domingo, 30 de junho de 2013

3226) Os Adversários (30.6.2013)




(foto: Bazuki Muhammad)

No dia em que o Botafogo foi campeão com o gol de Maurício (há dezoito cariocas que se refestelam nessa frase carregada de semântica afetiva) eu vi o Flamengo tremer e o Catete vibrar. Eu morava numa casa encravada na ladeira da Tavares Bastos, no Catete, de onde eu descortinava (sim, descortinava, isto aqui é uma crônica) uma vasta visão horizontal desses bairros. Aquele jogo foi uma predestinação. O juiz era um rapaz que chamavam “Bianca”, e nosso medo era que o Botafogo, notoriamente inferior, apelasse para a violência intimidando Sua Senhoria. Sua Senhoria se saiu até que bem, e o Flamengo teve chance de vencer até o último lance de Zico em campo, uma falta que passou raspando na trave esquerda do gol alvinegro. E aí vem aquele contrataque veloz puxado pela esquerda (o Flamengo só leva gol em contrataque, por que será), bola cruzada na área, o negão se jogando pra frente como um mané-gostoso e esbarrando na bola com o pé para o fundo das redes. O chão do Rio ficou se tremendo, e os terraços se povoaram como por encanto.

Eu fico meio feliz quando, no dia em que perco, pelo menos a festa do adversário é uma festa bonita.  O torcedor de futebol não deve amar tanto seu time que não veja (mesmo que roendo-se de inveja) o momento bonito do adversário. Às vezes uma derrota que nos parece meramente incômoda, acaba-festa, desmancha-prazeres, é para nosso adversário um triunfo em Trafalgar, uma invasão de Iwo Jima, uma façanha nas Termópilas. Demos um tropeção que nos custou caro; na arquibancada deles, parecia o começo de um milênio novo. Ninguém entende direito os fatos históricos de que faz parte. A historiografia demonstra que muitos soldados ingleses só tempos depois foram saber que haviam ganho a batalha de Waterloo.

Só achamos um sabor de vitória nas derrotas elas permitem ao nosso adversário continuar vivo. Sem o Maracanazo de 1950, o futebol uruguaio poderia já ter degenerado em rugby, sua tendência mais preocupante.  Os outros times, as Itálias, as Espanhas, as Alemanhas, as Franças, também têm direito de ganhar. Os Botafogos, os Campinenses, os Vascos, os Santa Cruzes, os Cruzeiros, os Fluminenses, os Náuticos precisam existir, precisam crescer, tornarem-se grandes, porque é a grandeza da montanha que faz a do alpinista. Temos que alimentar nossos adversários, tratar bem deles, fortificá-los, dar-lhes coragem e força para as lutas que travaremos. Quando perdemos, temos que aplaudir sua vitória e agradecer sua sobrevida. Adversário só presta grande. Não queremos que desapareçam; queremos que se tornem fortes, para terem coragem de vir de novo ao nosso encontro.




sábado, 29 de junho de 2013

3225) Sim, Majestade (29.6.2013)




Eu era príncipe. Disseram-me desde cedo que eu estava sendo preparado para mandar. Um desejo meu era uma ordem.  A ordem, às vezes, nem precisava ser dada: eu pequeno erguia o dedo, e era como se tivesse desferido uma seta. O que eu apontava era trazido e posto aos meus pés, rodeado de olhares expectantes. Para eles, se eu, com cinco anos de idade, apontava algo, era porque havia um relâmpago do sagrado comandando aquele gesto, havia uma orquestração de vibrações divinas focalizando meu olhar e meu desejo naquele objeto. Eu apontava, ordenando. Eles traziam, colocavam aos meus pés e diziam: “Sim, majestade”.

Dizem que a infância é o melhor da vida, e que nada no presente se compara ao que nos ficou para trás. Entrar na adolescência foi para mim o difícil treinamento de viver num mundo que, estranhamente, se recusava a se dobrar ao meu reinado. Eu dizia: Não quero que chova amanhã; e chovia. Eu jogava uma pedra para cima e dizia: Eu não quero que ela caia; e ela caía. Eu chicoteava os servos, cuspia de fúria, babava de revolta; havia certos setores do mundo que não me reconheciam como rei.

Devo dizer que isso me entreteve durante anos? Que isso exauriu minhas forças, estragou o melhor de mim? Não vi a queda lenta do império que me cabia comandar. Vi o reino, o meu reino, se extinguir; vi a vida do mundo se esvair; vi um mundo tão selva em seu lugar. Os incêndios lavraram na medula das minhas fortalezas, dos meus refúgios. Vi meu povo de joelhos diante de alguém, dando-me as costas. As correntes da escravidão nos sujigaram a todos. Fomos levados a um cativeiro distante num lugar inóspito onde os pássaros bicavam sem motivo o nosso rosto. Lavramos pedras, quebramos rochas, nenhum dos escravos sabia que escravo era aquele, tão silente. O que me consolava era erguer a marreta e pensar: “Quebra, pedra” – e a pedra quebrava.

Tempestades de areia e uma doença de manchas roxas exterminaram nossos carcereiros. Fugi tanto deles quanto dos outros escravos (ser um deles me envergonhava) e me perdi no deserto. Um dia vi-me cercado por uma tempestade de areia e julguei morrer, mas logo percebi não ser areia, e sim uma espécie de névoa, de vapor dágua. Uma névoa muito fina que me envolvia e me gelava os dutos de respiração acostumados ao sol escaldante. Percebi estar entrando num mundo onde a natureza era diferente da que eu conhecera. Vi diante de mim uma massa enorme de granito com mais de duzentos metros de altura. E quando a névoa se esgarçou percebi que aquilo era um pé, um pé ciclópico. Uma voz perguntou na minha mente: “E agora, consegues me ver?”. E eu abaixei minha cabeça e disse: “Acho que sim, majestade”.


sexta-feira, 28 de junho de 2013

3224) Eu me lembro - I (28.6.2013)






(armazéns de algodão na rua Miguel Couto)



Eu me lembro de barraquinhas do lado de fora do Mercado São José, no Recife, onde eu, aos 13 anos, via pilhas de revistas Suspense, X-9 e Meia Noite, mais altas do que eu. 

Eu me lembro de andar na beira do Açude Velho e um dia ver uma abertura na calçada e lá embaixo uma espécie de sala cheia de canos muito grossos, tubulações de ferro, instrumentos zumbindo. 

Eu me lembro do Beco da Fome no Rio de Janeiro e o meu prato preferido, “arroz com dois ovos fritos”. 

Eu me lembro de Crush e Grapette, de Kitut e Presuntada Wilson, de confeitos Gasosa, dos Drops Dulcora, “quadradinhos, embrulhadinhos um a um”.

Eu me lembro das quatro enormes cabeças de bronze que havia na Praça Sete, no meio da avenida Afonso Pena em Belo Horizonte. 

Eu me lembro dos animais empalhados na vitrine do Palacinho da Criança. 

Eu me lembro das antigas redes Entrelivros e Unilivros, no Rio, com balcões cheios de livros de ponta-de-estoque a preço de banana. 

Eu me lembro das folhas de plástico transparente e colorido que eram colocadas diante das TVs em preto-e-branco. 

Eu me lembro da campanha política para prefeito entre Severino Cabral “Pé de Chumbo” e Newton Rique “Mão de Seda”. 

Eu me lembro dos doces de leite cortados em forma de losango nos cafés de Belo Horizonte. 

Eu me lembro de quando algumas meninas do Estadual da Prata eram barradas na entrada porque estavam com sutiã preto sob a blusa branca.

