Duvido que mesmo o pessoal de Campina Grande que tem a minha idade, que conviveu comigo alguns anos de glória do Galo do São José, lembre de um camisa 10 chamado Belame, um cara moreno, magro, alto. Um meia armador ofensivo, no sentido Sócrates do termo, no sentido Araponga do termo, no sentido Assis Paraíba do termo.
Belame jogou poucos anos porque fazia faculdade. Largou a
bola, ganhou dinheiro, virou um eterno sócio e torcedor alvinegro. A “vida de bola” não era o forte dele, embora
a bola fosse.
Virou Belame do Pandeiro, por causa de um grupo de
batucada que tem até hoje com uns amigos sabadeiros e dominicais. Bom percussionista,
diz que é “mil vezes melhor com o pandeiro do que com a bola. E além disso o
pandeiro não empata de beber”.
Belame é de Campina, nascido no Catolé. Um pouco mais
velho do que eu. Tem voz razoável, sabe muito samba antigo, sabe forrós
obscuros de Zito Borborema ou Manezinho Silva, sabe uns boleros do tempo bom.
Seus ídolos: Trio Nordestino, Demônios da Garoa, o Jorge Ben da primeira fase.
Belame sempre foi articulado, lia bastante. Hoje, avô de
netos, forte e sadio, gosta de sentar de frente para o mundão escancarado e
filosofar um pouco. Para ele qualquer esquina de beco pode virar um Corcovado
aberto.
Meses atrás estive em Campina e fui visitá-lo numa tarde tranquila,
e botamos pra beber e filosofar. Era um entardecer de domingo, ali perto da
subida da Manoel Tavares para o Alto Branco. Uma rua lateral onde mora uma
filha dele, e onde às vezes ele chama algum da gente para almoçar, tocar um
pouco e trocar idéias. Eu levei o violão, a gente ficou curtindo e apostando
repertório.
A rua era de calçamento, com uma calçadinhas estreitas e
limpas, crianças de bicicleta. A gente estava do lado de fora da casa, junto do
meio fio, uma mesinha, duas cadeiras, uma cerveja no obus de isopor, um prato
de guloseimas sanguinolentas. Dali do alto avistávamos a vastidão do céu da
Borborema, como se o sertão longínquo estivesse se incendiando, e ficamos roendo
as unhas pelo futuro do Brasil.
– E agora, Belame? – perguntei, meditativo e cheio
de respostas.
Ele serviu os copos até esvaziar a garrafa, ergueu para a
janela pedindo outra e anunciou:
– Vou lhe explicar o mundo como é. Teve uma vez, anos 60
eu acho, uma decisão no Maracanã, Fluminense e não sei quem. Final de
campeonato. Empate, não se usava pênalti pra decidir, e por incrível que pareça
foi no cara ou coroa.
– Isso mesmo – disse eu.
– O capitão do Fluminense era Pinheiro, um xerifão alto,
de bigode. Batia pênalti com uma violência que parecia um uruguaio. Era chamado
o Rei do Pênalti.
A netinha chegou trazendo a cerveja nova, ele serviu os
copos, bebeu, limpou a espuma.
– Mas nesse tempo não se decidia título no pênalti –
continuou ele. – Era na moeda: o juiz, os bandeiras, os dois capitães, num
círculo, e os dois times e um monte de babão no círculo em volta. Ah, sim, os
repórteres de pista. O que hoje chamam de trepidantes.
– Certo.
– Quando estavam se encaminhando pro centro do campo, Pinheiro
chamou o pessoal do Fluminense, deu uma instrução. Foram para o meio. Ele pediu cara,
o outro aceitou coroa, o juiz jogou pra cima, e quando a moeda começou a descer
piruetando ele disparou num berreiro, rapaz, e o time todo ao mesmo tempo, um
berreiro ensurdecedor, esbarrando, derrubando todo mundo, o time pulando aos
berros de “É campeão! É campeão!” ou sei lá como era o grito daquele tempo.
– E a moeda, tinha dado o quê?
– Ninguém viu a moeda até hoje. O que valeu foi aquilo. O
juiz não era besta de mandar voltar, a foguetaria cobrindo no centro, uma nuvem
de pó-de-arroz no Maracanã que se avistava em Niterói.
– Muita cara de pau – disse eu.
– Pois bem, isso é que as pessoas chamam de Narrativa. O
futebol é cheio dessas coisas. Já vi muita bola, no derradeiro minuto, ser jogada
para dentro do gol e o zagueiro devolver de cabeça. O juiz nessa hora pode marcar o que bem
quiser, porque certeza mesmo ninguém tem.
– Mas o outro time protesta, né?
