sábado, 31 de dezembro de 2011
2753) Criação aleatória (30.12.2011)
Na revista Edge (http://bit.ly/vmEGf8), o biólogo Mark Pagel estuda o modo como o pensamento criativo se dissemina no interior das sociedades, e o compara com a evolução biológica.
Esta se dá através de pequenas mutações aleatórias em nossos genes, ao serem passados dos pais para os filhos. Muitas vezes não dão certo, mas às vezes dão, e “uma das coisas mais notáveis da natureza é que a seleção natural, atuando sobre essa variação genética gerada sem controle, é capaz de achar a melhor solução entre muitas, e sucessivamente incorporar essas soluções umas às outras. E, através desse processo extraordinariamente simples e não controlado por ninguém, criar coisas de complexidade inimaginável”.
Pagel compara isto ao que ele chama de “aprendizado social” (“social learning”), o processo através do qual as novas idéias são avaliadas pelo grupo, umas são descartadas, outras aceitas:
“Qualquer processo evolutivo dessa natureza precisa ter tanto um mecanismo de escolha, uma seleção natural, quanto o que podemos chamar de mecanismo generativo, um mecanismo capaz de criar variedade”.
Muitíssimas vezes o que o pensamento criador faz durante mais tempo é andar às cegas, tatear, dar saltos no escuro, escolher um caminho em vez de outro, sem saber exatamente por que este e não aquele. Tentar combinações ao acaso, produzir reviravoltas sem razão aparente, inserir elementos que não sabe exatamente o que são... tudo isto faz parte da atividade criadora na arte, na ciência, na literatura, etc.
Cria-se (mecanismo generativo) sem muita preocupação com a lógica ou o planejamento; e depois passa-se um pente fino no que foi criado (mecanismo de escolha).
Pagel enfatiza a importância do fator randômico, ou aleatório, em “qualquer processo evolutivo que consiste na exploração de um espaço desconhecido, tal como se dá com os genes, ou com os neurônios explorando o espaço desconhecido em nosso cérebro e tentando criar conexões, ou com as nossas mentes tentando produzir idéias novas e explorando o espaço de alternativas que nos conduz para o que chamamos de criatividade”.
Meu conselho aos jovens artistas: produzam intuitivamente, levados pelo instinto, sem planejar. O planejamento nos traz de volta à repetição. Quando pensamos racionalmente, em geral, estamos repetindo modos de pensar que aprendemos, que já são consagrados, coletivos.
A criação (artística, científica, etc.) precisa lidar com hipóteses absurdas, argumentos sem provas, descobertas inexplicáveis, elementos aparentemente sem sentido. Somente depois devemos ligar o “mecanismo de escolha” para achar o equilíbrio entre o aprendido e o recém-descoberto.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
2752) “Fogo Pálido” (29.12.2011)
É um dos livros mais surpreendentes de Vladimir Nabokov, este especialista em surpresas. E serve como ótima ilustração para a minha teoria sobre a formação dos gêneros literários, ou seja, que eles se estruturam a partir de um texto básico, o qual passa a ser imitado, gerando um número tão grande de variantes que esse conjunto de textos acaba constituindo uma literatura à parte. O exemplo clássico é “Os assassinatos da Rua Morgue” de Edgar Allan Poe (1841), que serviu de modelo para toda a literatura de mistério detetivesco.
Fogo Pálido consta de um longo poema em quatro cantos e as notas explicativas que o acompanham. Acontece que Nabokov atribui o poema a um sujeito imaginário, e as notas a outro. O autor do poema é Shade, um poeta recém falecido; e seu explicador é um tal de Charles Kinbote, que aos poucos vai se revelando ao leitor como um doido de jogar pedra. Seus comentários contam de modo distorcido a vida de Shade, a dele próprio, e mais uma enormidade de coisas que, a rigor, nada têm a ver com o poema que ele alega estar explicando.
Se o livro de Nabokov tivesse sido um sucesso de vendas como foram O Nome da Rosa de Umberto Eco ou o Memorial do Convento de José Saramago (duas outras obras literariamente ambiciosas e admiráveis, que geraram inúmeros imitadores) poderia ter criado um novo gênero, a análise fictícia de textos imaginários. Dezenas e dezenas de romances onde o autor imaginaria tanto a obra quanto a crítica. Um poema alquímico renascentista explicado por um psicanalista freudiano. Um poema recém-descoberto de Castro Alves explicado por um crítico baiano tropicalista. Um poema beatnik de autor desconhecido explicado por uma professora republicana de Boston. Um poema de um simbolista cearense explicado por um brazilianista argentino. Uma coletânea de haikais japoneses explicada por um estruturalista mexicano. E por aí vai. Um gênero inteiro, um enorme nicho de mercado destinado a satisfazer a curiosidade de leitores que gostassem da fórmula e fossem capazes de consumir variações dela até o fim dos tempos, como o fazem com o conto policial de Poe.
Li num artigo sobre Fogo Pálido (http://tinyurl.com/cxhpj7x) que o livro tem seguidores, sim. Arthur Philips escreveu um romance, The Tragedy of Arthur, que tem a forma de introdução a uma peça inédita de Shakespeare, e inclui o texto completo da peça. Este hipotético gênero nabokoviano deve estar se gerando nos desvãos da crítica e do mercado. Dada a mentalidade “mash up” de hoje, adoradora de simulacros e de ficções fictícias, quem duvida que será o gênero da moda daqui a algumas décadas?
2751) O gênio não-original (28.12.2011)
Kenneth Goldsmith, um questionador das práticas literárias, é fundador do saite UbuWeb (www.ubuweb.com), conhecido como “o YouTube da vanguarda”. Eu não diria que é um grande escritor, e é bastante possível que, ganhando de presente um livro dele, nunca o lesse. A maldição da vanguarda é que geralmente seus postulados teóricos são fascinantes e arrojados, mas suas produções artísticas nos deixam entediados ou perplexos. Num artigo recente (http://bit.ly/npT8zj), Goldsmith argumenta que na época da cultura digital o conceito de originalidade artística está sendo substituído pelo de “reorientação” (“repurposing”) das idéias e dos textos. Mais do que produzir páginas originais, cabe ao escritor de hoje administrar um excesso de textos já existente, organizá-lo, distribuí-lo. Diz Goldsmith:
“Nos últimos cinco anos, vimos alguém copiar On the Road de Jack Kerouac por inteiro, uma página por dia, num blog; a apropriação do texto de uma edição do New York Times, publicada sob a forma de um livro de 900 páginas; uma reorganização da lista de lojas num shopping, diagramada em forma de poema; um escritor empobrecido que pegou todos os seus extratos de cartão de crédito e os encadernou num volume impresso por demanda, com 800 páginas, tão caro que ele próprio não conseguiu comprá-lo; um poeta que reorganizou o texto de uma gramática do séc. 19, inclusive o índice, de acordo com seus próprios métodos; um advogado que apresenta como poemas os memorandos do seu trabalho, nem mudar uma palavra sequer; outra escritora que passa os dias na Biblioteca Britânica copiando o primeiro verso do ‘Inferno’ de Dante, em todas as traduções ali existentes, um depois do outro, até esgotar o acervo da biblioteca; outra equipe de escritores que se apropria de posts e status de redes sociais e os atribui a escritores falecidos (“Jonathan Swift conseguiu entradas para o jogo dos Wranglers hoje à noite”), criando uma obra poética épica, interminável, que se reescreve cada vez que alguém atualiza seu Facebook; e um movimento literário chamado Flarf que consiste em recolher os piores resultados de busca do Google, quanto mais ridículos e ofensivos melhor”.
Esses escritores são as formigas-operárias da literatura, cujo trabalho consiste em cortar folha e trazer folha, para produzir a pasta fermentada que alimenta o formigueiro. Não creio, como Goldsmith, que o gênio original deixou de existir, mas acredito que em torno do Escritor tradicional surgem reescritores, descritores, transcritores, meta-escritores... A Literatura está se movendo, e nós, suas pulgas, nos movemos com ela, crentes que ela obedece às nossas vontades.
2750) O leitor fã (27.12.2011)
O fã é um produto típico de certa cultura de massas do nosso tempo, que requer não apenas o envolvimento afetivo com as obras de arte, mas uma dedicação emotiva em tempo integral. O fã é alguém cuja vida tem como centro seu ídolo, que pode ser um jogador de futebol, uma atriz de cinema, uma banda de rock, uma modelo. O leitor fã é o que transfere esse fanatismo (fã vem de “fanático”) para a literatura. O sujeito pode ser fã de um autor (os fãs de Stephen King), de um gênero (policial, ficção científica, etc.), de um personagem (Sherlock Holmes), de uma série de obras de autores variados (“Perry Rhodan”, etc.).
