segunda-feira, 25 de março de 2019

4450) As flores azuis de Raymond Queneau (25.3.2019)




Muitos anos atrás, no tempo pré-Internet redes sociais, eu fazia parte de várias “listas de mensagens” sobre diferentes temas, algo meio equivalente às redes sociais de hoje. Numa delas, sobre Philip K. Dick , a gente trocava impressões sobre os livros dele, curiosidades biográficas, idéias em geral.

Uma vez discutíamos a diferença entre sonho e realidade. Um cara (infelizmente não copiei e guardei essa postagem) falou que era sujeito a sonhos incrivelmente detalhados e precisos, nos quais vivia em outro planeta e era outra pessoa. Além da exatidão (dizia ele) havia a diferença de tempo. Ele adormecia aqui, em sua casa, sonhava que estava no outro planeta, e vivia ali durante meses inteiros, trabalhando, agindo, dormindo, acordando, e depois de meses voltava à vida anterior (esta), acordando de manhã cedo, oito horas depois de ter adormecido. Si non è vero è bene trovato.

Lembro disso toda vez que penso no romance de Raymond Queneau Les fleurs bleues (1965). Este livro faz um ping-pong entre dois personagens, um na Paris dos anos 1960, e outro na Idade Média. Os dois sonham alternadamente que são o outro.

No mundo moderno, a gente acompanha as aventuras de Cidrolin, um cara meio esquisitão mas divertido que mora numa balsa ancorada no Sena, tem três filhas (trigêmeas) e leva uma vida modesta. Toda vez que ele adormece, o livro salta para as aventuras do Duque de Auge, que tem seu castelo feudal, é amigo do Rei, vive cercado de nobres, alquimistas, padres, etc., além de dois cavalos falantes.

De certa forma, é uma alternância entre uma história mainstream e uma história de fantasia heróica. Quando o duque adormece, por sua vez, Cidrolin acorda – e tudo recomeça. E cada um deles comenta com as pessoas em volta que tem sonhado um sonho contínuo, esquisito, sobre um mundo estranho, etc.

O próprio autor sugere uma comparação com o famoso apólogo chinês: “O sábio Chuang Tzu sonhava toda noite que era uma borboleta, até que começou a achar que era na verdade uma borboleta sonhando que era um filósofo”.


Raymond Queneau pega essa estrutura e cria um romance divertido, cheio de anacronismos propositais – o Duque de Auge refere-se o tempo inteiro a objetos, idéias ou palavras que não existiam na época em que está vivendo. E tem mais: cada vez que o enredo salta de volta para ele, ele e sua entourage estão num futuro mais avançado.

O livro começa em 25 de setembro de 1264, mas alguns capítulos depois o Duque já está em 1439 e usa canhões com pólvora em suas batalhas; mais à frente ouve falar na queda da Bastilha e se preocupa com a sorte do seu amigo “Donatien” (=o Marquês de Sade), e assim por diante.

Enquanto isso, Cidrolin trata de casar as filhas, tocar sua vidinha, beber “essência de funcho” (uma bebida à base de anis) e se preocupar com um inimigo misterioso que a toda hora está pichando sua cerca com insultos, obrigando-o a repintar a cerca todas as manhãs.

Les Fleurs Bleues é um desses livros onde o romance principal (como em James Joyce) é entre o autor e a linguagem. Queneau brinca com as palavras o tempo inteiro: trocadilhos, grafia fonética, provérbios parodiados, citações, uma pirotecnia verbal bem trabalhosa de traduzir. Ele é um dos fundadores do grupo parisiense OuLiPo (“Oficina de Literatura Potencial”), que já incluiu Ítalo Calvino e Georges Perec.

O livro (que eu saiba) é inédito no Brasil, mas há uma tradução acadêmica feita por Roberto de Abreu (FAFILCH, USP, 2011): Traduzir Les fleurs bleues, de Raymond Queneau: o jogo do significante e o humor.

Pode ser acessada aqui (o arquivo traz o texto francês e a tradução lado a lado, em colunas verticais):

O trabalho de Abreu traduz integralmente o livro, e é precedido de uma discussão detalhada sobre todas as escolhas, que são sempre subjetivas. Traduzir Queneau é como traduzir Guimarães Rosa. Para traduzir palavras inventadas, ou efeitos verbais sonoros, é preciso inventar também.


Queneau é pouco conhecido no Brasil. Aqui já foi traduzido seu romance mais famoso, Zazie no Metrô (Rocco, 1985, trad. de Irène Monique Harlek Cubic; Cosac Naify, 1995, trad. Paulo Werneck), que foi filmado em 1960 por Louis Malle.

E em 1989 o diretor Gabriel Vilela montou o espetáculo Você Vai Ver O Que Você Vai Ver, adaptando o livro Exercices de Style, traduzido no Brasil por Luiz Rezende (Imago, 1995; pode ser acessado aqui: https://monoskop.org/images/b/b0/Queneau_Raymond_Exercicios_de_estilo.pdf). 

O título desse espetáculo, aliás, foi tirado de Les Fleurs Bleues: “vous allez voir ce que vous allez voir” (cap. XV).


Difícil achar aqui no Brasil alguém com quem comparar a prosa trocadilhesca e meio absurdista desse escritor que era um erudito brincalhão. Les Fleurs Bleues lembra um pouco o Campos de Carvalho de O Púcaro Búlgaro ou o Sérgio Sant’Anna de Confissões de Ralfo: personagens bidimensionais, quadrinhescos, metidos em empreitadas cheias de nonsense, ou o Paulo Leminski de Catatau, na demolição do conceito de História através de uma orgia da linguagem. Talvez os momentos mais descontraídos e experimentais de Guimarães Rosa, como “Cara-de-Bronze”.

Les Fleurs Bleues é uma obra de maturidade de Queneau (1903-1976), que fez parte do grupo surrealista de André Breton, era fã dos folhetins de Fantômas, dirigiu a série de História das Literaturas da “Encyclopédie de la Pléiade”, foi letrista de música popular, escreveu roteiro para Luís Buñuel, traduziu para o francês Amos Tutuola e Edgar Wallace, foi membro do Colégio de Patafísica e da Academia Goncourt.

Seu objetivo era talvez o mesmo do alquimista de Les Fleurs Bleues (trad. Roberto de Abreu):

Entender a linguagem das abelhas, falar a língua dos Tupinambás sem tê-la aprendido, conversar com uma pessoa a mil léguas de distância, entender a harmonia das esferas celestes, saber de cor o conteúdo de mil e três obras, discorrer sobre todas as coisas com pertinência sem ter jamais estudado.
(Cap. X)


(Raymond Queneau)