Eu me lembro da estátua da “Samaritana” de Abelardo da Hora na Praça da Bandeira, em frente ao Correio. 

Eu me lembro da casa em forma de navio que havia na praia de Boa Viagem. 

Eu me lembro de quando Arlindo “Nova Seita”, pandeirista da Escola de Samba XV de Novembro, trouxe a bateria da escola para tocar dentro da casa da gente no Alto Branco. 

Eu me lembro do banheiro do Cine Paissandu, no Flamengo, com suas pias e privadas em louça toda negra. 

Eu me lembro da Festa da Mocidade no descampado onde depois virou a Rodoviária Velha e depois na Praça da Bandeira em frente às Damas.

Eu me lembro do incêndio da academia de artes marciais de Ivan Gomes, na Maciel Pinheiro. 

Eu me lembro do “galeto al primo canto” da Palhoça do Melo, no Recife. 

Eu me lembro da Rua do Catete esburacada e cheia de tapumes de ponta a ponta para as obras do metrô. 

Eu me lembro de quando o carro com Juscelino Kubitschek acenando passou diante da nossa casa na rua Miguel Couto, subindo rumo ao centro de Campina. 

Eu me lembro dos pirulitos de melaço, pequenos cones enrolados em papel de embrulho, enfiados nos orifícios feitos em tábuas quadradas, presas na ponta de um cabo que os vendedores levavam inclinado ao ombro como um fuzil numa parada militar.







quinta-feira, 27 de junho de 2013

3223) O colecionador maluco (27.6.2013)




(Marcelo Grassman)

Há uma frase de H. G. Wells capaz de intrigar qualquer leitor. Disse ele, no transcorrer de uma argumentação qualquer: “Um milionário maluco que encomendasse obras-primas apenas para queimá-las acabaria descobrindo não ser capaz de comprá-las”. Meu primeiro entendimento foi de que se um maluco comprasse quadros de Renoir e Van Gogh e os incinerasse, logo ninguém lhe venderia telas, para que não atrapalhasse o mercado. Ou talvez com um horror diante de tal crime, porque até contrabandistas e falsários têm amor à verdadeira arte. (Não é por desdém a ela que fazem o que fazem.)

Mas suponhamos que Hans Rottensteiler, pintor berlinense, falecido num sanatório após trinta e um anos de dissipação e ziquizira deixou apenas onze quadros, todos agora valorizadíssimos. E suponhamos que esses quadros remanescentes começassem a ser queimados, um a um, em circunstâncias inesperadas, valorizando proporcionalmente os quadros restantes... Para ficar óbvio que o criminoso é o que sobrar por último, com os quadros mais caros. (Embora este último se jure inocente e ansioso para se livrar dos quadros.)

Ou então que o verbo “encomendar” no enunciado não fosse a ordem peremptória de “Tragam-me um Toulouse Lautrec, dois Gauguins e um Francis Bacon!”. Fosse assim: o milionário contrata um muralista para pintar centenas de metros quadrados de superfície, com um projeto grandioso e uma execução impecável, apenas para ser queimado na noite da vernissage. Na hora combinada, todos subiriam para um belvedere, e o mural arderia em chamas. Câmaras e celulares seriam proibidos (e mesmo assim alguém filmaria).

Podemos também reinterpretar o “não poderia comprá-las” do final. Não poderia porque, devido às flutuações da Bolsa e à quebra da Lehman Brothers, nosso bom milionário hoje só tem de portentosas as dívidas. Mora num apartamento, sustentado por um industrial que se apiedou dele. Vive pelos restaurantes (tem uma mesada razoável de seus ex-sócios, todos aliás se deram muito bem na nova época) pedindo assinatura em listas de subscrição para que ele some três milhões de dólares e consiga comprar o Chagall que ambiciona ver arder.

Há um conto de John Crowley em que um homem constrói uma máquina do tempo e pode ir ao passado e trazer de lá apenas uma coisa, uma coisa que ele próprio possa carregar consigo. (Não vale uma pirâmide, portanto.) Ele vai à Guiana, e traz um selo, lançado no dia exato para onde ele viajou. É um selo único e valiosíssimo. O simples aparecimento de uma coisa tão frágil seria uma baita sacudidela num mercado. Não precisava ser a Mona Lisa: um retangulozinho de papel valendo milhões e ceifando vidas.


quarta-feira, 26 de junho de 2013

3222) Genealogia 2013 (26.6.2013)




A lua cheia gerou jibóias paranóicas que infestaram os planetas circundantes. As jibóias geraram triângulos, sendo que cada um deles era uma catástrofe inteiramente evitável. Os triângulos geraram ametistas falsificadas para os brincos das embaixatrizes e das cafetinas. As ametistas geraram alfarrábios caducos e cada dia menos inteligíveis. Os alfarrábios geraram Trombômega, elefante grego especialista em elefoas, gregas ou não. Trombômega gerou muralhas ao seu redor, tão numerosas que ele sumiu até hoje. As muralhas geraram um cíclotron de madeira que acelerava carunchos e cupins. O cíclotron gerou um Minuto em forma de circunflexo, para o qual não se achou utilidade. O minuto gerou uma espingarda que atirou no que é vil e matou o que não é vil. O tiro gerou um trocadilho com gosto de pedido de socorro. O trocadilho gerou um chofer de lotação com curso de kamikaze em Hong Kong. O chofer gerou ovos de águia, urubu, borboleta. Os ovos geraram águias, urubus, mas nenhuma borboleta. As águias e os urubus geraram a hesitação. A hesitação gerou a brisa no oco das cavernas. A brisa gerou peixes oceanógrafos, centenários. Os peixes geraram bigodes sem rosto e sem linguagem. Os bigodes geraram um cogumelo metade fogo, metade fumaça. O cogumelo gerou sapos musculosos sob a epiderme dos incautos. Os sapos geraram círios fúnebres que sobreviviam aos seus fabricantes. Os círios geraram camas vazias e sonâmbulos exaustos. As camas geraram chuva interminável, fizesse ou não fizesse sol. A chuva gerou estradas sem raízes que viviam se mudando. As estradas geraram sepulturas abertas, devorando os passantes. As sepulturas geraram relvas espinhosas e ásperas como nervos secos ao sol. As relvas geraram gotículas de fumaça cor de ferrugem. A fumaça reverteu às chaminés e gerou as mãos de um homem trabalhando. As mãos geraram o resto do homem. O homem gerou flores que eram como olhos. As flores geraram relâmpagos para conversar. Os relâmpagos geraram imagens gravadas na abóbada celeste. As imagens geraram reflexos maiores nas abóbadas maiores que as cobriam. Os reflexos geraram Deus. Deus gerou o Diabo que se revoltou contra ele e gerou o homem. O homem se revoltou contra o diabo e gerou o Sangue, que não é o sangue invisível de nossas veias. O Sangue gerou um altar de gelo no meio de um deserto cercado de cidades por todos os lados. No altar se gerou uma adolescente de rosto sem memória, e o seu sexo, e o míssil intercontinental que a penetrou. E depois da apocalíptica explosão surgiu nas bordas da cratera, empoeirado, tonto, e com as calças pelo avesso, ele, o abominável homem dos trópicos, Trupizupe, o Raio da Silibrina. 




terça-feira, 25 de junho de 2013

3221) Marcelo Grassmann (25.6.2013)




Ele talvez tenha sido o primeiro artista fantástico brasileiro da minha vida. Em revistas, catálogos e suplementos literários as suas gravuras sombrias e detalhistas chamavam a atenção pelo traço característico e pela temática surpreendente. A arte brasileira tem dois troncos principais, o experimentalismo formal e o realismo social. Grassmann viajava num mundo gótico só dele, um mundo com cavaleiros de alabardas e elmos ameaçadores, de dragões e ogros, de abantesmas sem nome.  Suas gravuras estavam repletas de avejões noturnos com bicos sequiosos, larvas, florestas impenetráveis, castelos e torreões. Lembro de ter visto aqui e ali comentários desdenhosos que elogiavam sua técnica mas o consideravam “pouco brasileiro”. Sua arte, no entanto, era tectônica: ia nas placas profundas onde repousam tanto o Brasil quanto a finada Atlântida e o fictício Zothique.

