Uma nova série de ficção científica está indo ao ar, em
episódios semanais: Foundation (Apple
TV). A criação é de David S. Goyer, responsável principal pelo projeto, com
mais uma equipe de roteiristas e diretores. Os capítulos iniciais têm como base
a série de histórias que o jovem Isaac Asimov publicou com vinte e poucos anos,
inspirado em suas leituras da Declínio e
Queda do Império Romano (1776-1789), de Edward Gibbon.
Li os romances originais de Asimov com menos de trinta
anos, na tradução da Editora Hemus. Uma década depois, traduzi uma “prequel”
para a Editora Record, Prelúdio da
Fundação (1988).
Aqui, há uma descrição básica de como nove histórias
curtas acabaram se transformando nos três volumes da chamada “Trilogia da
Fundação”:
http://www.pannis.com/SFDG/TheFoundationTrilogy/theFoundationStories.html
É um épico gigantesco sobre a Via Láctea, povoada por
nossa humanidade, num império com milhares de planetas habitados. Um jovem
cientista, Hari Seldon, começou a desenvolver uma ciência que ele chamou de
“Psico-História”, que avalia os comportamentos coletivos dos seres humanos e de
suas sociedades. Ele prevê a queda do império, devido às suas contradições
internas, e um intervalo de barbárie que tem chances de durar trinta mil anos;
mas Seldon defende a criação de uma “Fundação” com o objetivo de diminuir essa
“era das trevas” para mil anos apenas.
Asimov não era um grande estilista literário. Seu
conhecimento de psicologia, embora muitas vezes seja perceptivo, não é páreo
para o de outros autores. Nem falo dos clássicos do romance mainstream. Basta comparar Asimov com
contemporâneos seus na FC, como Theodore Sturgeon ou Fritz Leiber. É uma pena,
mas ele compensa isso com um conhecimento científico sólido, muita imaginação,
vivacidade narrativa. E afinal de contas, criou a psicologia robótica, o que já
é uma contribuição.
E no que se refere a Fundação...
É como dizia um amigo meu, fã asimoviano de carteirinha: “Só peço aos que o
criticam que me mostrem o que foi que eles próprios escreveram aos 22
anos.”
(A galáxia da Fundação, em desenho de Isaac Asimov ]
Não vou discutir aqui nem os livros de Asimov (que não
releio há mais de 30 anos) nem a fidelidade da adaptação. Quero comentar alguns
aspectos dos primeiros episódios.
Em primeiro lugar, tem rolado uma discussão ferrenha
sobre a questão identitária e de representatividade étnica, de gênero,
etc. Eu até entendo, porque um
personagem que me era muito familiar, o andróide Eto Demerzel, me assustou ao aparecer
agora como uma mulher. Vários personagens masculinos aparecem como mulheres; e
vários personagens que todo mundo visualizou como homens brancos aparecem agora
como homens negros.
Asimov era um judeu russo-novaiorquino, tinha uma certa
mistura genética e cultural no seu background;
mas o editor dessas histórias era John W. Campbell, para quem todo personagem
de história de FC deveria ser anglo-saxão.
(John Campbell, desenho de Frank Kelly Freas)
Campbell, para quem a série “Fundação” foi escrita, foi
um importante formatador temático e ideológico da FC norte-americana das
décadas de 1930 e 1940. Como diz Frederik Pohl, outro jovem autor encorajado e
publicado por Campbell: “Ele ficava sempre meio constrangido ao lidar com
pessoas que não tinham tido o bom senso de nascerem homens, brancos e
protestantes.” (The Way the Future Was, cap. 5)
É ainda
Pohl, quem explica:
Não creio que em toda sua vida ele tenha se recusado a qualquer
obrigação ou cortesia por motivos de raça ou de religião. Mas ele não sabia se
seus leitores (que ele presumia serem rapazes brancos, anglo-saxões e
protestantes) seriam tão tolerantes quanto ele. Assim, ele sugeria aos
escritores judeus que escondessem esse defeito. Quando eu vendi a ele, como
agente, a primeira história de Milt Rothman, John pôs as cartas na mesa. “Os
melhores nomes,” declarou, “são escoceses ou ingleses. Isso vale para os personagens,
e também para a assinatura dos autores. Não tem nada a ver com preconceito. É
que eles soam melhor.” (Idem, trad. BT)
O depoimento de Pohl mostra bem a corda-bamba de pressões
culturais no ambiente onde a FC norte-americana se desenvolveu: alguns
quilômetros quadrados em Manhattan, na década de 1930, onde ficavam as redações
das centenas de milhares de pulp
magazines que toda semana adornavam as bancas de revistas do país inteiro.
Asimov era judeu por ascendência, mas sempre se afirmou
ateu e cientista. Só usou pseudônimo quando escreveu livros juvenis (“Paul
French”). Mas uma característica do seu estilo, muito presente em Foundation é a criação de nomes
não-étnicos, não-nacionais. Os nomes dos personagens desse ciclo têm
sonoridades vagamente familiares, mas propositalmente distorcidas: Hari Seldon,
Eto Demerzel, Gaal Dornick, Salvor Hardin, Dors Venabili, Chetter Hummin...
São nomes que sugerem ter sofrido mutações ao longo do
tempo (estamos a milhares de anos no futuro), mas que por isso mesmo perdem o
vínculo nacionalista sugerido por Campbell. (Se Asimov quisesse homenagear seu
editor, poderia talvez ter criado um personagem chamado “Jun Kembol”.)
Essa impessoalidade dos nomes próprio se casa bem com o
modo como Asimov concebia seus personagens, e neste sentido a série da Apple
não violenta seu estilo. Na literatura de Asimov, um personagem é como uma
incógnita algébrica. Está ali para assumir valores e encaminhar funções. Na
grande maioria dos casos, tanto faz se o personagem tem origem ocidental ou
oriental, branca ou negra, se é macho, fêmea ou robô – e afinal, que
significado terão estes conceitos daqui a 50 mil anos (época em que acontecem
estas histórias)?
(continua em breve)