O que caracteriza o leitor fã é que ele se comporta diante do objeto de seu fanatismo como os fãs de Marilyn Monroe ou de Carlos Gardel se comportam diante dos seus ídolos. Qualquer farrapo de informação é importante, qualquer foto saída na imprensa merece ser recortada e pregada no álbum. O leitor fã faz listas de livros que precisa ler, listas de livros já lidos, listas de livros que precisa comprar, listas de livros que precisa perguntar aos amigos se vale a pena comprar. Costuma juntar-se a outros em clubes, onde a única conversa é sobre aqueles livros, e onde os membros debatem livros, comentam livros, trocam livros, compram livros usados uns aos outros.
Essa atividade frenética acaba atraindo o leitor, de forma quase imperceptível, para uma zona fronteiriça e nebulosa que, quando começa a se clarear de novo, revela ao incauto que ele cruzou um limite. Deixou de ser leitor e agora é somente fã. Um leitor é alguém que lê, que decifra palavras, que toma decisões interpretativas sobre cada frase, cada parágrafo, cada bloco de texto. O leitor recria em sua mente o mundo criado pelo livro e é forçado a tomar juízos de valor. O leitor fã, muitas vezes, torna-se fã para evitar essas tomadas de posição. Ele não quer ser inquietado por informações novas, desconcertantes, que ponham em xeque seus instrumentos de interpretação. Ele não quer novas experiências literárias. Quer o aconchego do eterno “um pouco mais daquilo mesmo”. O leitor fã abre mão do esforço de pensar, e lê apenas para lembrar, para refestelar-se no que já conhece.
Por isto o mercado cultua os fãs e alimenta sua obsessão de comprar todas as edições de um livro, todos os livros-de-fofocas sobre um autor, todos os livros de listas de um gênero. É o consumidor ideal, porque não compra mais com a intenção de ler. Quando o leitor fã abre os olhos, vê que não passa de um colecionador de livros que não lerá. Já não se distingue do cara que compra as meias de nylon de Evita Perón ou um travesseiro usado por John Lennon.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
2749) Natal 2011 (25.12.2011)
("The Neverending Search", de David Ho)
...e a roda do Zodíaco e seu zoo,
como um filme de doze fotogramas,
sobre esta Terra projetou seus dramas
que nos dão a ilusão chamada vida.
Tridimensional e colorida,
sensorial, corpórea, carne-e-osso...
De onde virá, então, a voz que ouço
sussurrando que tudo é a Matrix?
Compartilho com os nerds e com os geeks
a noção de que o mundo é Simulacro;
uma área que une o micro e o macro
nesta hipernovela em que caminho
de mãos nos bolsos, tranquilão, sozinho,
pelos jardins da General Glicério
fotografando a face do mistério
de existirem jardins, papelarias,
escolas, locadoras, padarias,
este café que acolhe os literatos,
grama verde, remédio contra ratos...
Tudo tão verossímil. Tão real.
Tudo é vento e é fogo, mel e sal,
pedra de gelo e brasa sobre a pele;
tudo que nos atrai e nos repele,
o corpo vivo e seus magnetismos.
Por baixo deste chão, quantos abismos?
Mas eu caminho, e piso sem receio,
e num piscar constato que passeio
em Manaíra, e compro tapioca,
e o pão daqui, igual ao carioca,
sugere a hipótese de um mundo só.
Passa um carro-de-mão com seu forró
estrondando milhões de decibéis;
fico marcando o ritmo com os pés
enquanto espero meu sinal abrir.
Os carros passam sem me pressentir,
sem saber que vivi por mais um ano;
bem ou mal, eis-me aqui, sem nenhum dano
a não ser os de ordem financeira...
Abriu! E eu atravesso na carreira
como o último Beatle de Abbey Road.
Chego à vitrine, apalpo o cartão Gold,
que já está da finura de uma seda...
Natal, poeta, é uma cana azeda
que a gente chupa e louva-lhe a doçura.
Melhor presentear literatura,
dar poemas aos membros da família!
Sai mais barato que trocar mobília,
renovar guarda-roupa e tudo o mais...
Distribuir sextilhas ou hai-kais
e dar o caso como resolvido.
Sigo, a tirar velhas canções do olvido,
afinal é Natal, “bimbalham sinos”,
exumam-se os enfeites naftalinos,
e volta a ressoar pela cidade
Luís Bordón, “A harpa e a cristandade”,
o mesmo que tocava no Alto Branco...
Tanto tempo passou? Pois serei franco,
dentro aqui tudo aquilo ainda existe;
não me venham dizer, de dedo em riste,
que o meu passado se apagou em mim.
E ao futuro, também, só digo Sim;
talvez um simulacro, mas sincero.
E este presente do futuro eu quero:
os olhos calmos de um bebê mutante
que parecem dizer: não chore, cante
(e que me dizem mais quando adormeço);
e assim me redescubro e reconheço
ao zerar cada ano, cada “game”.
Sobrevivi, ou seja, recriei-me,
sempre o mesmo, e mudando em pleno voo...
sábado, 24 de dezembro de 2011
2748) A religião Jedi (24.12.2011)
A cada ano que passa, cada vez mais gente, no mundo inteiro, afirma pertencer à religião dos Cavaleiros Jedi. Para quem não está ligando o nome à pessoa, os Cavaleiros Jedi são os personagens da série Star Wars de George Lucas: os mais famosos são Obi Wan Kenobi (interpretado por Alec Guiness) e o cavaleiro renegado e luciferiano Annakin Skywalker, que trai a confraria e se torna o nefasto Darth Vader.
Os Cavaleiros Jedi não têm uma crença sistematizada, com textos, mandamentos, sei lá que mais. Existe uma espécie de código geral de conduta meio Taoísta; mas sendo o mundo o que é e estando como está, não é impossível que já exista uma “Bíblia Jedi” por aí afora. A Wikipedia registra a existência de uma crença espontânea e difusa, mas nada que se assemelhe, pelo menos, às religiões evangélicas que proliferam aqui no Brasil. (Em breve teremos uma religião por habitante.)
Que me conste, ninguém ainda embolsou um tostão graças à religião Jedi, que surgiu como uma piada nos países de língua inglesa, com a mesma intenção satírica com que milhões de brasileiros votavam em “Raul Seixas” no tempo em que nos pediam para escrever na cédula o nome do candidato a presidente. Alguns britânicos o faziam por discordar da inclusão do quesito “religião” num censo. Vai daí que no censo de 2001 (ver http://bit.ly/1aDh9D) na Inglaterra e País de Gales a religião Jedi apareceu com 390.127 crentes, superando crenças como o Judaísmo e o Budismo. A questão tem sido discutida a sério no Parlamento britânico, onde se discutem penalidades contra o ódio religioso, etc., e em certos momentos é preciso definir oficialmente o que é uma religião.
Em todo caso, esse número vem sendo acompanhado por outros, menores mas expressivos, em outros países. No censo de 2001 (prestes a ter seus números superados, portanto) a Escócia tinha 14 mil Cavaleiros Jedi. No mesmo ano o Canadá registrou 21 mil, a Austrália 70 mil. A Nova Zelândia apresentou 53 mil Jedi, o que faz dela o país com maior densidade populacional (1,5 %) dos seguidores da Força, se bem que outro censo, feito em 2006, fez este número cair para 20 mil (o que parece corresponder ao número dos verdadeiros crentes – os outros devem ter se afirmado Jedi só para fazer piada).
O censo da República Tcheca, feito agora em 2011, revelou mais de 15 mil pessoas pertencentes à religião Jedi. Lá, o censo não fornece alternativas para múltipla escolha, e nomear a religião é uma iniciativa do entrevistado. Será interessante acompanhar os resultados dos próximos censos nos países europeus e acompanhar a criação do Mundo Simulacro, formatado para imitar a ficção.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
2747) FC e antropofagia (23.12.2011)
(ilustração: Albert Nuetzell - Amazing Stories, setembro 1960)
Existe uma discussão permanente, nos círculos brasileiros de ficção científica, sobre a necessidade (ou a mera possibilidade) de um FC que funcione, entre nós, como o movimento modernista de 1922 funcionou em relação à poesia, a pintura, etc. A discussão vem sendo travada nestes termos pelo menos desde 1988, quando Ivan Carlos Regina publicou o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (veja o texto completo em: http://bit.ly/sosAWC). A esta altura, todo mundo entende qual era mais ou menos a proposta dos “antropófagos” de 1922, tal como a colocou Oswald de Andrade: devorar a cultura européia como os índios caetés devoraram o Bispo Sardinha. Usá-la não como modelo, mas como combustível, para pôr em movimento uma cultura repleta de elementos nossos.