Faleceu no dia 21 de junho passado, aos 87 anos. Foi um grande desenhista, e a parte mais significativa de sua obra está em gravuras em pedra e metal. Deixo ao Google a informação sobre seus numerosos prêmios e distinções. O que nos atrai em sua obra é esse clima expressionista e simbólico, cheio de Templários, fantasmas, ogivas, mastins. Diz ele: 

“Embora formalmente a Renascença tenha me dado muito mais que a Idade Média, a Idade Média era mais carregada de coisas interiores, a meu ver, do que a Renascença, que já começava com uma preocupação formalista, de estilo, maneira, de como encarar as coisas, mais do que quais as coisas a serem encaradas. Os flamengos adoravam fazer o inferno, porque no inferno havia a proposta de milhões de fantasias. Bosch, por exemplo, parte para toda aquela loucura de figuras dentro de armaduras, meio peixe, meio gente, meio cômico e, no fundo, eu sofri influências importantíssimas dele. O mundo de Bosch é cheio de diabolismos, de fantasias, de coisas que não são de todo mundo. Já a China me deu duas coisas: um dragão e alguns diabinhos. Os etruscos me deram pouca coisa, os egípcios me deram muito mais, com suas zoomorfias religiosas”.

É curioso que numa época como a atual, em que a Fantasia Heróica vem conquistando tantos leitores no país (através de séries como “O Senhor dos Anéis”, “Game of Thrones” e outras) a obra de Grassmann estivesse meio esquecida. Porque ele descobriu esse universo meio século atrás, e o cultivou com sensibilidade estética e uma certa sensualidade, que corria paralela com os monstros, com o lado tenebroso.  Foi o nosso grande fantasista, criando uma obra pessoal, sombria, mas cheia de inventividade, retornando, numa espiral insistente, aos temas, paisagens e seres que mais o atraíam.


domingo, 23 de junho de 2013

3220) Não faça esforço (23.6.2013)




Às vezes, digo isto só para ver a reação das outras pessoas. Estamos num segundo ou terceiro andar, e na hora de ir embora pergunto: “Por que a gente não desce pela escada?”  Olhares de incompreensão. A reação é sempre tipo: “Mas por que descer pela escada, se temos o elevador?”.  Saímos de um boteco, no início da noite, rua cheia de gente, e eu digo: “Vamos em tal lugar”. Fica a cinco quarteirões. As pessoas dizem: “Vamos pegar um táxi”. Eu digo: “Não, vamos andando.” Elas: “Por que andando, se podemos pegar um táxi?”.

As pessoas que se recusam a subir e descer escadas de prédio (escadas claras, espaçosas, seguras, em 99% dos casos) e a andar meia dúzia de quarteirões são as mesmas pessoas que se preocupam com o colesterol ou o pulmão, ou que se queixam de que estão dez quilos acima do último ultimato que deram a si mesmas. Essas pessoas, claro, são as mesmas que acabam gastando uma bela grana para ir (de carro) a uma academia e passar a tarde andando numa esteira que não vai para lugar nenhum.

Essa psicose de evitar pequenos esforços físicos é um dos exemplos (que não me ouçam os psicanalistas!) do espírito de autodestruição do ser humano.  O impulso de Tânatos, o impulso da morte. Temos com a morte uma relação meio impudente e imprudente. Como sabemos que é inevitável, não ficamos à espera: metemos os pés e vamos ao encontro dela, dizendo: “E aí, vai encarar”?  É a única explicação possível para essa insidiosa autodestruição.

O sujeito que inventou o controle remoto de TV provavelmente causou a morte de uns 150 milhões de pessoas devido a doenças cardiovasculares. Aquele exerciciozinho de levantar do sofá e ir girar botões na TV vinha até então prolongando a vida útil de muitas artérias. Dizem os humoristas (com razão) que a mola propulsora da ciência e da tecnologia é a preguiça humana, a intuição de que deve haver uma maneira mais fácil de fazer qualquer coisa. Mais fácil significa geralmente uma maneira que nos poupe de fazer esforço físico. Não canso de ficar perplexo diante das idiotices que são inventadas em nome disso. Escova-de-dentes elétrica (para poupar o movimento do braço)... Lâmpada do teto com controle remoto...

Parece que existe todo um setor da engenharia destinado a estudar nosso cotidiano e descobrir quais os movimentos físicos que podem ser substituídos por uma maquinazinha que produza o mesmo efeito e possa ser comprada em doze vezes no cartão. As pessoas preferem as escadas rolantes às escadas de verdade, queixam-se o tempo todo de que precisam fazer atividade física, mas nunca têm tempo e ainda não acharam a marca de tênis mais adequada.







sábado, 22 de junho de 2013

3219) Roubo no Baile de Gala (22.6.2013)





(Ladrão de Casaca)


É uma figura dramática que talvez não se encaixa em todos os gêneros, mas que traz muita animação a alguns deles. Essa situação (uma das 7, ou 36, ou 100 situações dramáticas essenciais, dependendo do autor) pode variar muito de ambientes, mas sua estrutura principal é assim: num local fechado (hotel, palácio, prédio público) está havendo uma cerimônia ou festa especialíssima, com muitos convidados, e alguém vai se valer disso para tentar um golpe ousado e profundo contra os organizadores. Basta pensar nos salões chiques da Riviera Francesa onde Cary Grant, em Ladrão de Casaca de Hitchcock, revivia o mito daqueles ladrões de jóias por quem se apaixonavam todas as socialites, um pessoal tipo Raffles, Arsène Lupin, Simon Templar (“O Santo”), Irving Le Roy, etc.

Não tem que ser um roubo; e tanto podemos estar torcendo pelos donos do baile quanto pelos assaltantes. Este último caso me lembra “A Dança dos Vampiros” de Polanski, aquele minueto-quadrilha num salão todo espelhado em que só os intrusos disfarçados de vampiro se veem (no pior momento possível) como as únicas imagens refletidas.

Não precisa ser um baile. Pode ser uma coroação, ou um casamento real. Quando todas as atenções do mundo estão voltadas para um acontecimento central, nítido, ensaiado, agendado, pré-pesquisado por todos... Que melhor momento para se infiltrar e aplicar um golpe no coração do adversário? Novelas, folhetins, filmes B, todos gostam dessas situações em que pessoas ricas e poderosas precisam manter as aparências de normalidade enquanto uma invasão plebéia está se processando. Uma situação que só o surrealismo poderia condensar numa única imagem: aquela de L’Âge d’Or de Buñuel, quando no meio do baile surge uma carroça cheia de operários bêbados que atravessa o salão inteiro sem ser percebida.

