quarta-feira, 14 de julho de 2010

2264) Contracapa de MySpace (10.6.2010)



(imagem: Daniel López)

& a bolha do Presente se expande como um buraco negro, engolfando tudo & toda a ciência digital, o trans-humanismo cibernético, a computação quântica não passam de passos sucessivos para a criação artificial da alma & do Universo só enxergamos o que enxergava Jonas da baleia & a relação entre a vida e a obra é a mesma que existe entre o formato do copo e o número do dado & somos escravos tanto da dor quanto do prazer, e nossa única liberdade é o não-ser & um romance que fosse uma espécie de arte topiária, recortando arbustos de texto em formato de história & o Destino é uma frase escrita por um pião que roda na terra & tanto a glória quanto a desgraça acabam colorindo tudo que o sujeito tinha vivido antes delas acontecerem & quando acordo muito cedo acho o mundo muito estranho, as sombras todas do lado errado & uma pessoa de pé à minha frente, decifrada e misteriosa como a lombada de um livro & a mente consegue perceber o instante; o corpo é que não entende a eternidade & se a Arte é capaz de resgatar o Trágico, por que não resgataria o Feio, o Sórdido, o Doentio? & eu conheço dezessete teorias infalíveis para converter um pênalti & morrer é um pouco como ir dormir, tem uma hora que o sujeito diz, “tá bom, chega” & nossa sociedade conseguiu fazer com que o prazer de ter fosse maior que o de fruir, e ambos fossem menores do que o de comprar & bezerro bom nasce berrando & passei a vida escrevendo respostas para perguntas que nunca me foram feitas & será que um dia existirão, por exemplo, as doenças belas, as metralhadoras engraçadas, os marimbondos do bem? & dormi vestido e calçado, de bruços, com a chave do carro ainda na mão direita & não se conhece um vampiro olhando os seus dentes, mas os seus olhos & qual o problema em fazer frases, melhor uma pepita de ouro do que um lingote de chumbo & nem toda mentira é vil, há mentiras por compaixão; por prudência; por amor ao enganado; por amor à própria vida & bolacha só é bolacha quando acha um dia um dente & tem algo errado com um país onde é mais fácil comprar um celular do que aprender a ler & uma lenda é uma legenda que se justapõe a uma imagem para entendê-la melhor & anúncio: “homem que trabalha muito procura mulher que não dê muito trabalho” & aquele tipo de garoto que basta um adulto olhar para ele ele grita: Não fui eu!!! & nas soníferas ilhas de edição vi meu tempo de vida retalhado & bons tempos em que um homem podia se esconder atrás de um chapéu, uma gola de sobretudo e uma fumaça de cigarro & sou um camelô de sutilezas, melhor que ser um atacadista de monstrosidades & o que sabe a tartaruga do vento, e a lebre da paisagem? & as emoções no rosto dela eram tão legíveis quanto uma manchete de jornal & imagino que a esta altura eles já isolaram o gene que faz alguém não poder ir dormir enquanto não justificar sua existência com algumas palavras a mais &

2263) O acerto e o erro (9.6.2010)




Dizem que Howard Hawks deu este receita para um bom filme: “Três cenas boas e nenhuma ruim”. Com isso ele não queria dizer “se tiver três cenas boas todo o resto pode ser banal”. Hawks sabia que fazer um filme é dar uma série de saltos no escuro, porque o trabalho em grupo, mesmo em situações aparentemente controladas (como num estúdio de Hollywood) é sempre imprevisível. Quando pessoas se juntam para produzir “entretenimento artístico” (gostei desse oxímoro) isso tanto pode resultar em coisas brilhantes dentro desse gênero (aí estão Cantando na Chuva, Casablanca, A Noviça Rebelde e outros) quando em coisas inomináveis.