O manifesto de ICR critica os autores brasileiros que preferem imitar o modelo norte-americano de FC, repetir os mesmos temas, os mesmos clichês, a mesma linguagem – porque, vamos e venhamos, é muito mais fácil fazer “fanfic” do que literatura. (A “fanfic”, a ficção produzida por fãs, é quando os leitores de Harry Potter, Star Trek, etc. escrevem suas próprias histórias utilizando esses personagens e contextos. Não tem propósito criativo estrutural; apenas o prazer de produzir variantes das obras originais.)
Diz o manifesto: “(...) Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. / A ficção científica brasileira não existe. / A cópia do modelo estrangeiro cria crianças de olhos arregalados, velhinhos tarados por livros, escritores sem leitores, homens neuróticos, literaturas escapistas, absurdos livros que se resumem a capas e pobreza mental, colônias intelectuais, que procuram, num grotesco imitar, recriar o modus vivendi dos países tecnologicamente desenvolvidos. / A ficção científica nacional não pode vir a reboque do resto do mundo. Ou atingimos sua qualidade ou desaparecemos. (...)”.
Este é o lado crítico do manifesto, e acho que permanece tão atual quanto em 1988. Deglutir, devorar, antropofagizar, implica sempre em destruir, “quebrar” aquele material em seus elementos constitutivos, usá-lo como eventual banco de dados para produzir uma literatura que não venha do impulso de imitar, mas de dizer verdades pessoais. Literatura é a verdade pessoal de cada um, e para essa verdade emergir precisa desligar esse piloto-automático que gera a fanfic e a imitação.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
2746) Evolução copiadora (22.12.2011)
A revista eletrônica Edge (http://bit.ly/vmEGf8) reproduz uma palestra de cerca de 40 minutos com o biólogo Mark Pagel em que ele defende uma interessante teoria, que em alguns aspectos me fez lembrar a visão evolucionista (e pessimista) de H. G. Wells em A Máquina do Tempo.
Pagel faz um breve histórico da evolução da vida na Terra, lembrando que o planeta tem 4,5 bilhões de anos, as formas de vida primitivas surgiram há 3,8 bilhões, plantas e animais simples surgiram há 500 milhões, os seres humanos primitivos há cerca de 200 mil, e a História do Mundo que estudamos no colégio remonta a no máximo dez mil anos. (Eu acrescentaria, por minha conta, que os últimos 200 anos produziram um mundo novo, e que os últimos 50 viraram esse mundo novo pelo avesso.)
Pagel observa que o ser humano desenvolveu, através da memória e da linguagem, um “aprendizado social” mediante o qual as descobertas de um indivíduo são rapidamente assimiladas pelos demais, e passadas adiante no espaço e no tempo.
Isto fez, raciocina ele, com que inventar e copiar sejam funções essenciais para a sobrevivência da raça. Se a raça precisa de um novo instrumento ou uma nova técnica, não é preciso que todo mundo a invente. Basta que um invente, e os outros copiem. O que o grupo precisa é que a descoberta seja compartilhada.
Uma consequência disto é que num grupo de 50 pessoas, uma horda primitiva, basta que meia dúzia sejam criativos. Mas num grupo dez vezes maior, o número de pessoas criativas pode continuar sendo o mesmo, porque a memória e a linguagem se encarregarão do “aprendizado social”. Dessa forma, à medida que a população aumenta (e as comunicações se aperfeiçoam), o número de pessoas criativas diminui proporcionalmente, porque o aprendizado social se encarrega de disseminar suas invenções e descobertas.
Desde que haja uma pequena quantidade de inventores, de descobridores, de pessoas genuinamente criativas, a sociedade tem meios para distribuir os resultados dessa criatividade, para serem copiados pelos demais.
Por isso, talvez estejamos atingindo (depois da Internet) um ponto-sem-retorno que é consequência deste longo processo em que a necessidade de copiar foi muito mais estimulada do que a necessidade de criar.
Pagel ironiza inclusive as grandes corporações, que em tese seriam redutos de criatividade bem remunerada, dizendo que
“ao invés dessas corporações dedicarem seu tempo e sua energia na produção de novas idéias, elas querem apenas comprar outras empresas que possuem essas novas idéias. E isso nos mostra o quanto essas idéias são preciosas, e o esforço que as pessoas são capazes de fazer para adquiri-las”.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
2745) “Mais Que Humano” (21.12.2011)
Este romance de Theodore Sturgeon, de 1953, é um dos grandes romances de ficção científica de sua época, e aparece na maioria das listas dos melhores do gênero. Ser incluído nessas listas não é uma questão de qualidade literária, mas de presença histórica. Obras que compõem um cânone são as obras formadoras, aquelas que uma vez publicadas passam a servir de ponto de referência obrigatório. More than Human conta a história de um grupo de crianças e jovens de rua, marginais, desprezados pela família, com poderes paranormais que utilizam da modo aleatório, sem compreendê-los totalmente. Encontram-se pouco a pouco, meio por acaso, e acabam formando uma Gestalt, um grupo em que cada um deles desempenha um papel essencial. Uma pode mover objetos com a mente, outras podem se transferir instantaneamente de um lugar para outro, outro induz as pessoas a lhe obedecem, como num hipnotismo instantâneo, etc. Juntos, tornam-se uma criatura nova, o Homo Gestalt.
A história se conclui com o aparecimento de um derradeiro personagem, que, após ser perseguido pelo grupo, acaba sendo salvo por uma de suas integrantes e se junta a ele. Sua função é proporcionar ao grupo (que era isolacionista, egocêntrico, amoral) uma moralidade, um senso de finalidade, uma missão a cumprir junto à espécie humana. A infância sofrida e perseguida daquelas crianças produz, quando elas descobrem seus super-poderes, uma espécie de vingança cega contra a humanidade que os desprezou. (Os personagens mutantes da série de HQ “X-Men” herdaram algo dessa atitude.) Somente com a chegada de um personagem que exige deles uma atitude ética o Homo Gestalt passa a funcionar com sua plena capacidade.
É possível que o livro tenha influenciado um conto de Robert Sheckley, “Specialist” (1953), onde aparece uma nave cuja tripulação é composta por criaturas extraterrestres interligadas através da função de cada um: o Olho, o Motor, as Paredes, o Pensador, a Fala... Eles chegam à terra em busca de um Propulsor, ou seja, um ser humano. Sem ele, são uma Gestalt organizada e infalível; mas para dar os saltos que fazem a nave viajar mais rápido do que a luz, precisam desta espécie, o Propulsor, que extrai energia de si mesmo: “Os Propulsores viviam há séculos por entre o medo e a dúvida. Guerreavam por causa do medo, matavam por causa da dúvida”. E é essa energia de que a Nave precisa para mover-se pelo Universo. Os textos de Sturgeon e Sheckley podem servir de metáforas da sociedade ou da mente humana, que por mais organizadas e eficientes que sejam precisam de um componente subjetivo essencial para poderem funcionar com seus plenos poderes.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
2744) A palavra pantim (20.12.2011)
Uma das palavras mais elusivas do nosso idioma nordestinense; serve para um número tão grande de situações que fica difícil atribuir-lhe um sentido principal. Se eu tivesse de escolher algum, escolheria: “fricote; manha; frescura; nhém-nhém-nhém”.
-- Vamos, rapaz! Começa logo esse show, e deixa de pantim!
Ou:
-- Deixe de pantim, eu estou só trocando o curativo.
É qualquer reação exagerada, artificial, “valorizando” demasiadamente uma situação que não tem muita gravidade. Como neste exemplo de Nei Leandro de Castro, em As pelejas de Ojuara:
Teve uma hora que Silva da Mata parou, deitado de costas, a língua para fora, os olhos revirados. Ficou desse jeito, totalmente imóvel, a respiração suspensa. Ojuara fez força para não rir daquele pantim, o mais demorado que ele já tinha visto na vida.
No folheto da 2ª Peleja de José Costa Leite com Maria Quixabeira, de José Costa Leite, vemos:
Você com esse pantimjá está me chateandoa mulher é quem não prestaa metade vive enganandomas já vi uma direitauma vez, eu não sei quando.
Na canção de Capiba “Quem vai pra farol é o bonde de Olinda”, de 1937, ele já diz:
Você sabe que eu seie todo mundo já falaporém você quer me ocultar;confesse logo e deixe de pantim para mimque você vive a me enganar.