Casais que acertam uma fuga conjunta (ou um encontro erótico de meia hora) durante uma festa num palácio. Ladrões de jóias, ladrões de corações femininos. Agentes seguindo um suspeito num baile de máscaras. O atentado com atirador de elite na hora da coroação ou no “sim” do casamento. Arsène Lupin, o Ladrão de Casaca, era especialista nessas infiltrações na festa alheia, essas intrusões do espírito saltimbanco e pick-pocket do povo dentro de um regabofe de ricos despreparados para lidar com malandros autênticos. O dinheiro dos potentados, que pensam somente em enriquecer e em acumular mais e mais, pertence por justiça poética àqueles que querem ver as riquezas circulando, exibindo sua energia torvelinhante, mercurial. Acumuladores de riquezas não são merecedores delas. Tranquem todas as entradas e saídas, mas não vai adiantar.



quinta-feira, 20 de junho de 2013

3218) A rua pegando fogo (21.6.2013)




(foto: Rodrigo Motta)

Movimentos políticos de rua têm de tudo. Jovens preocupados com o futuro do país em que viverão um dia suas velhices (pensem nisto agora, amigos). Velhos relembrando os bons tempos da “revolução no ar”. Baderneiros e vândalos. Hippies, hipsters, ripongas, ripadores de animê. Tímidos que jamais soltariam um berro daqueles na Av. Rio Branco se estivessem sozinhos. Agentes de extrema-direita e de extrema-esquerda infiltrados. Gente descontente com os partidos. Militantes ingênuos para quem o único partido sem políticos corruptos é o seu.

Muitos que estão ali são meros curiosos, satisfeitos em participar de um momento fora do comum, porque terão uma história para contar no dia seguinte: “Olha, ninguém me disse: eu estava lá...”. Entre aquelas dezenas que erguem cartazes  e faixas, você vai encontrar lado a lado duas pessoas que, se parassem para acertar os ponteiros, passariam quatro anos discutindo sem chegar a um denominador comum. Mas erguem os cartazes, protestam, cantam hino, andam lado a lado, e cada um deles acredita que está indo na direção certa. Podem até estar.

Manifestação tem skinhead, aposentado, marqueteiro, universitário jubilado, balconista, comerciante, batedor de carteira, vendedor de picolé, trotskista, keynesiano, sadomasoquista, evangélico, flanelinha. Tem modelo-e-atriz, manicure, perua, piranha, filhinha da mamãe, filhinha do papai, socialite, socióloga,  feminista, doméstica, filósofa, poetisa, cobradora de ônibus.  Todos tentam, num momento assim, encontrar um movimento coletivo que lhes dê a sensação de serem um só, sem ao mesmo tempo desbastar as arestas de individualidade que os definem.

Em toda manifestação alguém vai depredar um prédio público ou um banco particular. Alguém vai queimar latas de lixo ou carros estacionados. Se a manifestação fizesse isso o tempo inteiro, ia se desmoralizar. Mas (vejam só as ironias da nossa civilização!) os carros incendiados e as vidraças partidas doem mais fundo nas autoridades do que as palavras de ordem ou as reivindicações ordeiras. Autoridades são zumbis. Enquanto puderem fazer de conta que estão mortas, fá-lo-ão. Um milhão de vozes bradando uma queixa justa podem ser ignoradas; mas a pira de labaredas consumindo símbolos civilizatórios  como carros ou placas da Fifa é algo que os horroriza na sua medula mais íntima. Eles veem que o Poder não os blinda por completo, e que para aquela multidão nem o que é mais sagrado merece respeito. E em homenagem a esse símbolo sacrificado em holocausto (“Queimaram carros!  Por que não queimam um sem-teto?!”) eles admitem que a Rua é real. E sentam para negociar.

(OBS. texto escrito na 4a-feira, 19 de junho, após o pronunciamento conjunto de Alckmin & Haddad)



3217) Escrever pensando (20.6.2013)






Os neurocientistas afirmam (http://bit.ly/10GJfrT) que quando a gente escreve estimula mais áreas do cérebro (lobo frontal, lobo parietal, sistema de ativação reticular, etc) do que quando está apenas lendo, ouvindo ou falando. O ato de escrever a mão ou num teclado mobiliza diferentes áreas motoras e sensoriais. E isso contamina o que se passa pela nossa mente. Por isso se diz aos escritores profissionais: não fique pensando, escreva; não fique só imaginando, escreva; não queira ter a história toda pronta na cabeça antes de escrever. Porque quando chegar o ato de escrever, você vai estar pensando, em termos práticos, com um cérebro mais amplo do que o cérebro que pensava antes. Treino é treino, e jogo é jogo.

Não sei quanto aos cientistas, mas como escritor eu vejo assim. Digamos que você está escrevendo uma história de um casal que, viajando à noite numa estrada deserta, tem um problema no motor do carro. Discutem --- devem esperar socorro?  Sair andando à procura de uma casa próxima? Se eu estou deitado na rede imaginando a cena, tudo fica num plano vagamente mental de imagens visuais superpostas, antes, depois, fragmentos de diálogos semi-imaginados, ocupando uma área relativamente limitada do cérebro. Mas é diferente se enquanto imagino a cena total eu estou escrevendo.

“—Puxa vida, disse Sandra, você quer que a gente saia andando nesse escuro? – Meu amor, disse Fernando, melhor do que ficarmos aqui no carro, numa estrada onde não passa ninguém, porque na última meia hora a gente não ultrapassou nenhum carro. – Mas é uma estrada, disse Sandra, cedo ou tarde vai passar alguém. Mas quando ela disse isso Fernando já tinha partido a passos largos, e ela, mesmo engolindo a raiva, tirou as sandálias altas e o seguiu”.

Escrever isso ativa (através das mãos e dos olhos) centros motores que não são ativados pelo mero devaneio, e daí começa um feedback em que esses centros começam a xeretar o texto e dar palpite. O diálogo acima foi improvisado agora, em meio minuto; eu pensava em escrever apenas as falas, e de repente me vi fazendo Fernando meter o pé na estrada e a mulher segui-lo, com esse detalhe que eu não antevira (mas para mim plausível) de tirar as sandálias de salto alto.

Envolver o corpo na escrita é um segredo que alguns resolvem ditando em voz alta para um gravador ou uma secretária; outros, escrevendo em pé (Hemingway), outros escrevendo à mão num caderno; outros, usando a máquina de escrever como se fosse um piano de ragtime. Falar em voz alta. Gesticular. Caminhar pelo escritório. Ativar os cinco sentidos, a percepção espacial, a coordenação motora. Eles nos ajudam a imaginar melhor.


quarta-feira, 19 de junho de 2013

3216) O Inominável (19.6.2013)





Dá pra pensar em dois escritores mais diferentes do que H. P. Lovecraft e Samuel Beckett? Eu diria até que a zona de intersecção entre o universo de leitores de um e de outro é bastante estreita. 

Pode até haver gente que tenha lido alguma coisa de um e alguma coisa do outro, mas gente que conheça bem (e admire) a obra de um e de outro é uma arquibancada meio vazia.


“Estávamos sentados sobre um arruinado túmulo do século 17, ao fim da tarde de um dia de outono no velho cemitério da cidade de Arkham, e estávamos especulando sobre o Inominável”. 

Assim começa um conto de Lovecraft, “The Unnamable” (1939). Expressões como inominável, indizível, sem fala, etc são frequentes no terror lovecraftiano, que despeja sua descarga numa medula pré-verbal que todos nós temos e que não é comandada pela linguagem, pelo menos a linguagem com que nos defendemos da realidade durante o dia a dia.  

