(Gardner Dozois)
Gardner Dozois, editor da Asimov’s Science Fiction, uma revista que recebia centenas de
contos por semana, tinha uma receita infalível para filtrar este material. Dizia ele:
Leio a primeira página do conto, e depois a última. A primeira página tem que me dar vontade de
continuar lendo sem parar. A última
precisa me dar vontade de voltar atrás e saber o que aconteceu para resultar
naquele desfecho.
Quando se tratava de um romance (completava ele), fazia o
mesmo com o primeiro e o último capítulo.
Isto não é um critério absoluto de julgamento literário,
porque alguns textos começam de mansinho e vão nos envolvendo. Outros terminam bem, mas de maneira indireta,
alusiva, sem desfechos bombásticos. Mas
para quem precisa definir um critério urgente de interesse, serve
perfeitamente. Um bom começo é meio
caminho andado.
Já tive o hábito de chamar esse tipo de abertura de conto “O
Começo Mike Tyson”. Mike Tyson foi o campeão mundial dos pesos-pesados nos anos
1980-1990, e era famoso por ganhar as lutas logo no primeiro assalto. A gente
ia assistir a luta num bar, e quando emendava as mesas, sentava e pedia a
primeira cerveja... a luta já tinha acabado. Ele partia pra cima e resolvia o
problema, às vezes, em questão de dois ou três minutos.
(Machado de Assis, por Abel Costa)
No conto (ou romance), às vezes nem precisa ser um parágrafo
inteiro, porque a primeira frase pega o leitor pelo braço e o conduz. Machado
de Assis é um mestre nessas frases de abertura que em poucas palavras impõem
uma situação, jogam o leitor de súbito no meio de um acontecimento. Como em “O relógio de ouro”:
“Agora contarei a história do relógio
de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante
cadeia”.
Em “Fulano”, ele arrasta o leitor:
“Venha o leitor comigo
assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o?
Era um homem de cerca de sessenta anos...”
Em “A carteira”, começa ele:
“...De repente Honório olhou
para o chão e viu uma carteira.
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes”.
Outras frases de abertura provocam espanto, como em
“História comum”:
“Caí na copa do chapéu de um
homem que passava...”
O autor não tarda a revelar que quem conta a história é um
alfinete.
Começos bruscos convêm a histórias de mistério e suspense,
como na aventura de Sherlock Holmes “A granja da abadia”, contada por Conan
Doyle:
“Numa fria e nevoenta manhã de
inverno, em 97, acordei com uma batida no ombro. Era Holmes. A vela que ele segurava brilhava
no rosto ansioso e fiquei imediatamente sabendo que acontecera alguma coisa. – Venha, Watson, venha! O jogo começou! Nem uma palavra! Vista-se e venha!”
É a técnica de começar a história in media res, já no
meio dos acontecimentos, sem deixar ao leitor tempo para respirar, como faz
Rubem Fonseca na abertura de “Desempenho”:
“Consigo agarrar Rubão, encurralando-o
de encontro às cordas. O filho da puta
tem base, agarra-se comigo, encosta o rosto no meu rosto para impedir que eu dê
cabeçadas na cara dele”.
É a descrição de uma luta, que o autor torna vívida através
do uso de palavrões, que exprimem a agressividade animal da cena, e do uso do
jargão dos lutadores (“de encontro às cordas”, “tem base”).
Fonseca é mestre nos inícios coloquiais, em que logo na
primeira frase nos deparamos com uma história de narrador pouco confiável, como
“Gazela”:
“O senhor talvez pense que eu
estou bêbado, mas não estou bêbado porra nenhuma. É esta história que me deixa tonto, nunca
contei nada para ninguém; na verdade, quem me parece bêbado é o senhor”.
Outra técnica tradicional das aberturas é anunciar o caráter
extraordinário da história a ser contada, e fisgar o leitor logo na primeira
linha.
Como faz Conan Doyle, em “O caçador de besouros”:
“—Uma experiência curiosa?
disse o doutor. – Sim, meus amigos, aconteceu-me curiosíssima experiência. Espero nunca ter outra, porque seria contra
todas as leis da probabilidade que dois acontecimentos semelhantes se passassem
numa só vida de um homem. Podem vocês
acreditar-me ou não, mas a coisa aconteceu exatamente tal como a conto”.
Criar uma aura de mistério ou anunciar uma revelação
espantosa serve a autores que lidam com o fantástico, como Guy de Maupassant na
abertura de “Quem sabe?”:
“Meu Deus! Meu Deus!
Vou afinal escrever o que me aconteceu!
Mas será que conseguirei? Terei coragem? Aquilo é tão estranho, tão inexplicável, tão
incompreensível, tão louco!”
O tom desesperado, quase histérico de Maupassant é herdeiro
direto de autores como Edgar Allan Poe, que manipularam com a mesma mestria o
conto alucinatório. Poe começa assim “O
coração denunciador”:
“É verdade! Tenho sido e sou
nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso!
Mas, por que ireis dizer que sou louco?
A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os
entorpeceu.”
Ou em “O gato preto”:
“Para a muito estranha embora
muito familiar narrativa que estou a escrever, não espero nem solicito
crédito. Louco, em verdade, seria eu para esperá-lo, num caso em que meus próprios sentidos rejeitam seu próprio testemunho. Contudo, louco não sou e com certeza não
estou sonhando”.
Muitos autores escolhem começar assim um conto. Anunciar um mistério, uma dúvida, uma
situação enigmática e inquietante, e contar com a curiosidade do leitor pra
mantê-lo preso até o final. Isto pode
ser feito como Conan Doyle em “Os três Garridebs”, com a revelação parcial de
detalhes:
“Podia ter sido uma comédia
como podia ter sido uma tragédia. A um
homem custou a perda da razão, a mim me custou um pouco de sangue e a um
terceiro lhe custou as penas da lei.
Entretanto, sempre houve um elemento de comédia. O leitor que julgue por si mesmo”.
Claro que nem sempre é preciso recorrer ao suspense ou a
situações violentas. Basta o mistério,
como Machado começa “Entre santos”:
“Quando eu era capelão de S.
Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura
extraordinária”.
Em “Idéias de canário” ele começa assim:
“Um homem dado a estudos de
ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão
extraordinário que ninguém lhe deu crédito.
Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração”.
E seu conto clássico “Missa do Galo” principia:
“Nunca pude entender a
conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela
trinta”.
Esta frase inicial dá o tom de todo o conto, em que a
personagem feminina nos é revelada pelo narrador ingênuo, sem que ele entenda
os fatos que está narrando.
(Uma versão
ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua
Portuguesa (Ed. Segmento, São Paulo) em dezembro de 2008.)