Dicionários on-line por aí dão-lhe um significado que, sinceramente, nunca vi sendo utilizado: “boato, notícia assustadora, alarmante”. Vejo, por outro lado, a expressão “fazer um pantim” no sentido de “fazer uma encenação qualquer para pregar susto em alguém”: “Ele ficou escondido atrás da porta, com um lençol, quando os meninos entraram ele fêz um pantim, e os meninos saíram correndo”.
Outra acepção de “fazer pantim” é esboçar um gesto, deixando-o incompleto, ou apenas a título de ilustração: “Ele não puxou a faca não. Fez só o pantim, mas a gente se assustou e saiu correndo.” "Passa a carteira pra cá, ligeiro! Sem fazer pantim!"
Tenho imensa curiosidade em saber a origem desse termo, mas nunca me ocorreu uma hipótese que valesse a pena.
Existe uma leve possibilidade de que venha do francês pantin ("fantoche; pessoa ridícula"). O filme de Luís Buñuel Este Obscuro Objeto de Desejo baseia-se num romance de Pierre Louys intitulado La femme et le pantin (filmado também por Julien Duvivier, com Brigitte Bardot, e por Josef von Sternberg, com Marlene Dietrich).
Literalmente, seria "A Mulher e o Fantoche": a personagem é uma jovem bonita que passa o filme inteiro prometendo entregar-se a um homem idoso, e esquivando-se dele na hora H. Ou seja, em bom paraibanês: ela não dá nunca pra ele, faz somente o pantim.
domingo, 18 de dezembro de 2011
2743) Novos milionários (18.12.2011)
Sete mil novos milionários por ano. Esta é a quantidade que o Brasil produz, segundo a revista Forbes. Um artigo recente (http://tinyurl.com/7po2pzb) dessa revista nos adverte, contudo, que eles são milionários em moeda brasileira, pois o seu valor em dólares é algo em torno de 540 mil. Para um país do BRIC não está nada ruim, embora faça lembrar a frase (não sei se é de Gandhi ou do Dalai Lama) de que alguns países produzem riqueza e outros produzem ricos. O Brasil, amigos, está botando rico pelo ladrão.
A Forbes lembra que a estatística, que na verdade fala em 19 milionários por dia, levou em conta todas as riquezas do indivíduo: investimentos, propriedades, poupanças e outros ativos, além de dinheiro em caixa. E diz que o Brasil tem atualmente 137 mil milionários e cerca de 30 bilionários, de acordo com a lista elaborada pela própria revista em 2011, sendo que 70% da riqueza do país estão concentrados em São Paulo e Rio de Janeiro. (Imagino que este número se refira à riqueza desses banqueiros e altos executivos, não à riqueza do país como um todo.)
O engano mais frequente em torno dos milionários é pensar que todo sujeito rico conquistou esse dinheiro roubando. Errado. Muitos enriquecem honestamente, e a única crítica que se pode fazer a sua fortuna é que foi obtida através da exploração do operariado, do crescimento desenfreado dos bancos e das multinacionais, etc.; mas o trabalho dele, em si, não envolveu corrupção ou apropriação indébita.
Essa é minha dúvida principal, porque um corrupto, traficante, contrabandista, gangster, etc. desfruta, é óbvio, de uma riqueza indevida. Mas o que dizer de um gerente de conglomerado financeiro que ganha um milhão por mês? É o salário dele, pagam-lho porque acham que o merece. É um pouco como salário de jogador de futebol. Eu não consigo encontrar uma relação concreta entre os salários sauditas que esses atletas ganham e o futebolzinho bambala que jogam. Mas se os próprios patrões concordam em pagar isso, problema deles.
E volto à questão. É possível, talvez, ser um funcionário honesto (dedicado, ético, que age estritamente dentro da lei) num conglomerado financeiro. O problema é que um conglomerado financeiro é, no mundo de hoje, algo comparável ao conglomerado celular popularmente conhecido como “câncer”. Suas intenções podem até ser as mais angelicais possíveis, mas seu funcionamento é predatório, suicida, e tende a destruir o organismo onde habita. É possível ser correto no interior de um sistema que age de forma incorreta? Até que ponto a surrada justificativa do “estou apenas cumprindo ordens” os absolve das fortunas que ganham?
sábado, 17 de dezembro de 2011
2742) A epifania do líder (17.12.2011)
(Tancredi Scarpelli, "Balboa avista o Pacífico")
Dizem que os primeiros europeus a avistar o Oceano Pacífico, do lado oposto do continente americano, foram os da expedição de Vasco Nuñez de Balboa. Vi na Wikipedia uma citação da "História da América" de William Robertson em que esse momento histórico é descrito. Diz o texto:
“Os índios haviam garantido que do topo da próxima montanha eles poderiam avistar esse oceano que procuravam. Quando, depois de muito esforço, conseguiram subir a maior parte da íngreme encosta, Balboa ordenou aos seus homens que se detivessem, e avançou sozinho até o topo, para ser o primeiro a desfrutar daquele espetáculo pelo qual tanto ansiara. Assim que viu o Mar Sul em sua extensão infinita diante dos seus olhos, ele caiu de joelhos, e erguendo as mãos para o Céu rendeu graças a Deus, que o guiara naquela descoberta tão importante para o seu país, e tão honrosa para ele próprio. Seus seguidores, vendo suas manifestações de alegria, avançaram para juntar-se a ele em seu deslumbramento, júbilo e gratidão”.
O gesto de Balboa de mandar os soldados se deterem para que ele fosse o primeiro a avistar o Oceano é à primeira vista uma inversão da situação dos capitães de navio. Cabe a Cabral a glória de ter descoberto o Brasil, mas o próprio Cabral tinha consciência de que quem primeiro avistou o Monte Pascoal foi o rapazinho na gávea, naquele cesto preso no alto do mastro. Isso talvez o incomodasse: a consciência íntima de não ter sido o primeiro.
Ter apenas a glória simbólica, a glória do comando, era pouco para Balboa. Ele queria ter a certeza de ter sido o primeiro, de fato.
Por outro lado, esse egoísmo lembra a famosa cena da "Odisséia” em que Ulisses, desejoso de saber como era o canto das sereias, faz-se amarrar ao mastro para escutá-lo, e manda os marinheiros taparem os ouvidos com cera. O momento de epifania, de êxtase, é reservado ao chefe; os trabalhadores não podem, porque depende deles o rumo seguro do navio.
Faz parte do sistema o fato de que cem remadores ou cem soldados estão ali apenas para garantir ao seu chefe as experiências numinosas que a aventura lhes reserva. Todo aquela esforço coletivo é em nome de um homem: Cortez conquistou o México, Napoleão perdeu a campanha da Rússia.
E nada nos impede de imaginar que quando Balboa enxergou o Pacífico entendeu de imediato o quanto, diante daquele universo de água, tudo o mais era pequeno. Ficou com o olhar chapado das pessoas que descem da nave alienígena em "Contatos Imediatos".
Ocorre muitas vezes que essa visões de epifania e transcendência não deixam um indivíduo vaidoso pelo conhecimento adquirido, mas modesto por conhecer agora as próprias dimensões.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
2741) Drummond: “Família” (16.12.2011)
Uma parte considerável de Alguma Poesia (primeiro livro de Carlos Drummond, publicado em 1930) é de poemas sobre a vida doméstica, descrita de diferentes pontos de vista (“Infância”, “Sweet Home”, etc.). Um tema que foi se diluindo gradualmente. Não lembro de nenhum texto nessa linha em livros como Claro Enigma, por exemplo. Na verdade, há dois tipos de textos muitos diferentes: os poemas em que Drummond evoca sua família real, suas lembranças reais (o pai, a mãe, etc.) e os poemas em que ele compõe pequenos quadros de vida doméstica que não se referem propriamente a ele mesmo, mas a famílias imaginárias cuja existência está plantada na zona limítrofe entre a paz e a pasmaceira, entre a tranquilidade e o tédio.
“Família” pertence a essa linha: “Três meninos e duas meninas, / Sendo uma ainda de colo. / A cozinheira preta, a copeira mulata, / o papagaio, o gato, o cachorro, / as galinhas gordas no palmo de horta / e a mulher que trata de tudo”. Parece a descrição da fotografia de uma família. Ou um daqueles “grupos de família numa sala” que os pintores antigos gostavam de compor. Essa enumeração de personagens humanos e animais, porém, soa como uma receita de bolo, uma lista de ingredientes necessários para preparar a família mineira ideal.