Anne Sexton, numa carta de 1963, dizia: 

“As palavras me incomodam. Acho que é por isso que sou poeta. Eu fico me forçando a falar das coisas que permanecem mudas dentro da gente. Meus poemas só chegam quando eu já quase perdi a capacidade de articular uma palavra. De falar, de certo modo, do infalável. Produzir um objeto a partir do caos... Para dizer o que? Um último grito no vazio”.

Ninguém celebrou o Inominável tão bem quanto Samuel Beckett, cuja obra parece uma tentativa de recobrir com linguagem incompreensível a falta de sentido da existência humana. 

L’Innomable é um romance de 1953, que de romance só tem mesmo a designação, porque os críticos se divertem sugerindo novos nomes de gêneros literários para incluir obras assim, monólogos aparentemente desconexos em que a mente do narrador dá voltas e mais voltas sobre si mesma, narrando ações que talvez sejam imaginárias ou descrevendo ambientes que talvez não existam. Personagens sem nome, ou que mudam de nome no meio da história, ou que afirmam ser falso seu nome.

O inominável de Lovecraft é o horror monstruoso. Em certo momento percebemos que o mundo hospeda criaturas poderosas e malignas que se divertem destruindo seres humanos fisicamente, ou levando-os à loucura. 

O inominável de Beckett é o horror existencial. Em certo momento percebemos que o mundo não hospeda nada além da cortina de aparências materiais de que é feito. A relação entre as coisas e a linguagem é uma mera convenção, porque todas as coisas, em sua essência, são inomináveis, são uma existência pura, selvagem, monstruosa. 

Guimarães Rosa registra, entre os muitos nomes do Diabo, o Não-Sei-Que-Diga. É algo forte demais, pesado demais, capaz de rasgar qualquer invólucro verbal com que se procure contê-lo.








segunda-feira, 17 de junho de 2013

3215) Não são 20 centavos (18.6.2013)




Tudo indica que esta semana também vai ser de gente protestando nas ruas e a polícia descendo o cassetete. Dizem as autoridades e uma parte da imprensa que as manifestações têm como objetivo o vandalismo. É mentira. Vândalos e desordeiros se infiltram em qualquer multidão, até em torcida de futebol comemorando título. Alguns são manifestantes que querem sinceramente protestar mas também aproveitam para descarregar a raiva em vidraças e lixeiras. Outros são os habituais arruaceiros inimigos infiltrados, agindo contra a manifestação para sujar sua imagem. (É o que em política partidária se chama a “turma da pesada”, que ganha para ir aos comícios dos adversários e aprontar confusão.) E existem baderneiros que nem sabem do que se trata, não estão nem aí para o motivo da passeata, querem apenas a adrenalina do confronto e da depredação. Nenhum protesto de rua consegue se vacinar totalmente contra esses três tipos, mas isso não é motivo para proibir os protestos.

Protestos na rua não agradam a todo mundo. Causam transtorno, sim. Já fiquei preso no trânsito, já perdi compromisso, já me prejudiquei. Quem está numa ambulância pode se prejudicar mais ainda. Mas a verdade é que certas mudanças só acontecem depois que o caldo entorna. Autoridades são meio surdas, não escutam indivíduos, mas escutam multidões. Se um governo pudesse apertar um botão e acabar com as passeatas, qualquer um deles – direita, esquerda, centro – faria isso. Governo não gosta de protesto, gosta de voto.

O aumento nos preços das passagens coincide com muitos outros problemas (educação, segurança, moradia, meio ambiente, saúde) e, numa conjunção perversa, com a Copa das Confederações. E aí fica insultantemente visível o compromisso dos nossos governos (federal, estaduais, municipais) e todos os partidos com o capitalismo internacional, representado neste caso pela Fifa. O povo gosta de futebol, mas não gosta do modo sobranceiro, arrogante e acintoso com que a Fifa entra na casa alheia ditando ordens, impondo seus esquemas de exploração comercial, tratando nosso governo e nosso povo como capachos.

A Fifa e seus estádios de um bilhão de reais, que vão ficar às moscas depois da Copa do Mundo, deixando, como sempre, buracos irremediáveis nos orçamentos, e ajudando o Brasil a subir no ranking da “Forbes” dos “países com maior número de milionários” – acho que ganharemos mais algumas centenas deles depois destas Copas. Não, o problema não são vinte centavos, são bilhões e bilhões de reais, trilhões talvez, que existem, foram pagos, e deveriam estar tendo outra utilização. Mas os governos só escutam quando há milhões de pessoas nas ruas dizendo a mesma coisa.


domingo, 16 de junho de 2013

3214) Bloomsday (16.6.2013)






(Joyce, por Charles Burns)



O Bloomsday, comemorado em 16 de junho, é o dia das homenagens, libações e brincadeiras dedicadas à memória de James Joyce (1882-1941). 

Para os que não sabem, é o dia em que ocorre a ação completa do romance mais famoso do escritor, o Ulisses (1922). Ele quis celebrar o dia de seu primeiro encontro com sua futura esposa, Nora Barnacle, e com isto consagrou o 16 de junho como um dos dias mais famosos da literatura.

Ulisses já tem três traduções brasileiras, as de Antonio Houaiss, Bernardina Pinheiro e Caetano Galindo, mas as obras mais acessíveis do autor são Dublinenses e Retrato do Artista Quando Jovem

Joyce criou para si (ajudado por discípulos, exegetas e herdeiros) um mito complexo que atraiu pessoas diferentes por motivos diferentes. Ele é o Gênio Incompreendido, o Quase-Cego Que Sabia Tudo De Cor, o Escritor de Textos Indecifráveis, o Poeta Ribaldo do Submundo, o Erudito Sem Disciplina. 

Era cheio de facetas inconciliáveis, e seus seguidores às vezes se acusam mutuamente de estarem distorcendo seu pensamento ou de “não terem entendido” sua obra.

Quem quiser estudar mais a fundo o Ulisses, tem muitos caminhos. 

O saite “Notes on Ulysses” de Gerry Carlin e Mair Evans (http://bit.ly/ok9mzM) é um índice comentado de todos os episódios do livro, e ajuda o leitor a se orientar na leitura e na busca de referências.  

O guia de John P. Anderson (http://bit.ly/192MS0L) oferece 25 páginas grátis e as 613 páginas (em PDF) por 17 dólares; dá pra conferir se vale a pena.  

“Ulysses: The Classical Text” (http://bit.ly/wjCd2R) é um saite com facsímiles de documentos sobre as querelas editoriais, jurídicas e autorais do livro, bom para quem quiser se aprofundar nessa história tão espinhosa. 

“Ineluctable Modality” (http://bit.ly/12DXV1s) é um saite dedicado a imagens de diversos artistas (britânicos, na maioria) inspirados pela obra de Joyce.

Por outro lado, “James Joyce Music” (http://bit.ly/cT6MFm) é dedicado a todas as aparições de música nas obras de Joyce (que tocava violão e gostava de cantar cançonetas obscuras); é possível adquirir o CD. 

Se você quer ler Ulisses mas se perde na geografia, o “Mapping Bloomsday” (http://bit.ly/y5Zd3I) dá um auxílio cartográfico bastante útil. 

Uma medida do sucesso de Joyce é a existência deste saite (http://nyti.ms/12jSByT), que reúne tudo já publicado sobre ele no New York Times a partir de 1919. 

