores botaram abaixo, expulsando aquelas populações para os morros vizinhos. (Daí ser historicamente inexata a expressão “o samba nasceu no morro”. O samba, neste sentido estrito, nasceu nos bairros populares do Centro, e só se refugiou nos morros bem depois).

Fim-de-semana. Um bar ou uma residência começa a se encher de gente. Instrumentos musicais vão aparecendo, um grupo se forma. Os bambas tomam a iniciativa, mas todos participam, cantam, batem com facas em pratos e garrafas. Na cozinha, as mulheres preparam panelas e mais panelas de comida. O dia se passa, a bebida circula, os grupos se revezam, a música não pára. Em torno dos músicos, conversa-se sobre futebol, sobre trabalho; casais namoram ou paqueram. Crianças circulam por ali o tempo todo, e serão elas os futuros sambistas. O samba nasceu em ambientes assim.