Além dos personagens, a família inclui uma cenografia meticulosa de objetos, e pequenos rituais associados a eles: “A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, / o cigarro, o trabalho, a reza, / a goiabada na sobremesa de domingo, / o palito nos dentes contentes, / o gramofone rouco toda noite / e a mulher que trata de tudo”. Note-se a reiteração da frase “e a mulher que trata de tudo” num tom de calculada ambiguidade. A mulher é mencionada como se fosse a figura mais poderosa, e ao mesmo tempo a frase tem aquele tom taxativo, machista, bem tradicional, dos sujeitos que dizem: “aqui na casa quem manda é a patroa”, num tom que deixa bem clara a situação de subserviência dessa “patroa”.
A vida social de-portas-afora é descrita em breves cápsulas na estrofe final: “O agiota, o leiteiro, o turco, / o médico uma vez por mês, / o bilhete todas as semanas / branco! Mas a esperança sempre verde. / A mulher que trata de tudo / e a felicidade”. Rotina, vidinha conservadora e um tanto fundada em preconceitos (veja-se o tom com que se refere ao “turco”, à “cozinheira preta e a copeira mulata”, como se fossem coisas). A palavra “felicidade” na linha final surge como um elemento obrigatório a partir do qual todos os outros tivessem sido deduzidos. Parece um retrato de família a óleo mostrando na parede um dístico: “Aqui nesta casa todo mundo é obrigado a ser feliz”.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
2740) Arte Acontecimento (15.12.2011)
No futuro próximo irá se intensificar a prática da Arte Acontecimento, mas num plano diverso dos “happenings” dos anos 1960, que privilegiavam o inesperado, o espontâneo, o aleatório. A Arte Acontecimento, ou Arte Evento, irá extrair seu perfil de atividades como o Teatro de Guerrilha, ou Teatro Invisível, de Augusto Boal; os “flash mobs”, ajuntamentos de pessoas com um propósito específico, convocados via Twitter ou celular; os atores que fazem “estátua viva” na calçada; os ativistas ecológicos que interrompem desfiles ou solenidades atirando pizzas ou sangue nos participantes. Nesta forma de arte futura, grupos se organizarão e realizarão peças instantâneas, em lugares públicos, nas quais os transeuntes serão coadjuvantes involuntários e imaginarão que estão presenciando um fato casual, não uma sequência prevista e deliberada de acontecimentos.
Um forte impulso será dado a esta Arte pela disseminação das famosas “pegadinhas” da TV, que estão condicionando o público a aceitar com passividade ou simpatia interferências ficcionais (no sentido de serem pré-roteirizadas) no seu cotidiano. Aceitaremos esses teatrinhos de rua como aceitamos a música de rua ou os pintores que fazem quadros com spray sentados na calçada.
Alguns desses grupos preferirão usar uniformes ou signos facilmente reconhecíveis, como acontece com grupos já existentes – a Confraria do Garoto, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo. Outros virão disfarçados de transeuntes. Alguns grupos provavelmente homenagearão personagens fictícios com os quais se identificam ou com que têm certa filiação simbólica ou sentimental, como os Palhaços ou os Piratas do Tietê, do cartunista Laerte, ou os agentes da Intempol, a polícia temporal criada por Octavio Aragão.
Muitas dessas ações de rua serão expansão de Role Playing Games e de atividades típicas da Internet. Jogos, disputas ou encenações terão lugar através da Web, em tempo real, e em determinados momentos exigirão que seus participantes saiam à rua e participem de tais ou tais ações numa praça, num restaurante, num edifício público, num metrô, etc. Webcams farão a conexão, transformando a rua num palco e a Web numa platéia. Note-se que nada disto se aplica a atos públicos, protestos, ações políticas tipo “Ocupem Wall Street”, mas apenas a ações coordenadas de finalidade estética, artística, ficcional. A Arte Acontecimento consistirá em pequenas histórias ou pequenas situações, potencializadas pela Web, em que ações humanas e diálogos humanos servirão para iluminar a condição humana num ambiente em que será difícil distinguir entre vida e arte, entre o espontâneo e o planejado.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
2739) Aos jovens escritores (14.12.2011)
1)
Use uma iluminação diferente quando for escrever. Por exemplo, apague a luz principal do escritório, acenda um abajur virado para a parede, deixe a tela do computador brilhar mais forte na penumbra. Crie um clima. Algo que avise o seu inconsciente que agora está num momento distinto, onde as regras são outras.
Se não der certo, faça o contrário: ande com caneta e papel no bolso e escreva em qualquer lugar, a qualquer momento, em qualquer clima. Na fila do banco, no metrô, no táxi, na sala de espera, em casa diante da TV.
2)
Tenha perto do computador uma poltrona, sofá, etc., onde você possa pensar longe do teclado. Isso ajuda. O corpo descansa, a cabeça carrega as baterias. Ficar hesitando na frente do teclado cansa todos dois. Se sentir que “deu um branco”, sente no sofá, feche os olhos, concentre-se no que está escrevendo. Quando uma frase surgir, não hesite, pule do sofá, sente no teclado e mande bala.
Se não der certo, faça o contrário: obrigue-se a ficar na frente do computador, brigando mentalmente com a frase até que ela apareça, mas sem abandonar o ringue e sem aceitar o gongo.
3)
Planeje cuidadosamente o livro; faça lista dos personagens, com nome, descrição e pequena biografia de cada um; esboce mapas das andanças deles, prepare descrições dos ambientes (use fotos ou ilustrações que deem sugestões visuais), faça sinopse e escaleta dos capítulos. Tenha em mente tudo que aconteceu na história, e só então comece a escrever.
Se não der certo, faça o contrário: comece com uma frase, uma imagem, uma situação solta, e vá improvisando toda a história a partir daí, dando nomes provisórios às pessoas e aos lugares, o importante é não deixar a peteca cair nem a corda-bamba se soltar.
4)
Tenha sempre à mão livros inspiradores, livros que você acha bem escritos e que por alguma razão basta ler um parágrafo deles para sua cabeça ficar a mil, querendo escrever, contaminada por aquela energia verbal.
Se não der certo, faça o contrário: pare de ler durante dias, não ligue a TV, não veja filmes, dedique-se apenas a tarefas manuais, limpe a mente de palavras, para quando começar a escrever estar com a cabeça intacta e pronta.
5)
Leia instruções, manuais, faça oficinas literárias, consulte livros como O Livro do Escritor (Ímã Editorial), siga religiosamente as dicas alheias para ver se funcionam com você.
Se não der certo, faça o contrário: escreva prestando atenção em você mesmo, analise seu jeito de fazer as coisas, incremente o que dá certo, corrija o que não dá, crie seu próprio método de escrever. Criar o próprio método é tão divertido e tão útil quanto escrever o próprio livro.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
2738) Lá vem o Barça (13.12.2011)
(Xavi: 600 jogos pelo Barcelona)
Parei tudo, no sábado passado, para assistir Real Madrid x Barcelona, que nos últimos anos andou ganhando o status de O Maior Jogo do Mundo. São dois grandes times, de futebol refinado, raça impressionante, e que cultivam uma rivalidade histórica. Mesmo que estejam ambos caindo aos pedaços e sem aspirações a um título, quando entram em campo para se enfrentar é como se estivessem jogando a vida e a alma. É uma disputa além do futebol. Historicamente, o Barcelona se identifica com a esquerda e com a resistência republicana durante a Guerra Civil espanhola dos anos 1930. Já o Real Madrid se identifica com a monarquia e com os exércitos franquistas que venceram a Guerra Civil. Nem preciso dizer que torço pelo Barça. (E que milhares de torcedores do Real vão me escrever agora dizendo que minha descrição é desinformada e injusta.)
No jogo de sábado, diante de 80 mil torcedores (dos quais apenas 500 do Barcelona), o Real abriu o placar com 25 segundos, fazendo o mundo vir abaixo. Pressionou por meia hora, e poderia ter feito mais um ou dois gols, liquidando o jogo. Não fez. O Barcelona assimilou o golpe, botou a bola no chão e os nervos no lugar, e empatou. No segundo tempo, jogou como quis; o Real voltou a desperdiçar chances e o Barça conseguiu mais dois gols, calando o estádio.
O futebol do Real é vigoroso, rápido, ofensivo; seus jogadores chutam de longe com uma força e precisão impressionantes, e cada ataque do time é uma “blitzkrieg”. O jogo do Barcelona é miúdo, rápido, envolvente. Não entendo muito desses esquemas táticos de hoje, tipo 3-4-1-2 ou 4-2-1-3. Parece, no entanto, que a ordem no Barça é: não importa onde esteja a bola ou com quem, deve haver sempre 4 ou 5 jogadores fazendo um círculo em volta dela, prontos para tomá-la do adversário ou recebê-la do companheiro. É um jogo de impressionante velocidade, não a velocidade de arrancada rumo ao gol que é a cara do Real, mas velocidade de raciocínio e de visão, numa troca rápida de passes curtos até que a bola chega a um jogador em condições de chutar a gol ou dar o derradeiro passe.