E finalmente o saite The Modern Word (www.themodernword.com), do qual sou colaborador (e de onde retirei estes links), tem a página “The Brazen Head” com uma espantosa quantidade de material de e sobre Joyce, sua vida e sua obra. Sendo assim... Cuidado na vida, e mãos à obra!








sábado, 15 de junho de 2013

3213) Drummond: "Quero me casar" (15.6.2013)



(Drummond, por Glen Batoca)

O tema do amor na poesia de Drummond tem dois tratamentos principais, o profundo e o brincalhão. Somente com o livro póstumo O Amor Natural o poeta revelou um terceiro caminho que corria por fora, o do tratamento erótico. Em Drummond coexistiam um filósofo desencantado com o mundo e um guri sempre disposto a travessuras. Isso se manifesta em seu tratamento de temas como o amor, o namoro, a paixão, o casamento, o sexo –  palavras que não são sinônimas entre si, como geralmente se imagina.

“Quero me casar” é um dos poemas travessos mais simples do poeta: “Quero me casar / na noite na rua / no mar ou no céu / quero me casar. //  Procuro uma noiva / loura morena / preta ou azul / uma noiva verde / uma noiva no ar / como um passarinho. / Depressa, que o amor / não pode esperar!”. Essa dicção pseudo-naïf se refinou em poemas mais maduros, e igualmente desconcertantes, como “O Mito” (“Sequer conheço Fulana...”), “Canção para Álbum de Moça” (“Bom dia: eu dizia à moça / que de longe me sorria”), “Amar-Amaro” (“Por que amou por que amou / se sabia / proibido passear sentimentos...”), “O amor bate na aorta” (“Cantiga do amor sem eira / nem beira...”), “Caso pluvioso” (“A chuva me irritava. Até que um dia / descobri que maria é que chovia”), e outros.

Todos estes poemas se dividem entre paixão e distanciamento, desespero e gozação, carência e ironia, ajoelhamento devoto diante da amada e cambalhota esperta pra longe dizendo “eu, hein?”. No final ora predomina um, ora o outro, outra se travam num empate, ou num impasse. Amor e humor são misturados como café e leite. E isto lembra o famoso micro poema de Oswald de Andrade, tão citado como símbolo do Modernismo: “AMOR / humor”. Uma palavra é o título, a outra é o poema. Oswald parece sugerir que o amor verdadeiro não é outra coisa senão o humor, neste caso (imagino) a capacidade de rir das coisas e rir das mesmas coisas, de pensar em uníssono, num “matrimônio de mentes sinceras” (como dizia Shakespeare). Na mão de Drummond, o amor inclui o humor, mas não como sua essência, e sim um “poder moderador”. Ele nos salva do amor mal compreendido e mal utilizado, o amor sombrio demais, destrutivo demais, o amor diluído em água com açúcar ou o amor de toxinas concentradas em veneno.

A receita de Drummond exprime, melhor do que a de Oswald, a flechada-no-coração que o Modernismo desferiu no Romantismo. A noção de amor do Romantismo foi um episódio psicótico na história da cultura. O Modernismo foi uma espécie de terapia de choque, sacudindo o paciente e dizendo “meu amigo, caia na real!”. A luta entre os dois não acabou, mas o fato de haver pelo menos uma alternativa já é um avanço.


sexta-feira, 14 de junho de 2013

3212) Os Manipuladores (14.6.2013)




Não sei a quem coube a escolha de nosso trio para trabalhar um personagem como Mr. Morris Sternson, secretário do Athletic Club de Londres. Um caráter pesadão, com pouco jogo de cintura, uma vida totalmente careta e inatacável. Seria difícil torná-lo possível de praticar o Tresloucado Gesto. O Roteiro exigia que fosse ele o autor de um atentado político, aos 42 anos, mas quando ele nos foi entregue já estava com mais de 30 e tendo passado por várias equipes. Nosso grupo era novo; queríamos mostrar uma certa virtuosidade, queríamos nos exibir um pouco. Aceitamos.

Nas três horas de tutorial percebemos que tinham deixado o algoritmo dele se cercar de loops intransponíveis, e ter criado níveis de defesa nunca vistos. Ao que parece deram-lhe alguma autonomia, pensando com isto dar-lhe liberdade; mas ele usou a autonomia para se encouraçar, se entrincheirar por trás de fractais sucessivas de si mesmo. Foi MC Seven que teve a idéia de desequilibrá-lo mentalmente, e eu complementei: “Melhor que loucura: minar seu senso de realidade”, para, quando chegado o momento do Tresloucado Gesto, ele estivesse fácil de induzir.

Aos 33 anos conseguimos apresentá-lo a um mesmerista (na casa de Sir Elroy, que ele muito reverenciava), a uma poetisa surrealista (que demos um jeito de introduzir em sua casa como amiga de sua esposa) e a um filósofo. Em poucos meses ele indicava melhoras e ao fim de um ano e meio estava envolvido com tertúlias teosóficas, e frequentava o chá do Bleeding Gate, um pub de existencialistas irlandeses. D8 Blue ironizou, disse que desse jeito Mr. Sternson iria praticar um gesto ainda mais tresloucado um ano antes do devido. Eu descobri que uma livraria próxima ao Club tinha livros de Philip K. Dick, traduções de Fernando Pessoa. Conseguimos fazer com que a frequentasse e por fim chegasse aos livros.

Dois meses antes do dia em que deveria cometer o Tresloucado Gesto, Mr. Sternson tinha separado da esposa, transformado em cash quase todos os imóveis e letras de câmbio que possuía, e tinha criado num subúrbio londrino um templo de onde era o teólogo e o contabilista. Criou uma seita que seguia os princípios da metafísica do Bispo Berkeley misturados ao “laser lilás” de P. K. Dick.  O dia do Tresloucado Gesto passou em brancas nuvens. Nada aconteceu ao potentado que nessa ocasião (como sabiam todos os Manipuladores do Futuro) ficou dez minutos vulnerável, fora das vistas de sua escolta, graças ao caos do trânsito londrino após o Blecaute. Nunca mais na História seria tão fácil mudar a História. Mas o Futuro estava jogando-se todo nessa tentativa, e voltaria a tentar. Cedemos a vez ao próximo desafiante.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

3211) Contracapa de Android (13.6.2013)




(by Catrin Arno)

&  estou inventando um espantalho eletrônico para afugentar spam  &  uma caveira com os olhos intactos nas órbitas  &  ele apostou comigo que seria capaz de musicar um livro de Clarice Lispector  &  um cardume de peixinhos virtuais flutuando à toa pela sala quando a TV entra em standby  &  às vezes a gente deseja até a III Guerra Mundial contanto que não tenha de entregar aquele texto na segunda-feira  &  no futuro o GPS dos taxistas será fornecido por uma franquia do Grand Theft Auto  &  eu escrevo mais concentrado do que ciclista descendo ladeira  &  toda tartaruga tem dentro do casco uma sala com poltrona, luminária, lareira e uma estante cheia de clássicos encadernados  &  um leque de papel de seda em chamas, e a madame se abanando nem aí  &  serpentes com serpentes menores dentro de si como bonecas russas  &  tinha uns olhos de quem sobreviveu a alguma coisa séria  &  na parede, o retrato emoldurado de um time com uma das silhuetas faltando  &  bendita a certeza de que um dia terei esquecido o que hoje me atormenta  &  a diferença entre a humanidade e os lemmings é que a humanidade explica por quê corre tanto  &  não sei o que é pior, se o primeiro dia num emprego ou se o último  &  dividir o tempo em dias, meses e anos é como dividir o mar com cordões esticados  &  um câncer não é muito diferente de uma pérola  &  escrever é desenterrar ruínas de si mesmo  &  saudade dos meus trinta anos, quando eu via alguém sofrer e não sofria  &  tô como cego em tiroteio, me desviando quando sinto o calor da bala  &  ainda deve existir algum país onde se publica anualmente um catálogo com o email e o celular de todos os seus habitantes  &  numa discussão de casal a letra perde logo o sentido e tudo que importa é domesticar a melodia do outro  &  nem todo poema contém poesia, assim como nem todo ruído é música  &  valei-me Nossa Senhora dos Desafogados  &  minha coluna dói tanto que não sei como não acorda todos os moradores do edifício  &  aquele momento de prazer indescritível quando alguém termina de fazer uma pergunta cuja resposta a gente sabe  &  um telefone toca no necrotério e ninguém levanta para atender  &  o pé de coelho não deu muita sorte ao coelho de onde saiu  &  um temporal daqueles que lavam a cidade e a deixam ainda mais suja  &  tem sujeito capaz de desenterrar uma pirâmide mas que não tem paciência para limpar a terra de um caco de cerâmica  &  um rei vestindo paletó e gravata equivale a um palhaço vestindo paletó e gravata  &  e lá vou eu mundo afora com meu apito de chamar peixes, minha pedra de guardar palavras, minha parede de acordar o sol  &  