As três cenas boas são as que nos emocionam durante, e não são esquecidas depois. A receita de Hawks poderia (e aliás deveria) ter sido formulada por Alfred Hitchcock, cujos filmes sempre têm algumas cenas de alto impacto visual e narrativo, cenas clássicas que fazem esses filmes serem lembrados para sempre. Faça um teste: pegue um filme de Hitchcock que você não vê há mais de vinte anos. As grandes cenas estão lá, intactas, do jeito que a gente lembra; o resto é tão novo e banal que a gente fica em dúvida se já viu mesmo aquilo tudo. São as tais cenas “nenhumas ruins”, que servem de ponte entre as cenas geniais, que ajudam a contar a história, a preparar o espectador para o próximo suspense e ao mesmo tempo não são tão chatas que façam o bonequinho levantar da cadeira e ir embora.

Falei acima que um estúdio de Hollywood é um ambiente aparentemente controlado. A própria existência do estúdio se deve ao conceito de controle total. É mais simples e mais barato reconstruir Times Square num estúdio do que filmar em Times Square. Na locação real, você não pode dar ordens específicas a todos os carros, todos os pedestres, todas as pessoas nas janelas dos prédios. No estúdio, pode. O gasto de construir pode ser grande, mas ganha-se em horas de filmagem (principalmente quando essa locação envolve um número muito grande de cenas) e ganha-se no resultado final, que tem condições de ficar mais próximo do que o que o diretor queria.

Todo este arrazoado é para comparar duas concepções criativas: a do Controle Total (que procura reduzir ao máximo, já que é impossível extinguir) a possibilidade de erro; e a da Improvisação Planejada, que aceita o erro e tem mecanismos para incorporá-lo ao produto final. Nenhuma das duas é boa ou má, certa ou errada “a priori”. A primeira concepção é a de Kubrick, Hitchcock, Lang, Orson Welles. A segunda é a de Fellini, Jarmusch, Glauber Rocha, Godard. De um modo geral, quem trabalha em estúdios (e hoje em dia, quem trabalha em TV, dirigindo novelas) tem como primeira preocupação cercar o erro, evitar que qualquer cena fique “ruim”, na esperança de que ao longo do processo aconteçam as “cenas boas”. É por isso que em filmes de estúdio e em telenovelas se vê com frequência este resultado estranho: nenhuma cena boa e nenhuma ruim.





2262) O avanço dos mares (8.6.2010)



Manhã de domingo no Recife. Estou no 8o. andar de um hotel à beira-mar. Diante do edifício, gigantesco, ocupando metade do espaço visível e perdendo-se no horizonte, o Monstro me encara. Parece injusto chamá-lo assim, porque sua visão antes encanta do que aterroriza, e na verdade não existe nele nada de maligno. É apenas sua imensidão sem controle que nos permite ver nele aquilo que Virgílio, na Eneida, chamava de “monstrum horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum” – “um monstro horrendo, disforme, imenso, sem olhos”.

Todos veem o Mar, só eu vejo o Monstro. A visão da minha janela lateral está totalmente tomada pelo vulto maciço do hotel vizinho, um leviatã de concreto, pastilhas cinzentas e basculantes em vidro fumê. Preciso debruçar-me e olhar para a direita para vê-lo. São faixas sucessivas, superpostas, de cada qual mais distante que a outra. Embaixo, a Avenida Boa Viagem, seu trânsito da direita para a esquerda, as bicicletas, pessoas que correm ritmadamente, de óculos blindados. Mais acima, a primeira faixa, de areia clara, pontilhada por um jardim de guarda-sóis em azul e branco. Mais acima, a faixa escura, rajada, da piscininha formada pela couraça irregular dos arrecifes, onde crianças pulam nas suas boiazinhas; os arrecifes propriamente ditos são uma mancha negra paralela à avenida, e as ondas os recobrem sem cessar com suas espumas brancas. Mais para cima ainda, uma faixa mais larga (uns 20 metros) de água verde-clara como a líquida esmeralda dos olhos de Iracema, ou, menos literariamente, como caldo de cana recém-tirado. Depois desta, uma faixa maior, cerca de 50 metros, de um verde puxando mais para o azulado; depois desta, outra faixa de uns 200 metros de um tom mais azulado ainda; e coroando tudo, como um muro que veda o horizonte, uma faixa estreita mas compacta de um azul profundo, com um tanto do cinza do cimento, e do roxo de algas remotas.