O passe de primeira faz o Barcelona estar sempre um segundo à frente do adversário, no desenrolar da jogada. Vejo tantos jogadores hoje em dia que recebem a bola, param para pensar no que farão, e num piscar de olhos são desarmados. Uma vez perguntaram ao grande Capablanca quantas jogadas um Grande Mestre do Xadrez tinha que pensar antecipadamente. Ele disse: “Basta uma, desde que seja a jogada certa”. O Barcelona está sempre um toque, um segundo à frente do adversário, e é o que lhe basta para ganhar qualquer jogo, inclusive O Maior Jogo do Mundo.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
2737) Contracapa de skype (11.12.2011)
(mancha solar; foto da Nasa)
& um poema são instruções para mudar seu modo de pensar & uma espaçonave sentiente viajando vazia para descobrir sozinha a galáxia & vejo relâmpagos vermelhos no fundo do mar, e vêm subindo & não tem problema na vida que um acidente de moto não resolva & quando me deito pra dormir e me cubro com o lençol sinto como se ele fosse o sudário de Turim & a política é uma guerra entre formigas, as pretas invadindo um buraco aqui, as vermelhas fugindo às pressas de outro, lá no outro quarteirão & a lei é para todos, a transgressão para quem se atreve & primeiro saciar a fome, depois fazer amizade com os sobreviventes & pirata de verdade gosta menos do brilho do ouro do que do som do aço & uma freira cruzando devagar uma ponte deserta à meia-noite & a vida é uma queda do alto de um arranha-céu com um milhão de andares & dez centavos de cada cidadão chinês quebravam meu galho pro resto da vida & a olho nu é difícil distinguir entre uma estrela e uma galáxia & ainda não sei o que é mais ominoso, um ataúde ocupado ou um ataúde vazio & mundo globalizado é aquele em que você embarca para Londres, vai parar em Varsóvia, e sua mala no Gabão & a memória é um museu sem portas nem porteiros, onde qualquer um leva e traz o que bem entende & marcapasso coisa nenhuma, vou implantar é um bate-estacas & o Coliseu se erguia na colina como um dente cariado & e pensar que a Humanidade passou séculos tentando inventar um avião que batesse asas & tem gente que leva uma vida como a das formigas, correndo e cortando, trazendo pra casa e correndo de novo & a memória é um cesto de guardar água & um mercenário insone, de arma em punho, vigiado por um milhão de camponeses & quem me dera ser como o cavalo do Barão de Munchausen, e a bebida descer direto pro chão & a lua vem surgindo cor de nata & “Deus”: uma palavra que só serve para encerrar discussões interessantes & o sedutor trata uma mulher como um turista trata uma cidade & seria tão bom se existissem minibombas atômicas com que a gente se detonasse à noite, e na manhã seguinte acordasse bem normal & em algum lugar existem as árvores que produzem moscas, mosquitos, vespas, varejeiras & poemas cuneiformes gravados num queijo minas & uma prestidigitador que pegava um romance na estante, fazia um gesto, e um personagem desaparecia da história & a insônia é um carro trancado na garagem com o motor ligado & no casamento é preciso saber a hora de ser locomotiva e a hora de ser vagão & vivo oscilando entre o constrangimento por ganhar pouco e o remorso por ganhar muito & ser livre é estar vivo, o resto é choradeira &
sábado, 10 de dezembro de 2011
2736) O artista farol (10.12.2011)
(ilustração: Jaron Phillips)
Escrevi uma vez que esses poetas que se dizem influenciados por Arthur Rimbaud deveriam ter radicalizado essa influência e parado de produzir poesia aos 19 anos, como ele fez. É um gracejo, meio sem sentido aliás, porque para ser influenciado por Rimbaud basta ter lido uma vez alguns dos seus grandes poemas. Rimbaud dedicou a sua curta obra, escrita ao longo de cinco ou seis anos, uma intensidade de pensamento e de trabalho equivalente a uma vida inteira de um sujeito normal. Muita gente, contudo, esquece esse trabalho insano e acaba querendo imitar os cacoetes superficiais de Rimbaud: sua andarilhagem, seu homossexualismo, sua grosseria, sua mania de se alojar na casa alheia, seu gosto pelo escândalo... Nem Bob Dylan escapou.
Ou então, é um jovem guitarrista que quer tocar igual a Keith Richard, e uma das primeiras coisas que faz é começar a injetar heroína. Ou um jovem escritor que lê um livro de Faulkner, se deslumbra, ouve falar que Faulkner era um bêbado, e começa imediatamente a beber, ao invés de escrever. A verdade é que é mais fácil e mais divertido imitar os vícios de um artista do que as noites em claro que ele passou estudando e aperfeiçoando sua técnica. Artistas são, muitas vezes, sujeitos com imensa capacidade de concentração, de esforço, de disciplina; mas como têm um lado romântico e anticonvencional minimizam esse esforço, não querem ficar exortando os jovens a se tornarem “operários padrão”. Mas eles próprios o foram, e sem isto não teriam sido grandes.
O pior de tudo é quando certos artistas viveram uma viagem autodestrutiva que os arrastou para o abismo, mas durante esse processo produziram uma obra que perdurou. O leitor desavisado, o leitor jovem geralmente, imagina que para produzir uma obra como aquela é indispensável viver uma vida como aquela. Pensa que tem a obrigação de tomar todas as drogas que William Burroughs tomou, para ter idéias tão anticonvencionais quanto as de Burroughs; pensa que para escrever como Edgar Allan Poe é preciso viver na penúria, enchendo a cara, brigando com os amigos; pensa que tomar remédios tarja-preta o dia todo e ceder a surtos esquizofrênicos vai lhe dar de graça romances como os de Philip K. Dick.
Esses artistas são como faróis. Existem para serem vistos à distância, não para que alguém se aproxime deles. A obra é a luz que emitem, mas no caso deles é preciso saber que essa luz revela os penhascos ameaçadores onde foi fincada. Dizem aos navegantes: “Este lugar é perigoso!”. Feliz o artista que, mesmo naufragando entre os penhascos, consegue produzir alguma luz que diga: “Afasta-te daqui! Foi aqui que naufraguei!”.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
2735) “Jornal da Morte” (9.12.2011)
Esta canção de 1961 foi gravado pelo grande Roberto Silva, no quarto LP de sua histórica série Descendo o morro. A canção começa com vozes de jornaleiros bradando na rua, gritos agudos de mulher, uma sirene policial que uiva e a entrada de um cavaquinho lancinante. (Esta sirene precede em cerca de cinco anos sua utilização em “Highway 61” de Bob Dylan.) Um coral de vozes femininas repete: “Sangue – sangue – sangue...” E o cantor ataca: “Olha aqui este jornal. / É o maior hospital. / Porta-voz do bangue-bangue / e da polícia central”. E começa a relatar as notícias: “Tresloucada, seminua / jogou-se do oitavo andar / porque o noivo não comprava / maconha pra ela fumar... / Um escândalo amoroso / com retratos do casal / um bicheiro assassinado / em decúbito dorsal. / Cada página é um grito: / um homem caiu no mangue! / Só falta alguém espremer o jornal / pra sair sangue, sangue, sangue...” Ouça aqui a canção: http://www.youtube.com/watch?v=Tidd-RjnxOI.
A letra é do versátil Miguel Gustavo, que ajudou Moreira da Silva a criar seu personagem Kid Morengueira em sambas memoráveis. E que ficaria ainda mais famoso depois de compor o que se tornaria o jingle do tricampeonato da Seleção Brasileira no México, em 1970; “Noventa milhões em ação / pra frente Brasil / do meu coração...”