quarta-feira, 12 de junho de 2013

3210) A Tragédia dos Tronos (12.6.2013)




A série Game of Thrones pôs no ar recentemente o episódio “The Rains of Castamere”, que produziu um choque considerável no público. Sem revelar muitos detalhes, posso dizer que o episódio mostrou a morte violenta, em circunstâncias especialmente cruéis, de personagens muito queridos pelo público. Perdi a conta dos twitters e dos posts que vi, de pessoas reclamando em altas vozes (e muita gente chorando, com sinceridade) a morte dos personagens.  E uma queixa se repetia, em cada voz, em cada nome: “Odeio você, George R. R. Martin... Nunca mais quero assistir essa série de novo...”

E no entanto tenho certeza de que quase todos voltarão a assistir essa série que já matou outros personagens queridos e que a esta altura já deixou claro, mesmo para o mais obtuso dos espectadores, que vai matar muitos mais. Porque uma coisa de que mesmo o espetáculo popularesco não pode abrir mão é a tragédia. Por que motivo as platéias de Shakespeare gostavam tanto daquelas histórias onde nada dava certo, onde pessoas boas morriam mortes cruéis, onde namorados simpáticos por quem todo mundo torcia acabavam se matando por causa de um mal entendido?  Por que aquelas platéias rudes e ignorantes de meio milênio atrás voltavam para casa satisfeitas, após uma catarse tão deprê?  Que tipo de diversão é esse?

Disse o autor de A Song of Ice and Fire (o ciclo dos romances em que se baseia Game of Thrones): “As pessoas lêem livros por motivos diferentes. Alguns lêem para o seu conforto. E alguns dos meus ex-leitores disseram que sua vida é dura, a mãe está doente, o cachorro morreu, e eles lêem ficção para fugir. Não querem ser atingidos na boca por algo horrível. Quando se lê um certo tipo de ficção, onde o cara vai sempre ficar com a garota e os mocinhos vencem no fim, isso reafirma a você que a vida é justa. (...) Mas isso não é o tipo de ficção que eu escrevo, na maioria dos casos. Certamente não é o que ‘Ice and Fire’ é, que tenta ser mais realista sobre o que é a vida. Ele tem alegria, mas também tem dor e medo. Acho que a melhor ficção captura a vida em todas as suas luzes e trevas”.

Uma das funções da tragédia é restituir à arte a possibilidade de parecer com a vida. Sem os finais trágicos de uns filmes, os finais felizes dos outros se diluiriam entre si, numa só névoa de perfume barato. A tragédia de Romeu e Julieta precisa estar sempre visível no horizonte, para que cada filmezinho de amor com Hugh Grant e Julia Roberts possa ter seu final feliz, aquele final que nos garante que, daquela vez, a vida real ficou do lado de fora e não pôde entrar. A vida real que é sinônimo da inevitabilidade da morte.


terça-feira, 11 de junho de 2013

3209) A piada do incêndio (11.6.2013)



Analisar piadas é uma espécie de tarefa impossível ou de missão inútil. É como dissecar uma mulher bonita ou empalhar raios de sol.

Millôr Fernandes já teve um espaço no Pasquim em que ele reproduzia um cartum qualquer e depois o analisava, sempre começando com: “Evidentemente...” Eram gozações, como se um marciano que nada soubesse da nossa cultura e do nosso modo de ver as coisas quisesse analisar o comportamento de personagens de um cartum.

Mas eu tenho um princípio ideológico que não respeita nem o humor. É esse: “Se achar bom, pare e questione: Por que foi que eu achei bom? Se achar ruim, idem. Se achar engraçado, idem: Por que foi que eu ri?”

Vejam esta piada. Uma menina chega correndo ao quartel dos bombeiros. “Moço, me ajuda, minha casa está pegando fogo!”. O bombeiro responde: “Fique calma! Como surgiu o fogo?”, e a menina: “Na Pré-História, eu não sei exatamente, mas me ajuda por favor!!!”.   Eu ri, mas depois de rir eu sempre faço a pergunta: por que foi que eu achei graça?

Reexaminar suas emoções e reações durante um fato, mesmo fato bobo como uma piada, é um talento que qualquer um pode desenvolver. Ninguém nasce sabendo. Quando li essa piada, ainda há pouco, eu senti um misto de deboche e de piedosa ternura em relação à menina. A casa dela está pegando fogo, mas ela parece viver tão preocupada com as notas da escola que reage à pergunta do bombeiro como se fosse uma pergunta de um professor.

Toda piada (como toda história de mistério, segundo Isaac Asimov) se baseia em um elemento que pode ser visto ou interpretado de maneiras diferentes por diferentes pessoas. Esta piada surgiu quando alguém pensou nos dois sentidos possíveis da frase “como surgiu o fogo?”. Essa frase é o núcleo da piada.

E percebemos que de certo modo nós estamos atribuindo mais gravidade ao incêndio da casa do que a própria menina. O que lembra a frase de Ernesto Sábato, que volta e meia eu cito: “Enquanto o mundo for mundo, sempre haverá um homem que se preocupa com o universo enquanto sua casa pega fogo, e uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o universo pega fogo”.
 
No breve instante da “punchline”, a menina atribuiu valores equivalentes a um e a outro.

O que é tocante e nos enternece é ver o funcionamentozinho da mente ingênua, porque no estado de alarme da garota ela responde como se fosse a coisa mais natural do mundo, ao dar um alarme de incêndio para o bombeiro, ele lhe fazer uma “pergunta de prova oral de História”.

No mundo dela, é melhor responder ao que os adultos perguntam, mesmo que as perguntas deles pareçam uma coisa totalmente inadequada à gravidade da situação.






domingo, 9 de junho de 2013

3208) Fantasia tecnológica (9.6.2013)




Há muitas maneiras de classificar os gêneros literários, e de acordo com o sistema de classificação, a mesma obra pode pertencer a gêneros diferentes. (É como na Física Quântica – mudou o parâmetro de observação, muda o resultado, ainda que o fenômeno seja o mesmo.) 

Vejam Star Wars. É ficção científica, se julgarmos pela presença de espaçonaves, robôs, voos interplanetários. Mas de ciência, mesmo, tem pouquíssima coisa ali. Asimov brincava (afetuosamente) com a série dizendo que ela era a respeito das batalhas de aviões da I Guerra Mundial.

Se começarmos a ler romances à procura de obras que empreguem o método científico (observação, dedução, indução, experimentação, uso do raciocínio lógico) talvez cheguemos à conclusão surpreendente de que o romance policial (o de mistério detetivesco) costuma ser muito mais científico do que a maioria da ficção científica.