– Jogador protesta até minuto de silêncio. Mas isso é um
exemplo do que eu chamo O Olho Ponderado. Guarde essa expressão. Significa um
olho que tem um peso maior, um valor maior que o de outros olhares.
– O olho de quem tem o Poder.
– Isso. Dentro de campo, o olho do juiz tem esse peso. É o
poder e é o risco, é a autoridade dele e é a vulnerabilidade dele: o olho dele,
o olho que fornece a decisão. Não importa se aquela bola entrou ou não. Importa
o que ele disser. É a Narrativa.
– Eu queria ser guarda-noturno e não queria ser juiz de
futebol.
Ele deu um gole silencioso, concordando. Pegou o maço de
cigarro, pensou, desistiu, largou de novo, voltou a falar.
– Voltando a Pinheiro no cara ou coroa: Pinheiro foi foda.
Figurativamente ele passou o juiz, a imprensa, as autoridades no rodo, não
deixou nada. Nada. Desmoralizou todo mundo. Rebatou a Narrativa da mão do pobre
do juiz, tu entendesse?
– Tem uma história de boxe que eu acho muito boa – disse
eu. – Uma daquelas lutas da porra de Mike Tyson com Evander Hollyfield.
– Eu era o maior fã de Myke Tyson – disse ele. – Teve três
lutas que a gente foi ver. Uma foi no antigo Miúra, outra no bar de Dermeval no
Tambor, e outra numa churrascaria véia que não existe mais... Pois toda vez, quando
a gente ainda estava se arrumando nas cadeiras e pedindo a primeira, a luta
acabava.
– Nesse dia – disse eu – Hollyfield deu uma surra
histórica em Tyson. Depois da luta, Tyson e a equipe dele estavam indo juntos
pra sala de imprensa, pra dar a entrevista. Tyson falou : “Vou dizer assim: eu
sabia que ia acabar com ele”. Aí o técnico dele disse: “É melhor não chegar lá
falando muita merda não, cara. Tu perdesse a luta.” Ele estava tão zonzo que ainda
não tinha entendido direito.
– Essa é demais – disse ele com uma risada. – Ele ainda
estava na Narrativa de antes.
– Era um fenômeno. E nessa época, data vênia o nobre
colega me permitir, eu criei um conceito.
– Fique à vontade – disse ele, desta vez acendendo e baforando
um cigarro. – A rua é pública.
– Isso é uma coisa que tem na literatura. Eu chamo O
Começo Mike Tyson. É a partir da primeira frase, num livro, você já cair
matando, não deixar o leitor respirar. Uma página, uma e meia, duas... Depois a
linguagem pode ir desacelerando, o passo vai no ritmo que convier. Mas o começo
é algo como o que Mike Tyson fazia naqueles dois ou três minutos quando o gongo
fazia “pléinn!...”. Às vezes a gente consegue fazer isso num conto.
– É verdade. Na batucada, mesma coisa. A gente vai tocar numa
manhã-de-sol num clube grande, num lugar aberto com quase mil pessoas... Abre o
show pisando levinho? Nãããão! Você entra fudendo, com uma música bem alta, pra
encerrar qualquer assunto e fazer todo mundo parar a conversa, encher o copo e
virar a cadeira pro palco.
– Boa.
– Começo Mike Tyson. Tá valendo. Pois o que Pinheiro fez,
voltando ao fio da meada, foi um final Mike Tyson. A Narrativa não é o que
aconteceu. Também não é o que a gente pensa que aconteceu. A Narrativa é a
versão de quem passa o trator por cima de todo mundo e diz: Essa porra vai ser
contada assim.
Eu bebi, meditei um pouco. Bebida não serve pro sujeito
ficar bêbado, serve pro sujeito ocupar a boca e dar tempo de pensar melhor numa
resposta.
– E agora, Belame? – perguntei, pondo o copo na mesa. –
Tudo indica que a gente perdeu a Narrativa. Faz o quê, agora?
Ele deu mais um gole, pegou o violão, que estava deitado
em cima duma cadeira próxima, formou uns acordes distraídos enquanto olhava o céu.
E o crepúsculo afogueando uma beirada inteira de Campina.
– Poeta, o futebol me ensinou que vitória de domingo se comemora
no domingo, porque quarta-feira tem jogo. E a derrota de domingo mesma coisa:
se chora no domingo, porque quarta tem jogo.
– Dá um sol menor aí – disse eu.
Ele fez um sol, ré, sol. E a gente emburacou num Nelson
Ned dos velhos tempos: “Pois tudo passa,
tudo paaaassarááá... E nada fica, nada fiiiiicarááá...