(foto: Leszek Bujnowski)
Muitos eventos literários têm como vantagem
adicional, além da chance de fazer palestras e participar de mesas, a
possibilidade de conversar assuntos bem específicos, assuntos que só interessam
a quem mexe com aquilo. Assunto que se você for conversar com parte da família
ou dos colegas de trabalho vai encontrar um “hã?” como resposta. Eu estava
tomando café da manhã no hotel com uma turma, esperando a van do evento, quando
um cara disse:
- Eu gosto quando o conto começa in media res, já em plena ação. O conto que começa com um soco, uma
explosão, a ação em pleno acontecimento. Sem firulas, sem aquelas introduções
intermináveis de Machado de Assis.
Uma professora que estava na mesma mesa disse:
- Olha, eu até concordo que o recurso é ótimo, mas a
verdade é que Machado usava muito. Assim de cara eu lembro dois contos de
Machado, pelo menos, que começam assim, zás!...
Rapaz, eram cinco pessoas naquela mesa mas baixou um
silêncio que só se ouvia a CPU de cada um a todo vapor.
O primeiro que eu lembrei foi o do alfinete, acho que se
chama “História Comum”. Como era mesmo? “De repente caí na copa do chapéu de um
homem que passava...” Já mergulhava assim, e além do mais tinha um ponto de
vista inusitado, o do alfinete propriamente dito. O “de repente” aí é meu, é
mais uma rubrica teatral do que uma parte da história. Não deve ter no
original. E acho que é “A carteira” que
começa com algo tipo: “De repente ele abaixou a vista e avistou uma carteira
caída na calçada...” Um terceiro? Será
que tem?
“A causa secreta”, o famoso conto várias vezes filmado,
começa com um plano cinematográfico, um momento banal colhido de repente, com
os três personagens num tablô e o narrador saltando de um para o outro,
enquanto um rói as unhas, o outro cofia os bigodes e a mulher ajeita um
bordado. Não tem explosão nem pode-se de dizer que é uma plena ação. Mas é um
momento do tempo que já estava acontecendo e de repente a narrativa se engata
nele. Quando a narrativa consegue produzir essa mágica das mágicas aí é moleza,
é só contar a história. Esse conto começa com um momento teatral, um momento de
tensa presença silenciosa, onde aparentemente nada acontece e tudo pode
acontecer.
Terá um quarto conto? Bem, a professora pediu pra ver as
cartas na mão de cada um. Um conferencista ao meu lado lembrou de um começo
interessante: “Agora vou contar a história do...” E aí embatucou. Um relógio de ouro? Um
alfinete? (Não gostei porque já tinha lembrado sozinho.)
Outra convidada, já recolhendo a bolsa e as pastas,
porque o rapaz da van estava na porta do salão de café do hotel, batendo as
palmas das mãos uma de encontro à outra e dizendo bora pessoal:
- Você (eu) deveria lembrar do ‘Conto Alexandrino’, eu já
li um texto seu elogiando esse conto, e não lembra do começo dele? E recitou:
“—O que, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue do rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”.
Todo mundo riu porque a frase é boa. Eu lembrava do conto
mas não do começo; fiquei meio em dúvida se começar o conto no meio de um
diálogo tinha mais força ou menos força do que pegar no meio de ação sem
palavras. Mas essa impressão acabou cedendo lugar a outra mais forte, porque se
o texto de Machado era mesmo aquele (e é) olha que coisa, ele coloca cinco
palavras de negação antes do verbo acreditar: “não, impossível, nunca, jamais,
ninguém.”
A questão do Enter
do conto ser com um diálogo foi lembrada por outra amiga nossa, no trajeto para
a universidade. Ela lembrou o começo famoso: “Ah, o senhor é que é o Pestana?”
– e ela batia as pestanas com graça. Fui conferir “Um homem célebre” e é a
mesma coisa: já estava havendo uma festa, com piano e tudo, e essa voz feminina
nos coloca no colo da história. Mas não era bem “no meio de uma ação”, era no
meio de um bate papo inocente, a câmara discreta entrando pela janela
indiscreta da vida.
Daquele café anotei alguns títulos no guardanapo, que não
sou besta. Alguém votou em “Um apólogo”, mas este começa assim:
“Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: ...”
Não tem o que qualquer história minimamente realista nos
dá: a sensação de que existia um mundo com tudo aquilo acontecendo e de repente
a gente, através da história, está percebendo a existência daquele mundo. Não,
isso aí é uma fábula, um mundo abstrato comentando o mundo real humano, mas só
começa a existir quando a fórmula mágica é pronunciada. “Era uma vez” é um spell muito poderoso, deve ser poupado,
tal como os personagens do Sítio do Picapau Amarelo poupavam o “faz de conta”,
a fórmula mágica para tirá-los das enrascadas em que a imprevidência do romancista
os colocou.
“Era uma vez” é um “abre-te sésamo”, uma dessas fórmulas
mágicas que deixam o autor livre para contar a história que bem quiser. (Claro
que não é a única fórmula mágica. Basta ver “A igreja do diabo”, que começa:
“Conta um velho manuscrito beneditino que...”) É um começo rápido, um começo
zás-trás, mas ele não está captando uma ação in media res, como enfatizava o desafio.
Outro conto machadiano que anotei foi meio às pressas, e
ninguém na hora lembrou como era o nome. O que rabisquei no guardanapo foi:
“O conto onde ele diz que a porta se abriu, mas na mesma hora interrompe e explica quem era o cara que estava contando a história, anos depois de acontecida, à esposa, aí depois ele volta para o fotograma onde tinha parado: “a porta abriu-se, chegou um rapaz, veio visitar os amigos...”
A memória é ingrata, além de traiçoeira. É um dos meus
contos preferidos, o conto sobre Elisiário, o homem da opa que podia embrulhar
o mundo, “Um erradio”. Um bom começo, mas não saía da minha cabeça o modo como
o cara tinha descrito o impacto que esperava doinício do conto: um soco, uma
explosão. Houve uma época em que a gente escrevia o conto e apostava todas as
fichas numa “abertura Mike Tyson”, ou seja, estontear e abduzir o leitor nas
primeiras trinta linhas.
“A cartomante” termina com um tiro, mas nenhum conto de
Machado começa com um corte brusco de ação, ação física, não direi um crime ou
um tiroteio, que são raridades nos seus contos, mas uma ação intensa, não
falada, de um ou mais personagens. Nem por isso ele é o rei de enchimento de
linguiça (que por si só não é sempre um defeito). Ele sabe usar com autoridade
e economia essas fórmulas mágicas que têm um empuxo narrativo poderoso, capas
de erguer juntos a história e o leitor. Olhe só o começo de “Cantiga de
Esponsais”:
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.
Esse conto é pelo menos de 1884, ano em que saiu o
metalinguístico Histórias Sem Data. É
um conto escrito num passado remoto para nós, onde o autor nos convida (“a
leitora” é cada um de nós) a imaginar outro passado que já era remoto para ele.
E ele o faz num movimento
cinematográfico perfeito, como uma câmera girando numa grua, descendo e
fechando em close. O cinema só seria oficialmente inventado onze anos depois,
mas foi a literatura quem ensinou o cinema a ver.
Lero-lero introdutório todo mundo precisa usar de vez em
quando. O que importa é que, quando a história pedir, o mesmo sujeito seja
capaz do poder de síntese de um começo como o de “Umas férias” (1906):
Vieram dizer ao mestre escola que alguém lhe queria falar.
- Quem é?
- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.
- Que entre.
Nem as histórias de Sherlock Holmes iam tão direto ao
ponto.