Esta se baseia largamente em outras coisas: aventura, imaginação fantástica, plots reciclados da mitologia e das lendas clássicas. Ciência, mesmo? Só na obra de radicais como Greg Bear, Greg Egan ou Gregory Benford (não sei o que têm os Gregs para serem tão cartesianos).

Nos romances de detetives o que vemos é uma aplicação constante, minuciosa e inflexível da lógica científica. 

Indícios são recolhidos e examinados. Detalhes fora do comum são observados e registrados. Hipóteses são formuladas, e, quando é o caso, testadas. Cada hipótese deve ter uma resposta satisfatória para explicar cada indício recolhido (se a vítima foi estrangulada mas há uma mancha de sangue no teto, tem que haver uma explicação para ela).

Um detetive como Philip Marlowe ou o Comissário Maigret não é um físico nem um químico, mas costuma raciocinar com o mesmo rigor, e até mais, se considerarmos que ele lida com as imprevisíveis emoções e reações humanas, para as quais não existem as regras quase absolutas que vigoram nas Ciências Exatas (que aliás são cada vez menos exatas quanto mais as vemos de perto, como sabe quem as pratica). 

O detetive examina indícios em torno de um fato anormal e os compara com a normalidade, para tentar entender o que aconteceu. É tão científico quanto um médico avaliando um paciente novo ou um mecânico de oficina abrindo o capô de um carro que acabou de chegar via reboque. O pensamento que põem em prática é o pensamento científico, com todas as suas vantagens e suas limitações. 

Se procurarmos esse pensamento fora da FC hard, será difícil encontrá-lo, principalmente no cinema. O que existe ali é o bom e velho pensamento mágico revestido de aparato pseudo-tecnológico, pois a maioria daquelas máquinas não funcionaria no mundo real.


sábado, 8 de junho de 2013

3207) Traduzindo Bovary (8.6.2013)




Por que motivo uma obra literária tem que ser traduzida cinco, dez, vinte vezes? A explicação mais à mão é que as traduções anteriores não ficaram boas, e é preciso superá-las, fazer algo melhor. Esse “melhor”, contudo, nunca é unânime. Um livro tido como intraduzível como o Ulisses de Joyce já tem três traduções brasileiras, as de Antonio Houaiss, Bernardina Pinheiro e Caetano Galindo. Cada uma é uma maneira diferente de contar a mesma história.  As anteriores não são boas? Por que não? São apenas maneiras diferentes de dizer. Há leitores, inclusive, para quem o capítulo “X” ficou melhor na tradução de Fulano e o “Y” na de Sicrano. Questão de afinidade com certos estilos, certas propostas linguísticas.

Li uma matéria (http://nym.ag/d20hEK) sobre numa recente tradução em inglês de Madame Bovary, feita por Lydia Davis, que já traduzira Proust (Du coté chez Swann). Flaubert era um perfeccionista neurótico, obsessivo. É lícito imaginar que se ele folheasse qualquer tradução de um livro seu cairia ciscando. Para que traduzir um autor assim? Cada tradutor imagina que entendeu a intenção dele e é capaz de reproduzi-la em sua própria língua. E, afinal, a prosa é mais maleável do que o verso. Traduzir um romance é como fazer a versão de uma canção com licença para mudar a melodia.

Lydia Davis reclama da mania dos tradutores de colocarem coisas que não havia no original. Mostra uma página cheia de marcas a lápis e diz: “São coisas que o tradutor inglês adicionou: ‘dawdled’, ‘slowly’, ‘for their meeting’, ‘pirouetting’, ‘thronging’...” Palavras adicionadas para “esquentar” uma descrição ou para ajudar o leitor a entender melhor o trecho. Ela parece ser da Escola Caxias de Tradução: a editora Viking a fez redigir uma introdução onde explica uma porção de detalhes como letras maiúsculas inexplicáveis, ou tempos de verbo que não batem entre si. Estão no original, e ela insiste em reproduzi-los assim.

Isto é certo? É errado? Michael Dirda, citado na matéria, dizia que se a gente sacudir as páginas de Madame Bovary não cai nada. Que tradução humana pode dizer o mesmo? Temos o direito de tirar o que tinha, botar o que não tinha, com a mera intenção de dizer o que o autor disse? Podemos corrigir as incoerências ou discrepâncias do autor? É certo desmanchar um parágrafo inteiro e refazê-lo de outra forma, porque não está no espírito da língua portuguesa dizer as coisas daquele jeito? Ninguém sabe a resposta, porque resposta não existe, existe somente a necessidade de continuar tentando, e que cada tradução, longe de apenas “superar” as anteriores, aprenda algo com elas.


sexta-feira, 7 de junho de 2013

3206) Era mentira (7.6.2013)




Era mentira quando eu disse que estava tudo bem, entre buzinas e pregões de rua, só falei isso porque não é na fila da bilheteria de um cinema, ainda mais um filme-família diet, que a gente começa a confessar a maior encrenca, a maior rebordosa, o maior mico-assassino em que se meteu nos últimos quatro anos ou cinco séculos. 

Era mentira também quando eu disse que estava tudo mal, que estava tudo um desastre, uma catástrofe, um fim de mundo, porque a verdade, a verdade espremida nos bicos-de-Bunsen da autoanálise, a verdade concentrada nas centrífugas dos batebocas, é que tudo na vida se conserta, tudo hoje em dia se varre para baixo dos tapetes de Penélope, tudo hoje em dia se releva com um drinque e um armistício, desde que a gente solte a pressão, mantenha a cabeça fria, resolva as duas ou três coisas mais urgentes e vá negociando as outras, afinal, quantas vezes na vida não fazemos isso?

Também era mentira quando prometi contar tudo, mentira, ninguém conta tudo, primeiro porque se considerarmos a sério ninguém sabe da missa um terço, segundo porque contar tudo exigiria do ouvinte tímpanos de asbestos e autocontrole de ninja masoquista, terceiro porque nunca jamais se deve puxar a alavanca que abre a comporta do silo de palavras derramando os bilhões de fonemas que soterrarão o indefeso.  

Se era mentira, e era, era o caso mais deslavado de mentira piedosa, minto para proteger e salvar, minto porque a corrente 220 da verdade reduziria qualquer um a perplexidade e pó fumegante. Quem foi que disse que mentira é pecado, que mentira é crime? Tragam-no à minha presença e eu o esfrangalharei em átomos com a descarga impiedosa de certas verdades que me virão à mente.

Era mentira e pronto, era mentira e daí? Tudo é mentira, miragem, ilusão de ótica, ilusão de ética, realidade virtual, computação gráfica, photoshop, cirurgia plástica. Tudo que você vê em volta é mentira, porque a verdade é quente demais para pegar, pesada demais para conduzir. A verdade é um trambolho, é um cisco no olho, é um elefante branco na sala de visitas, um jequitibá que cresceu na grande área de um campinho de futebol.  A verdade é intrusa, é confusa, é inconveniente, é desnecessária, é persona non grata, porque a verdade dói, adoece e mata. 

Era mentira, então esqueça e relaxe, siga em frente, faça de conta que já passou, aprenda a conviver com isso, me deixe aqui com a voz tranquila e meu rum montila. Foi mentira e dane-se, foi mentira e tanto faz, porque o mundo vai acabar de qualquer jeito. Afaste a mão, não venha não, solte a minha mentira, não mexa, não bula, não acorde, mentira adormecida arreganha os dentes mas não morde.