É uma expressão que hoje se usa pouco, porque o objeto que a inspirou está meio obsoleto.
A palmatória era um artefato de madeira constando mais ou
menos de um cabo longo e uma expansão achatada, que servia para fustigar sem
pena as palmas das mãos dos alunos, nas escolas do Tempo do Ronca.
Qualquer erro, o Mestre chamava o infrator para diante do
quadro-negro, mandava às vezes que se ajoelhasse, estendesse as mãos abertas
com as palmas para cima, segurava-lhe nos dedos com a mão esquerda, e com a
direita pespegava-lhe na palma uma vigorosa pancada “de chapa” com o
instrumento. Cada pancada era chamada “bolo”.
O mestre cofiava o bigode e bradava: “Sr. Pompéia! Adiante-se! Doze bolos por essa insubordinação!”. E tome lapada.
O mestre cofiava o bigode e bradava: “Sr. Pompéia! Adiante-se! Doze bolos por essa insubordinação!”. E tome lapada.
Surgiu daí a expressão “Fulano só quer ser a Palmatória
do Mundo” para designar as pessoas que passam a vida em busca de erros – dos
outros. Em tese, fazem isso para tornar
o mundo um lugar melhor. Maldo eu que é pelo prazer de bater em alguém – com o
álibi de um motivo nobre.
É uma busca que nada tem com a busca de Dom Quixote, que
saía mundo afora à procura de injustiças que pudesse consertar. A busca da
Palmatória do Mundo é por alguém que possa ser punido, pouco importando no que
a punição possa ou não resultar.
A palmatória é o instrumento de quem quer punir
impunemente.
Sendo o mundo o que é, a grande maioria das condenações
feitas pelas pessoas consideradas “palmatórias do mundo” acabam sendo de ordem
moral: fulana é piranha, sicrano é veado, beltrano é drogado.
É sempre muito forte essa tendência à condenação de ordem
moral. A Palmatória do Mundo pretende então ser a pessoa que castiga os que
pecam, os que erram, os que fazem o mal.
Por extensão, no entanto, sua função é uma função de
limpeza, de profilaxia. O erro precisa ser eliminado não porque implique em
algo moralmente questionável, mas apenas porque indica uma dissensão, uma
desafinação com o conjunto, um cadete de passo errado atrapalhando a simetria
da tropa.
A Palmatória do Mundo é o raio uniformizador, nivelador,
aplainador, o raio que pretende eliminar todas as protuberâncias e
irregularidades, deixando todas as coisas ao mesmo nível, ou com o mesmo
formato.
Essa mentalidade floresce em todo grupo social, até nos
mais liberais, nos mais tolerantes, nos mais simpáticos com a excentricidade
pessoal.
Uma vez, nos velhos tempos das roupas psicodélicas e dos
cabelos exuberantes, falei a uma amiga que meu escritor preferido era Julio
Cortázar. Quando mostrei uma foto dele, ela protestou: “Mas isso é um burguês!
Um careta de paletó e gravata!”. Não
consegui convencê-la de que ele tinha uma imaginação fantástica, era um grande
poeta, etc. A verdade é que, naquela
fase hirsuta da vida, a luta contra as gravatas não deixava muito espaço para a
apreciação da poesia.
Lembrei disso, com emoção, ao ler o episódio do encontro
de Cortázar com um bando de hippies na Alemanha, que narrei aqui:
Eu nunca tive uma predileção especial pelas roupas
coloridas, que usei com prazer, e depois troquei por outras, assim como usei
cabelo grande, e depois cortei. E amanhã posso pintar o cabelo de azul, e
depois tirar a tinta, e depois raspar. O que tudo isso significava, para mim,
era apenas a liberdade de fazer o que me desse vontade, com algo tão simples
quanto uma roupa ou um cabelo.
Olha que eu não estava defendendo o nudismo em via
pública, nem pintar o cabelo com tinta radioativa.
No meu mundo, pessoas de roupa esmulambada, colorida e
cheirando a patchuli conviveriam pacificamente com pessoas de terno e gravata,
e com pessoas usando bustiê e tapa-sexo. E mais: cada pessoa podia revezar todo
dia esses trajes, e outros, conforme lhe desse na veneta.
Mas durante algum tempo tive pesadelos em que o país
seria governado por uma Palmatória Hippie do Mundo, em que o paletó e a gravata
fossem considerados subversivos, e todo mundo tivesse que se vestir,
obrigatoriamente, igual a Serguei e Janis Joplin.
Quando estou lendo ficção científica, procuro ficar de
olho no que as pessoas vestem no Planeta Omicron-77 ou no ano 2.543. Vestem
terno e gravata? Vestem brusinha? Vestem regata? Vestem macacão de plástico
metalizado e aquário transparente cobrindo a cabeça?
("Moda do Futuro", 1950)
Quem quiser um dia fazer um levantamento de roupas inesperadas na FC pode começar em livros (aliás muito bons sob outros aspectos) como Triton – An Ambiguous Heterotopia (1976) de Samuel R. Delany ou Ubik (1969) de Philip K. Dick (Ed. Aleph, SP).