FICÇÃO CIENTÍFICA
“Picnic on Paradise” (1968), de Joanna Russ
É um dos livros pioneiros das
super-heroínas da FC. Alyx é uma agente transtemporal que logo na primeira
página dá uma chave-de-perna num policial com o dobro de sua altura e do seu
peso, estatelando-o no chão. Ela está ali para servir de guia a um grupo
heterogêneo de turistas num planeta gelado e inóspito. Os turistas são todos
riquinhos e reclamam de tudo. O passeio se envolve com uma guerra e vira um
pesadelo. Morre gente (de verdade). Começa como uma HQ descolada e aventurosa,
vai ganhando contornos dark à medida que os conflitos pegam fogo. A prosa de
Russ é rápida, incisiva. Em 1968 ela já estava desconstruindo clichês que muita
gente considerou novidade no ano passado.
AUTOR NACIONAL
“Gótico
Nordestino” (2022), de Cristhiano Aguiar
Um dos livros mais premiados do ano, e
com justiça, pois são contos imaginativos, escritos numa prosa segura. Numa
resenha que fiz para a revista 451,
comentei o fato de que a nordestinidade das histórias se dá de modo mais sutil
do que o aparecimento dos famigerados “elementos típicos”. Cristhiano retoma
alguns temas do horror clássico, mas evita fazer aquela série infindável de
referências que muitos autores colocam como piscadelas-de-olho para os
leitores-fãs, mostrando que leram os mesmos livros e conhecem as mesmas
histórias.
Leia mais aqui: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura-brasileira/o-terror-vem-da-alma
HISTÓRIA
“Memória
da Cidade do Rio de Janeiro” (1955), de Vivaldo Coaracy
Acho fascinantes as descrições e as
anedotas sobre a vida no Rio no tempo da Colônia, do Império... Vivaldo Coaracy
(que também se assinava “V. Cy.”) tem uma prosa saborosamente antiquada, dá a
impressão daqueles intelectuais de casaca e pince-nez, muito cultos, muito
refinados. A gente se perde às vezes na geografia das ruas e dos logradouros
porque o “presente” do livro é 1955, e de lá para cá o Rio já trocou de pele
várias vezes. É um livro que pretendo reler, porque não apenas nos revive o
fascínio dos tempos passados como nos consola um pouco da tristeza de ver a
cidade sendo destruída e recriada – ela sempre foi assim.
HISTÓRIAS DE FANTASMAS
“The Book of Dreams and Ghosts” (1897), de Andrew Lang
Este livro é um clássico da
“historiografia fantasmagórica”; li numa reedição de 1974. Andrew Lang foi uma
figura onipresente da Inglaterra vitoriana e sherlockiana. Era um daqueles
intelectuais meticulosos e cultos, fascinado por pesquisas; escreveu e editou
uma quantidade impressionante de livros. Foi membro da Folk-Lore Society, num
tempo em que o conceito de “folclore” estava sendo criado (a palavra surgiu em
1846), e compilou uma importante coleção de contos de fadas, em nada menos que
25 volumes (1889-1913), a qual teve uma enorme influência na literatura
inglesa. Como membro (e até presidente) da Society for Psychical Research,
interessou-se profundamente pelas aparições de fantasmas – e compilou este
livro, onde registra e comenta dezenas de casos de aparições, com um certo
distanciamento e bom-humor, deixando sempre claro quando não acha nenhuma
explicação “racional” para o ocorrido.
MEMÓRIAS
“Solo
de Clarineta, 1 e 2” (1973, 1976), de Erico Verissimo
Érico, um escritor que sempre (re)lerei
com prazer, escreve suas memórias à maneira convencional, atendo-se aos fatos,
comentando-os, buscando a sinceridade e a veracidade. Estes livros são um
complemento ideal para dois outros, que li na adolescência, sobre suas viagens
aos EUA: Gato Preto em Campo de Neve
(1941) e A Volta do Gato Preto (1946),
e que recomendo sem reservas.
