(foto: hdesbois)
Nos últimos dez anos recrudesceu a discussão sobre a posição
dos romances recentes de William Gibson dentro da ficção científica. Depois de duas trilogias futuristas, Gibson
mergulhou num mundo que é visivelmente equivalente ao nosso, sem futurismo, sem
elementos fantásticos, sem nada que viole as leis da natureza ou que nos
transporte para um mundo diferente.
Isto é FC, se a definirmos como “a literatura que enfoca as mudanças
produzidas em nossa vida pela ciência e pela tecnologia”. Uma definição
incompleta, claro, mas que serviu para muitos autores clássicos e deve servir
também para o “poeta noir do ciberespaço”. O qual, meio a sério, meio
brincando, já disse que seus livros eram FC porque a ação transcorria “cinco
minutos no futuro”.
Se é assim, “Zero History” (2010) deve ser o primeiro livro
na história da FC que tem como tema central a fabricação de jeans. Só que não é
um jeans comum. Os personagens do livro
vivem caçando uma marca “cult” de jeans, “Gabriel Hounds”. São calças, casacos,
etc., fabricados não se sabe por quem, comercializados de maneira artesanal,
sem divulgação, usando táticas quase de guerrilha. Neste sentido, assemelha-se
ao “McGuffin” usado por Gibson em “Reconhecimento de Padrões” (2003): um filme
misterioso feito não se sabe por quem e distribuído de forma anônima e
clandestina pela Internet.
O que torna especiais os Gabriel Hounds? Além do fato de serem tecnicamente
impecáveis, eles são algo que têm personalidade própria pelo simples fato de
não estarem carregados de personalidade alheia, de não parecerem com nada. Diz alguém: “É uma questão de atemporalidade. Uma questão de pular fora da industrialização
da novidade. Algo que vai num código
mais profundo”. Essa novidade às
avessas, esse paradoxo zen, se assemelha a “The Footage”, o filme “cult” do
outro romance, que fascina a protagonista Cayce Pollard porque é algo que não
tem marca, não tem logo, não tem ferro em brasa marcando, não tem assinatura,
não tem local, não tem data. O
contrário da moda e da publicidade.
OK, não há alienígenas nem espaçonaves, mas o que Gibson faz
é uma ciência do presente, uma ciência da cultura, da percepção, dos universos
simbólicos que criamos e que nos manipulam de volta. Dentro da Mídia Ambiente
que nos impede de ter idéias próprias (podemos apenas reagir às idéias dela),
os Gabriel Hounds e a Footage são o inominável, um produto da cultura (ambos
exibem técnica impecável) mas que não foi apropriado pela Hidra de Dez Milhões
de Cabeças. Eles exprimem não só uma
possibilidade de linguagem pré-Babel, mas de uma literatura que não tenha
gênero, rótulo, griffe, etiqueta costurada.