Tenho boas lembranças de ler gibis do Batman em nossa
antiga casa na Rua Miguel Couto. Mudamos dali em 1960, de modo que posso contar
umas seis décadas de convivência com o Cruzado De Capuz. Li os gibis; assisti
fartamente a série de TV com Adam West; voltei anos mais tarde pelas mãos de
Frank Miller; vi alguns dos filmes (numerosos e desiguais) feitos dos anos 1990
para cá; li algumas graphic novels.
O filme recente de Matt Reeves tem suas ênfases neste ou
naquele aspecto da lenda ou do lore
do personagem. É o que se espera de cada nova abordagem. Uma coisa que ele mantém,
em relação aos filmes recentes de Christopher Nolan, é o aspecto trevoso, a
pirotecnia nas perseguições e nas catástrofes, o impacto sonoro das porradas.
E isto é o que acaba fazendo emergir em mim uma lembrança
difusa de infância, de quando eu lia alternadamente gibis do Batman e do
Superman, e raciocinava que Superman não tinha o direito de dar socos de
verdade nos bandidos, porque ele tem superpoderes, supermúsculos e
supernós-dos-dedos, e poderia desintegrar o crânio de alguém; mas o Batman
pode, porque ele não passa de um ser humano, fisicamente normal.
E não está no gibi o que o Batman soca, esmurra,
cotovela, chuta e espanca nesses filmes. Não são só os filmes dele, é claro. Poderíamos
até diagnosticar a existência de um gênero chamado “Testosterona Thrillers”,
onde história, tema e personagens são irrelevantes, por serem meros pretextos
para tiroteios, explosões, perseguições de carro... e socos, muitos socos. Como
bate esse pessoal.
“Bater era um prazer. Havia um prazer especial em sentir as coisas se
partindo, em sentir as coisas afundando-se e cedendo. Com o soco-inglês
metálico encaixado nas falanges, com os poderosos músculos contraídos no braço
que parecia uma jibóia, o sangue latejando nas têmporas, as mãos dele eram como
dois aríetes poderosos esboroando, rachando, botando abaixo as muralhas obtusas
da História.”
Há todo um Fahrenheit
451 a ser escrito sobre esse prazer profano dos homens jovens
(principalmente), um prazer mais legalizado do que o de queimar.
Bater é um descarrego físico que cumpre alguma função
terapêutica inconsciente. Muitos homens deveriam ter em casa um daqueles sacos
de areia dos boxeadores, pendurados no teto, para poderem descarregar suas raivas
e voltar a si. A criminalidade cairia. É um impulso primitivo, como o de cravar
dentes ferozes num naco de picanha ensanguentada.
Uma vez um cara me disse: “Estou com vontade de aprender
a tocar bateria.” Eu disse: “Acho uma
boa idéia, desde que você entenda que a bateria é um instrumento musical, e não
um veículo para descarregar as frustrações da vida.” Ele disse: “O que eu quero
é descarregar as frustrações da vida.” Tenho o direito de dizer que ele estava
errado?...
“Bateria” é um nome curioso de instrumento, porque vem do
verbo bater; no caso, espancar com bastões. Tocar tambores cumpre uma função
parecida com a de esmurrar sacos de areia acolchoados. Cumpre uma função
parecida com a daqueles estabelecimentos suíços onde o sujeito entrava, pagava
algo como dez dólares, e podia ficar meia hora lá dentro, por entre milhares de
pratos e utensílios de louça barata, arrebentando o que bem entendesse.
Alguém vai ponderar que a maioria das pessoas não sente
esse impulso, e eu concordo, mas acho que um dos problemas do mundo está nas
pessoas que o sentem.
Tudo isto parece estar na raiz do visível tormento existencial do Bruce Wayne interpretado neste filme por Robert Pattinson. Diferentemente
da empáfia autossuficiente do Bruce Wayne de, por exemplo, Christian Bale,
Pattinson evoca (o diretor-roteirista o confirma) o sofrimento passivo de um
Kurt Cobain do “Nirvana”, um indivíduo arredio, introvertido, dono de um poder
que não controla e de uma inteligência que não consegue apaziguar.