As imagens sensacionalistas, o tom explorativo das próprias manchetes, dá à música um tom de denúncia que a afasta dos sambas humorísticos de Morengueira. A canção tem o tom melodramático mas coberto de urgência de outros sambas do seu tempo, como “Mãe Solteira” de Wilson Batista e Jorge de Castro: “Hoje não tem ensaio na escola de samba / o morro está triste, e o pandeiro calado; / Maria da Penha, a porta-bandeira, / ateou fogo às vestes / por causa do namorado”. Ou de “Notícia de jornal”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Tentou contra a existência num humilde barracão / Joana de Tal, por causa de um tal João...” São sambas em que os desajustes sociais e as pequenas tragédias anônimas são vistas por um breve instante através dos olhos de um público e da linguagem da “mídia ambiente” (o jornal da morte, a notícia que “carece de exatidão”). São antecessores do corpo que tem “em vez de rosto uma foto de um gol” de Aldir Blanc e João Bosco. Drogas, escândalos sexuais, homicídio de bicheiros, tudo isto aparece nessa canção de 50 anos atrás como algo que se reencontra todas as manhãs, pendurado numa banca de revista. A mesma fascinação sustenta a edição de “faits divers”, de folhetos de cordel sobre crimes famosos ou fatos inusitados, e dos jornais que dão fama às tragédias da micro-história cotidiana.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
2734) O vitral e a vidraça (8.12.2011)
Isaac Asimov faz uma comparação hábil (embora injusta, a meu ver) entre o escritor que quer contar uma história e o escritor que quer criar uma maneira pessoal de contar qualquer coisa. É a velha oposição meio maniqueísta entre enredo e estilo.
Asimov compara essas duas formas de escrever com a vidraça e o vitral. Uma vidraça é transparente: olhamos por ela sem vê-la, porque não queremos ver a vidraça, queremos ver apenas o que ela está nos mostrando do outro lado. Já o vitral (aquele vitral de igreja) é opaco, colorido e não quer mostrar outra coisa além de si próprio.
Diz Asimov que a prosa literária, sofisticada, é assim como um vitral: quer apenas exibir-se como prosa bem escrita. Não quer contar história alguma, nem exprimir verdade alguma a não ser sua existência como prosa brilhante. E diz Asimov que ele próprio produz uma prosa-vidraça, simples, direta, transparente, que não quer se exigir como literatura, quer apenas mostrar o que está do outro lado, ou seja, a história que está contando.
Há uma frase de George Orwell que talvez tenha sido lida por Asimov e guardada no inconsciente, aquele caldeirão febril onde todas as assinaturas e todas as autorias se dissolvem. Diz ele:
Há uma frase de George Orwell que talvez tenha sido lida por Asimov e guardada no inconsciente, aquele caldeirão febril onde todas as assinaturas e todas as autorias se dissolvem. Diz ele:
Eu tentei com todas as minhas forças contar toda a verdade sem violar meus instintos literários. Um autor não pode escrever nada legível sem que lute constantemente para apagar a sua própria personalidade. A boa prosa deve ser como uma vidraça.
Para ele, acho, a “personalidade” a ser apagada é a que resulta num estilo literário que chama a atenção para si mesmo. Para Orwell e Asimov, o leitor não deve prestar atenção no modo como a frase foi escrita. Se ele parar para “saborear” uma frase é sinal de que a vaidade do autor está interferindo com a contação de história.
A analogia entre literatura e vidraça não se sustenta, como a maioria das analogias. Ela pressupõe que existe uma realidade objetiva “lá fora” e que a prosa literária deve servir, com discrição e não-interferência, para revelar essa realidade.
A analogia entre literatura e vidraça não se sustenta, como a maioria das analogias. Ela pressupõe que existe uma realidade objetiva “lá fora” e que a prosa literária deve servir, com discrição e não-interferência, para revelar essa realidade.
Ora, não existe nos livros (de Asimov, de Orwell, etc.) nenhuma realidade independente das palavras com que está sendo descrita. Não existem vidraças por onde os fatos possam ser vistos “exatamente somo são”. Toda linguagem escrita, toda obra literária é uma tela animada, feita de palavras, por trás do qual existe apenas o vácuo negro da não-existência.
As imagens que imaginamos ver através da vidraça são na verdade criadas na superfície da própria vidraça, que nesse caso se parece menos com vidraça e mais com uma tela de cristal líquido. Toda literatura é vitral, e revela apenas a si própria.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
2733) Consciência artificial (7.12.2011)
Quando René Descartes proferiu seu famoso “Penso, logo existo” colocou um desafio para os programadores de video-games e de inventores cibernéticos em geral. Quando será que um personagem de jogo será capaz de, sem ser estimulado por seres humanos biológicos, produzir uma afirmação equivalente? Claro que não se trata de apenas repetir a frase de Descartes, por mais que isto pudesse ser criativo (Borges, em “Pierre Menard”, tentou provar que a frase do escritor A, repetida espontaneamente pelo escritor B, ganha novos contextos e novas nuances, e pode ser considerada uma frase original). Seria necessário que um personagem artificial de game, com pendor introspectivo, reflexivo, metido a filósofo, abandonasse por algum tempo as façanhas de espadachim para que fôra programado (coisa que ocorreu com o próprio Descartes) e, recolhendo-se à meditação, afirmasse a própria existência, baseando-se apenas no fato de ser capaz de pensar na possibilidade dela.
Há dois tipos, que eu saiba, de personagens de games: os que são controlados por jogadores, e os que são controlados por algoritmos, fórmulas matemáticas que determinam as ações dos personagens baseando-se num vasto menu de possibilidades de ação. Defrontando-se com várias alternativas, o personagem regido por um algoritmo opta por uma delas, influenciado por variáveis que podem ser aleatórias (equivalentes a jogar um dado) ou podem levar em conta tudo que aconteceu com o personagem até então, sua história pessoal. É possível chegarmos a algoritmos que nos deem a sensação de que existe uma consciência humana por trás daquelas decisões. Mas não saberíamos se era uma ilusão ou um fato. Só o veríamos como fato se esse personagem regido por fórmulas matemáticas se tornasse tão caótico e imprevisível quanto um ser humano normal.
Minha teoria filosófica predileta é a de que a humanidade é o videogame de alguma raça muito mais adiantada do que a nossa. Começou como um jogo de ação/aventura tipo “Trogloditas vs. Mamutes”, evoluiu para um jogo de gerenciamento de tribos, agricultura e pastoreio. Então, os avatares biológicos fugiram ao controle. Primeiro inventaram a linguagem, depois a escrita; e desenvolveram consciência individuais que não faziam parte do plano. O degrau seguinte levou esta nossa humanidade biológica a desenvolver uma humanidade cibernética (feita de bytes, de pixels, de algoritmos) na qual o mesmo processo começará, mais cedo ou mais tarde, a se reproduzir. O universo é um experimento em que espécies de natureza física totalmente diversa trabalham para produzir o mesmo fenômeno não-físico: a consciência de si mesmo.
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
2732) Dr. Sócrates (6.12.2011)
O aspecto mais delicado, ao comentar a morte de alguém vitimado pela droga, é evitar o discurso moralista e hipócrita (“Jovens, afastai-vos! As drogas matam!”). Como posso dizer isso, se eu também bebo? Sócrates bebeu valentemente em suas últimas décadas de vida. Segundo a imprensa, estava com o fígado praticamente destruído, e sua única chance real de sobrevivência era aguentar firme até conseguir um transplante. Infelizmente, não deu. A culpa é da bebida? É do bebedor? Diante de situações assim, temos necessidade de atribuir culpa a alguém, como se achar um culpado pudesse de certa forma apaziguar a nossa mágoa pela perda. Aqui, o culpado e perda são uma só pessoa, porque ninguém obrigava Sócrates a beber, ele bebia porque gostava, como a imensa maioria dos que bebem, inclusive eu. A questão, mais uma vez, é saber quando parar. Parar por hoje. Dizer: “Parei por hoje, me traz uma mineral com gás”, ou algo equivalente. Se você todo dia souber a hora de parar de beber por hoje, talvez tenha chance de continuar bebendo em paz até uma idade avançada.
Sócrates, como jogador, era um desses casos improváveis de atleta, como aquele besouro que não pode voar mas voa. Sócrates era magro, desengonçado. Quando corria, parecia o tempo todo a ponto de cair sozinho. Não teria físico para suportar o futebol vale-tudo de hoje em dia, todo à base de safanões, encontrões, esbarrões, trancos e peitadas. O que o salvava era a imensa habilidade com a bola, na qual batia com a precisão de um taco de sinuca, dando-lhe a força, a trajetória e o efeito que bem entendia. E a inteligência. Era alto, enxergava o jogo inteiro lá de cima. Parecia saber sempre onde estava cada companheiro e cada adversário, para onde se deslocavam, e a que velocidade. No meio dessa confluência de trajetórias, ele fazia sua navegação leve, ágil, bola dominada, sem esbarrar em ninguém, ziguezagueando por entre a zaga e muitas vezes executando uma assistência diagonal que deixava seus companheiros na cara do gol.
