Nei Lopes, sambista de talento, é também um pesquisador de tudo que diz respeito ao samba, à história da cultura negra do Rio de Janeiro. Anos atrás encontrei seu livro O Negro no Rio de Janeiro e sua Tradição Musical (Pallas, 1992), onde ele compara certas formas e estruturas do samba de partido alto com outros gêneros de improviso popular. Essa obra saiu depois, muito aumentada e enriquecida, como Partido Alto – Samba de Bamba (Pallas, 2005).
O partido alto é o grande território do repente no Rio de
Janeiro, uma cidade onde cantoria de viola e coco de embolada são praticados
quase exclusivamente por nordestinos. Há diferentes tipos de estrofe, de
refrões, etc., que não são catalogados tão rigidamente quanto os gêneros da
cantoria do Nordeste. Uma forma frequente, p. ex., é, após todo mundo cantar o
estribilho, alguém cantar uma quadra, e outro produzir uma quadra que sirva de
resposta, após o que cantam todos o estribilho e tudo recomeça.
No livro de 2005, Anescarzinho do Salgueiro comenta para o
autor: “Partido alto, hoje, o tema do partido é um e o verso é outro, quando
não era isso, o partido-alto exatamente era partido do tema, o tema em si é o
quê? Era o estribilho. Se o estribilho fala de amor, os versos é tirar partido
do amor nos versos. Partido-alto é tirar partido do tema.”
Olha o parentesco de espírito. Porque essa noção de “tirar
partido do tema” corresponde a vários preceitos da cantoria, como pagar o verso
bom do companheiro dizendo outro no mesmo “sentido”; ou glosar um mote
(submeter-se a um tema imposto), ou pegar na deixa (fazer uma menção sonora,
com a rima, ao verso deixado pelo outro). Tirar partido, sempre, do que foi
proposto, às vezes com pouquíssimo tempo para pensar.
Um verso que gostei foi “Como letra na cabeça / como letra
no jorná... / Você pra cantar imagina / eu canto sem imaginar.” O que quer dizer isso? Talvez alguns cantadores tenham memória
visual, como eu, e quando estão cantando um trabalho decorado lembrem (como eu
lembro) a imagem do caderno ou da folha impressa. Isso explica o olhar meio
vidrado e inexpressivo de alguns cantores. Estão vendo na cabeça a letra
impressa como num jornal. É como se ele dissesse: Você inventa o verso à medida
que canta, eu não, o verso me vem inteiro e eu canto, é só ler como se fosse
uma lauda escrita.