Este Bruce Wayne é um guerreiro gótico com vibe de emo, um personagem tragicamente híbrido. Uma mente criptográfica,
introspectiva, hospedada a contragosto num corpo que quer inflar-se, quer explodir,
quer pilotar a 300 km por hora, quer voar, quer bater, bater.
Quando ele está de terno ou de roupas comuns, parece
magro. Tem aquela aparência insalubre de quem não vê o sol há séculos, é um
tipinho nosferal, caligaresco. Em alguns momentos, quando as mechas rebeldes de
cabelo escuro lhe caíam sobre a testa larga, imaginei estar vendo na tela John
Cazale, aquele emblema da neurose humana.
Quando ele enverga a armadura de Batman... Aí sim, ele é
só músculos, triunfal como um The Rock, maciço como um Everest, rápido como uma
Lucas-ship fazendo manobras em "V" no vácuo. Um Mr. Hyde desabrochando em
plena maldade, finalmente livre, sentindo-se, como diz a canção de Caetano
Veloso, “feliz e mau como um pau duro”. Do Bruce Wayne agora escravizado restam
sob a máscara apenas os olhos, dois botões de angústia, e a boca lacônica e
crispada.
O desespero de Wayne é perceber que sua atividade de
“vigilante” gerou um copycat como o
Charada, um imitador psicótico que, como todo psicótico, interpreta seu ídolo
como uma versão não-censurada de si mesmo.
Quem combate a violência com violência gera um loop do qual não se foge. Ele tenta fugir quando, por pelo menos duas vezes, no filme, evita que a Mulher Gato
mate um vilão. Quando os dois estão juntos, ela o chama de “bat boy”, trocadilho com “bad
boy” que a legenda traduz como “morcegão”.
(Talvez uma alternativa fosse: “É você de
novo, amorcego?...”)
O Wayne de Reeve/Pattinson ganha um pouco daquela aura de
herói trágico que tem o Paul Atreides de Duna
(refiro-me ao livro original de Frank Herbert). O herói a contragosto, um dom-sebastião
messiânico que se sente desconfortável na missão que lhe cobram, o jagunço-sniper que não quer ser chefe do bando...
O cara de boa índole que aceita liderar uma guerra por temer que talvez ponham
no lugar dele alguém que não tem os seus escrúpulos, os seus valores, o seu
equilíbrio... E lá vai ele, o pacifista frustrado, começar mais uma guerra.
Não é muito diferente do drama de T. E. Lawrence, o da
Arábia, que a certa altura das guerras no Saara tem que matar alguns
inimigos... e descobre, horrorizado, que gostou.
Todos esses indivíduos experimentam em si (porque são,
teoricamente, personagens com uma inteligência e uma sensibilidade superior à
média) essa contradição entre primitivismo e civilização, ou entre os prazeres
puros e não-censurados do primitivismo... e o mal-estar da civilização.
Bater, bater, bater... Uma vez primitivos, primitivos até
morrer. O ser humano não é um fantasma dentro de uma máquina, é um vidente
montado num tigre.
O Homem Que Bate, mesmo quando se ilude com o discurso de
que está castigando malfeitores ou defendendo a ideologia correta, não consegue ocultar de si mesmo (e muito menos das câmeras de cinema, essas
deusas mitológicas que tudo veem e tudo revelam) o prazer que sente ao esmigalhar
cartilagens.
Qual a solução? Ninguém sabe. Mas vale lembrar que o
verbo bater em inglês pode ser “to beat”, no que se aplica surras, socos, etc.;
mas que a palavra “beat” pode significar “batida” no sentido musical. Pancada,
mas pancada rítmica. Bateria, mas bateria de tambores.
E que o verbo imperativo “beat it” significa “cai fora,
sai dessa, te manda”.
https://www.youtube.com/watch?v=oRdxUFDoQe0
Beat It (1983),
um videoclip famoso de Michael Jackson (escrito e dirigido por Bob Giraldi),
mostra Jackson interferindo numa briga de gangs e pondo os brigões para dançar.
Nem todas as formas de violência podem ser sublimadas em
música, mas algumas podem. Nada impede que alguém faça um spin-off da saga de
Gotham City e introduza um novo personagem, The Beatman.