Eis o monstro. Volto à poltrona e abro o livro em que Kim Stanley Robinson descreve o degelo da Antártica: “Gigantescas placas de gelo, aquecendo-se, rachando, deslizando por sobre a terra que as suporta abaixo do nível do mar, flutuando oceano afora em imensos blocos, deslocando muito mais água do que quando estavam fixas ao continente. Se todo esse gelo se desprender, o nível do mar subirá sete metros. Um quarto da população mundial será diretamente afetado, com prejuízos estimados, por baixo, em cinquenta trilhões de dólares”.

O Monstro não é cruel nem feroz. É um conjunto de processos físicos no qual interferimos, encorajados por não recebermos reações adversas imediatas. Isso nos faz aumentar o grau de intervenção, porque na verdade não temos o propósito de intervir, e sim o de produzir mais e mais energia para nossa conveniência. Despertamos o Monstro, e ele não é um Monstro que persegue ou dilacera. Ele apenas se expande e ocupa mais espaço, ocupa esta precária Atlântida em que vivemos.

2261) A estética do Logo Agora (6.6.2010)



O romance folhetim, cuja encarnação eletrônica de hoje é a telenovela, tem uma estética própria, baseada numa fascinante concepção do mundo. O folhetim joga alternadamente com a surpresa e a fatalidade, com o altamente improvável e o fatalmente inevitável, com o Acaso e o Destino. Comentando o conto de Jorge Luís Borges “A Loteria de Babilônia”, Stanislaw Lem observou certa vez: “Borges contrasta duas explicações do universo que são mutuamente excludentes: a sorte estatística e o determinismo total. Usualmente consideramos incompatíveis estas duas noções. Borges fala de um mundo cujo sistema se baseia numa loteria, e reconcilia duas explicações cosmológicas sem destruir as bases lógica de cada sistema”. De fato, no conto de Borges existe uma Companhia secreta e onipotente patrocinando uma loteria permanente, que distribui prêmios e castigos aos habitantes, seguindo um sistema cada vez mais complexo e abrangente. A Companhia interfere a tal ponto na vida cotidiana do povo que qualquer fato, por mais insignificante, pode ser consequência de uma ação dela, e mesmo quando um indivíduo toma uma decisão e pratica um ato qualquer não tem certeza se isto não lhe foi induzido pela Companhia.

O folhetim é a mesma coisa. Por isso é o reino da coincidência, do “deus ex machina”, das soluções artificiais para problemas dramatúrgicos. No folhetim, o autor é, mais do que em qualquer outro gênero, um Deus Caprichoso, faz o que lhe dá na telha, sem obedecer a nenhuma regra auto-imposta a não ser suas próprias venetas e sua própria necessidade de improvisar o tempo todo para que a história caminhe.

Isto me veio à mente ao ver na TV uma chamada para esta nova novela da Globo, Passione, em que Fernanda Montenegro, no papel de uma dama de negócios, recebe um recado urgente qualquer e exclama, contrariada: “Mas logo agora!” Esta é a exclamação típica da pessoa que se vê, de súbito, posta numa encruzilhada por dois fatos imprevistos, e precisa fazer uma escolha, tomar uma decisão (geralmente sem muito tempo para ficar ponderando). “Logo agora”, em termos narrativos, significa que o personagem não esperava aquilo, não contava com aquilo, não está nem um pouco confortável com esse fato caído do céu sobre o seu colo. Para ele, muitas vezes, é uma surpresa total. Geralmente não o é para o espectador, que está acompanhando as diversas subtramas do enredo e sabe que mais cedo ou mais tarde Fulano iria receber aquela notícia.

O folhetim requer complexidade (várias histórias entrelaçadas acontecendo ao mesmo tempo, e interferindo umas nas outras) e requer também que o espectador esteja na posição de um Deus intermediário, capaz de olhar do alto tudo que acontece com aquelas pessoas, capaz de saber mais sobre o que ocorre na vida delas do que qualquer uma delas. Acima dele, claro, está o último Deus, que é o Autor, ou A Companhia.