O filósofo Heráclito
disse que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Ele era um desses
pré-socráticos cuja filosofia surgiu da observação constante da natureza e dos
homens. Bons tempos em que era possível ser filósofo amador, sem ter que
estudar Heidegger ou Wittgenstein. Heráclito era uma espécie de Manuel Xudu ou
João Paraibano, compondo sextilhas em que pequenos aspectos da Natureza servem
de ponto de partida para generalizações abstratas sobre o Universo. Ao que
parece não deixou livros; o que escreveu sobrevive apenas em fragmentos citados
nas obras dos que vieram depois. Tal como a maioria dos cantadores.
Heráclito queria
registrar a mudança constante das coisas, e o rio lhe serviu como imagem
perfeita. Ao longe parece estar paradão, imóvel, mas quando o vemos de perto
percebemos que ele é uma coluna horizontal de água em deslocamento constante.
As águas que nos tocam, quando entramos nele, vão embora para sempre, um
instante depois. Jorge Luís Borges não
deve ter sido o primeiro a comentar que a frase de Heráclito nos sugere, como
primeira generalização, que “o rio muda o tempo inteiro”, e a maioria das
pessoas se detém aí. Mas, se continuarmos pensando, perceberemos que nós,
também, mudamos tanto quanto o rio. O homem que entra no rio pela segunda vez
também já é outro.
Isso certamente
marcou a filosofia grega com esse conceito da diversidade (ou mudança) entrelaçada
à identidade (ou permanência). Mas é bom examinar melhor esse aspecto. Ao
descobrir ou intuir o conceito de mudança permanente, Heráclito não estava
negando a identidade. Ele era filósofo mas não era doido. Sabia que o rio era o
mesmo, sim, e sabia que ele também, mesmo mais limpo devido ao banho da
véspera, era o mesmo. Sabia que era Heráclito banhando-se de novo naquele rio
de Éfeso, não era Jackson do Pandeiro banhando-se no açude de Bodocongó. Ele percebeu que todas as coisas têm
identidade e mudança. São sempre as mesmas, e não-são-mais-exatamente-as-mesmas
a cada segundo. Se o sujeito só enxergar a identidade, vai entrar em parafuso
cada vez que o mundo botar uma transformação na sua frente; se só enxergar a
mudança, corre o risco de não saber que nome assinar no cheque, ou para que
casa deve voltar depois da farra.