Eu não sabia nada de sua história familiar, e Solo de Clarineta dá uma série de retratos magníficos daqueles gaúchos épicos e sombrios, aquelas famílias introspectivas e ruidosas, aqueles homenzarrões encapotados que se metem em enrascadas homéricas. Talvez esta parte, que cobre mais da metade do primeiro volume, seja a mais reveladora e mais “literária”, porque puxa muito pela imaginação do menino, pelas conversas entreouvidas e semi-recordadas. É o princípio da recriação mítica dos antepassados que todos nós realizamos, querendo ou não.
Mais comentários aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4873-paisagem-perturbada-15102022.html
“Um Cavalheiro da Segunda Decadência” (1966-72), de Hermilo Borba Filho
Já o pernambucano Hermilo romanceia sua
própria vida, exagerando, delirando; suas memórias têm longas passagens surrealistas
e episódios claramente inventados. Um
Cavalheiro... é uma tetralogia, escrita num jorro inesgotável de prosa
brilhante, caótica, sarcástica, auto-depreciativa, idealista, erótica. Margem das Lembranças (1966) conta a
infância em Palmares e a iniciação etílica e sexual do menino “Borba”. A Porteira do Mundo (1967) mostra o
jovem Borba no Recife, estudos e trabalhos caóticos, leituras, primeiros
escritos, primeiras aventuras teatrais, primeira prisão política na ditadura
Vargas. O Cavalo da Noite (1968)
mostra Borba em São Paulo, como roteirista de cinema, redator de revista
chique, publicitário, envolvendo-se com a burguesia paulista. Deus no Pasto (1972) o mostra de volta
ao Recife, trabalhando para o governo de Miguel Arraes e indo parar de novo na cadeia,
no golpe de 1964. Hermilo escreve no estilo roman
à clef, alterando o nome dos personagens e das entidades (Ariano Suassuna é
“Adriano”; Arraes é “Árias”; a revista Visão
vira Mirante; etc.). Isto lhe dá
liberdade para dizer o que bem quer, e não é pouco.
FICÇÃO CIENTÍFICA
“Secret
Passages” (1997), de Paul Preuss
Este romance pode ser lido
independentemente da aventura anterior do cientista Paul Slater: há um pequeno
drama familiar que vem da primeira história, mas ocorre ao fundo, e é
convenientemente explicado. O importante aqui é que Slater e sua esposa
jornalista vêm a conhecer um físico grego que atrai os dois a Creta para lhes
dar acesso a uma descoberta misteriosa. A parte mais substancial do livro é a
vida deste grego, Minakis, que se tornou cientista depois que na infância
serviu de guia, nas montanhas, aos arqueólogos que pesquisavam as ruínas
minóicas de Creta.
O livro parte de uma trama arqueológica real (o arqueólogo John Pendlebury é um coadjuvante essencial na história) e atinge, em seu último terço, um breakthrough de Física que projeta a narrativa em plena ficção científica, além de fornecer uma resolução satisfatória à história de vida dos personagens. É uma experiência fascinante, porque cita-se muito a máxima de H. G. Wells de que basta uma grande idéia de FC para sustentar uma narrativa; a questão é que no livro de Paul Preuss essa idéia FC só se concretiza nas últimas 50 páginas. O leitor-fã, impaciente para reencontrar os tropos do gênero, talvez não espere tanto, mas o romance vale muito a pena.
AUTOR NACIONAL
“A
procura de Chã dos Esquecidos” (Schoba, SP, 2013), de Carmelo Ribeiro
Um romance histórico, ou
pseudo-histórico, ambientado na Paraíba de fins do século 18, quando a fome e o
misticismo falavam no centro. A primeira parte reproduz as cartas trocadas
entre o governador da capitania da Paraíba e o capitão-general de Pernambuco,
seu superior. Já existe aí uma ironia sutil sobre a relação instável entre os
dois atuais Estados, uma interdependência costurada com rivalidade. O autor reconstitui nesse epistolário, com
fluência e bom humor, o linguajar burocratês da época, tingido de ironia do
século 21. No final, a narrativa se
projeta num fluxo de irrealidade cada vez maior, como nos filmes de Glauber
Rocha onde o messianismo alucina as multidões, que se roem de fome e bradam
aleluias, que seguem o primeiro maltrapilho capaz de orar em voz alta e de
distribuir farinha de graça.
(continua)