terça-feira, 3 de setembro de 2024

5098) Quando uma coisa perde o sentido (3.9.2024)



 
The Chess Garden (1990) é um romance fantástico de Brooks Hansen, sobre as aventuras de um cientista, o dr. Uyterhoeven, que sai dos EUA de navio para tentar localizar uma ilha imaginária, Os Antípodas, cujo mapa ele descobriu por acaso. Boa parte do livro aparece sob a forma de cartas que ele manda para a esposa, e que ela lê para uma multidão de vizinhos, todos acompanhando as aventuras do doutor como se fosse um romance-folhetim. 
 
As cartas narram episódios de cunho meio absurdista, que em alguns momentos lembram Lewis Carroll. Um desses contos narra a visita que o dr. Uyterhoeven faz à oficina de Eugene, um artesão local. Ali, o doutor encontra um objeto que chama sua atenção, e ele pergunta do que se trata. 
 
O objeto é um loon, descrito no livro como “um comprido objeto de madeira, parecido com uma concha de sopa, exceto pelo fato de ser oco, e de ter o cabo amarrado com um pano”. 
 
Egbert, um assistente do artesão, pergunta ao doutor que função ele era capaz de imaginar para aquele utensílio. O doutor coça a cabeça e sugere: talvez soprar bolhas de sabão... conduzir um ovo grande... servir uma salada... Egbert escuta, e depois lhe conta a história do objeto. 
 
O loon tinha sido encontrado por Eugene numa época em que era um objeto de uso comum ali na ilha, algo que todo mundo conhecia. Eugene tinha espírito de artesão e uma capacidade fora do comum para perceber a funcionalidade de um objeto. Entre meia dúzia de cachimbos, ele era capaz de perceber o cachimbo mais bem feito, mais útil, aquele que tinha o máximo de qualidades com um mínimo de esforço. O mesmo para uma maçaneta, uma bengala, um cinzeiro... 
 
Ou seja: Eugene tinha um olho clínico apurado para reconhecer “um espécimen excepcionalmente não-excepcional”, um utensílio que, longe de se diferenciar dos seus semelhantes, era, pelo contrário, uma reunião de todas as qualidades mais simples de sua categoria. Um espécimen perfeito. 



 
“E assim era este loon”, explica Egbert. A representatividade desse objeto era tão visível aos olhos de todos que Eugene começou a receber propostas para vendê-lo ou trocá-lo – e recusava todas. A fama do loon foi crescendo na ilha. Vinha gente de longe só para admirá-lo. E um belo dia um príncipe local mandou seu representante, um bispo, oferecendo o cetro do principado em troca do loon – a chamada proposta irrecusável. 
 
Eugene recusou a troca; os emissários do bispo começaram a bater boca com os artesãos da oficina, e logo se estabeleceu um conflito generalizado, um quebra-quebra furioso em que cada um rachava a cabeça de algum adversário usando o objeto mais próximo. E nessa confusão, alguém agarrou o próprio loon e o desceu na cabeça de alguém. E o loon se partiu ao meio. 
 
Bastou isso para cessar o conflito. Constrangidos, tanto os visitantes quanto os locais passaram a se desculpar e a lamentar o fato de que o objeto precioso, defendido e ambicionado por todos, estava destruído. Eugene tentou consertá-lo, amarrando-o com umas tiras de pano, mas percebeu que não adiantava. E todos perceberam algo muito pior. 
 
Ao discutir o que acontecera, Eugene perguntou, perplexo: “Alguém se lembra para que servia essa coisa?”. E ninguém se lembrava. 
 
Todos começaram a cavucar na memória, tentando explicar para que servia um loon – uma coisa cuja utilidade, minutos atrás, era tão óbvia quanto a de um garfo ou de uma gravata. Não era apenas o objeto que tinha sido destruído, mas a própria idéia dele, o seu conceito, a sua serventia. 
 
O bispo recolheu sua comitiva e voltou cabisbaixo para contar tudo ao príncipe – o qual, interrogado, confessou atônito que não tinha mais a menor idéia de qual a utilidade de um loon, embora tivesse vários ali mesmo no palácio. E outro bispo arriscou uma interpretação: a de que o loon de Eugene talvez tivesse sido “o loon de todos os loons.” 
 
Talvez o loon destruído tivesse sido aquele que materializava a essência mesma de todos os loons. Talvez fosse o exemplar que guardava dentro de si o significado de toda sua categoria. Ora, então, isso explicava o que acontecera: no momento em que o loon de Eugene foi quebrado durante a briga e tornou-se inútil, o mesmo passou a valer instantaneamente para todos os demais loons do mundo. 
(capítulo 8, trad. BT) 



É uma idéia curiosa, digna de Borges ou de Ítalo Calvino. Uma projeção da teoria de Platão, segundo a qual no mundo superior, o mundo das idéias, estão todos os seres ideais em cuja imagem-e-semelhança são criados os seres do mundo material. Lá existe, digamos a Cadeira ideal, e é pensando instintivamente nela que nós criamos as cadeiras materiais que usamos em nossa vida. 
 
Alguns problematizadores costumam debulhar essa idéia até o absurdo. Perguntam, por exemplo, se no mundo das Idéias existe o Cachorro Ideal, um único tipo, ou se existem também o Viralata Ideal, o Buldogue Ideal, o Pequinês, o Pitbull... Pense numa idéia que rende muita conversa noite afora! 
 
De qualquer modo, os conceitos de utilidade e função dos objetos humanos existem de fato, com ou sem Platão. São conceitos sociais, coletivos. Todo mundo sabe para que serve um copo, um chapéu, uma maçaneta, uma chave... O conceito pertence a todos; mas o conceito está sujeito à memória social. Seu risco de desaparecimento não reside num loon específico, mas na idéia que todos nós temos dos nossos loons
 
Quantas pessoas, daqui a cinquenta anos (ou menos até) saberão para que serve um orelhão?  Um disquete? Uma anquinha?  Um lornhão?  Um limpa-tipos?  Um dedal? 
 
Alguns desses objetos talvez sobrevivam ao desuso e se mantenham na memória (graças, talvez, à literatura, à sociologia, à “petite histoire”...) Outros se transformarão em loons, em coisas que um dia foram familiares a todo mundo e que hoje, mesmo continuando a existir materialmente, parecem objetos alienígenas, deixados entre nós por visitantes extraterrestres durante algum “piquenique de estrada” em nosso planeta. 
 
Ou então como os objetos absurdos, impossíveis, inviáveis, inventados pelo francês Jacques Carelman – utensílios que estão a um passo de fazer sentido mas esse passo nunca é dado.