O quarteto que ele compôs na Seleção Brasileira de 1982 com Zico, Falcão e Cerezo não tem similar, na combinação de estilos tão diferentes e complementares; em qualidade pura, foi equivalente ao quarteto Pelé, Tostão, Gerson e Rivelino na Copa de 1970. Falam muito nos passes de calcanhar do doutor. O calcanhar estava para ele assim como o trocadilho estava para Lourival Batista: um detalhe pitoresco numa obra mais profunda e mais complexa. Irônico, incisivo, crítico, boêmio, conhecia as entranhas do futebol e conseguia continuar achando-o belo. Um brasileiro de biografia improvável, e de um carisma tranquilo e sem pose.
domingo, 4 de dezembro de 2011
2731) Influência literária (4.11.2011)
(originais de Sagarana)
Uma das perguntas mais rotineiras que se faz a um escritor, ou a um artista em geral, é: Quais os autores que o influenciaram? Nas minhas noites de insônia fico meditando sobre a função dessa pergunta e chego à seguinte conclusão. O entrevistador quer saber quem são os autores que Fulano tenta imitar, para poder avaliar se ele está conseguindo ou não. Porque a tal da influência, pelo que vejo por aí, consiste, no frigir dos ovos, em “escrever parecido” com Fulano ou Sicrano. Se eu disser que sofri influência de Harlan Ellison, meus contos passarão a ser lidos de uma maneira diferente do que seriam se eu anunciasse uma influência de Tchecov. (E talvez levasse o entrevistador a tentar descobrir quem é Harlan Ellison, para lucro de ambos.)
Amigos, nem sempre a influência consiste em produzir texto parecido. Eu, por exemplo, fui muitíssimo influenciado por Guimarães Rosa, mas dou grátis um livro meu a quem apontar um só parágrafo meu onde possa ser demonstrado que tentei escrever parecido com o beletrista de Cordisburgo. Por outro lado, nossa literatura hoje em dia está saturada de gente reproduzindo os tiques e cacoetes de Rosa, os arcaísmos e regionalismos de Rosa, as prefixações inusitadas e as derivações-na-marra de Rosa. Se influência é isso, seria melhor tentar inventar uma vacina que acabasse com ela.
Nem sempre é o estilo de um autor que nos influencia; às vezes é o seu método. Uma das primeiras coisas que me chamaram a atenção em Rosa foi, nas edições de seus livros pela José Olympio, as páginas em fac-símile mostrando o modo minucioso e completo como ele repensava, revisava e refazia cada linha, cada parágrafo, cada palavra. Decidi escrever assim, e escrevo assim até hoje. Rosa viajava sempre com cadernos e cadernetas anotando tudo para possível uso futuro; ainda aos vinte e poucos anos, decidi fazer o mesmo. Nisto recebi também influência de Maiakóvski, que aconselhava anotar tudo; mas duvido que algum poema meu seja parecido com algum poema do bardo de “A Plenos Pulmões”.
Imitar o método de um autor é mais saudável do que imitar seu estilo. Com a ressalva, sempre, de que somos biologicamente incapazes de imitar o método (ou o estilo) de um escritor com quem não nos identificamos, um escritor de diapasão diferente do nosso. Melhor esquecer o estilo e tentar adotar hábitos, métodos, técnicas, rotinas e atitudes de A ou B que sentimos serem capazes de fazer render melhor nossos textos, dando um resultado muitíssimo nosso e pouquíssimo de A ou B. Imitar o estilo alheio nos reprime e nos desfigura; melhor imitar um método alheio quando este ajuda a nos desenvolver e nos revelar.
sábado, 3 de dezembro de 2011
2730) A corrente e os elos (3.12.2011)
A frase mais famosa atribuída a Sherlock Holmes, “Elementar, caro Watson”, nunca foi pronunciada por ele (parece que a frase surgiu num filme, e não nos livros de Conan Doyle). Falarei de outra frase, esta sim, incluída num livro de Doyle, e pronunciada pelo Dr. Watson. No livro O Vale do Terror, os dois amigos estão comentando a traição de um bandido da quadrilha do Prof. Moriarty, que passa informações para Holmes, às escondidas. E Watson comenta: “Pois é, nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos”. Basta que um dos bandidos “entregue o leite” para que toda a quadrilha desça pelo ralo.
Essa frase tão perceptiva contradiz a noção generalizada de que Watson era um sujeito estúpido que só servia para “fazer escada” para Holmes. O doutor tem vários momentos de agudeza intelectual que um dia me darei o trabalho de reunir num alentado artigo. Por enquanto, basta registrar que se você tem uma corrente com centenas de elos feitos de aço inoxidável e um de papel, de nada adianta o aço da maioria, porque é no papel que ela vai se partir ao primeiro puxão. Em termos de engenharia isto pode ser um problema mas pode também ser uma solução – foi assim, talvez, que os eletricistas inventaram o conceito de fusível, uma coisa mais fraquinha que pipoca no primeiro problema e desliga todo o resto, mantendo-o intacto.
Quando inventaram a Internet e a World Wide Web, o conceito principal por trás dessa inovação era justamente a de que não importava qual o ponto dessa rede que fosse desligado, por acaso ou de propósito; o fluxo de informação continuaria passando. Numa corrente linear, onde toda a informação tem que passar necessariamente por cada um daqueles elos, basta um dele se romper para o fluxo ser detido. Numa malha ou rede (web), a informação, ao chegar nesse ponto, pode ser desviada lateralmente, rodeando o “elo rompido” e voltando ao trajeto normal logo adiante, como quem faz um desvio diante de uma ponte desmoronada e logo adiante volta à rodovia.
Retomando os termos do dr. Watson, podemos dizer que uma rede é uma combinação de correntes lineares que se reforçam umas às outras, de modo que se um elo for mais fraco que os demais o seu rompimento não prejudica a solidez do conjunto. Daí que o termo “roteamento” seja tão importante no mundo internético. Rotear é dirigir o fluxo de informação, e poder fazer isso, quando um “elo” se rompe, por um caminho diferente do que estava sendo feito um segundo atrás. Numa corrente linear, o roteamento só tem uma direção por onde seguir, sem alternativas, o que a torna de fato a mais frágil das opções para a transmissão de informações.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
2729) Os Bretons e os Dalis (2.12.2011)
Que Miller é um reacionário ranzinza todo mundo já sabe. Basta ler suas graphic novels, que são retratos vívidos, realistas e cruéis de uma certa mentalidade norte-americana de hoje. Esperar que ele apoiasse o “Ocupem Wall Street” seria tão inútil quanto imaginar que Nelson Rodrigues pudesse ter sido a favor das passeatas estudantis de 1968.
Num artigo a respeito (http://acheiusa-octavio.blogspot.com/), o escritor e artista de HQ Octavio Aragão comenta outro ângulo da questão o da efemeridade dos movimentos em si.
Diz ele:
“Será que os manifestos, as revoluções ideológicas e movimentos de caráter modernista ainda têm as mesmas características daqueles que reformataram o mundo nos séculos 18, 19 e 20? Ou funcionam apenas como interregnos entre duas fases de aperfeiçoamento do mesmo sistema contra o qual os manifestantes se rebelam? Há muito que movimentos de contracultura pop são absorvidos com a mesma velocidade com a qual surgem – hippie, mod, rocker, punk, new wave, new romantics, hip-hop, rap, funk... – e seus discursos, por mais contundentes que sejam a princípio, são fagocitados pela moda, pelos meios de comunicação, pelos inimigos contra os quais surgiram a princípio, contribuindo para o aperfeiçoamento dos adversários, que saem cada vez mais fortes de cada confronto, cada “revolução”.
Eu faria uma comparação desses movimentos com o Movimento Surrealista parisiense dos anos 1920. Há duas figuras emblemáticas desse movimento: seu fundador, André Breton, e seu participante mais famoso, Salvador Dali.
Breton tinha qualidades (era grande poeta, tinha um enorme carisma, era um desses delirantes que acham que estão mudando o mundo) e defeitos (era autoritário, egocêntrico, como todo fundador-de-movimento-cultural). Mas tinha um viés esquerdista que o fez apoiar a Revolução Russa e o tornou para sempre “persona non grata” na mídia dos EUA.
A qual num passe de mágica fez a palavra “surrealismo” se colar à figura apolítica, clownesca e “ávida por dólares” de Salvador Dali.
Todo movimento tem um lado radical e um lado festivo, tem o seu Breton e o seu Dali. O Sistema rapidamente identifica os dois, sepulta o primeiro através de listas negras e chás-de-silêncio; e promove o outro. Simples assim.
Assinar:
Postagens (Atom)