terça-feira, 15 de junho de 2010
2157) Jornada rumo ao horror (5.2.2010)
Há quase vinte anos fiz uma viagem aos EUA, e por motivos financeiros, acima de tudo, o meu voo foi feito pela LAP, Líneas Aéreas Paraguayas. Fui do Rio para Assunção, e depois de várias horas de espera embarquei num voo direto de Assunção para Miami, onde desembarquei às 3:30 da madrugada, cheio de sono, para esperar minha conexão seguinte. Eu sou daquele tipo que quando acorda está com um Q.I. próximo ao de um Homem de Neanderthal. Vou melhorando com o correr das horas, mas quando acordo meu cérebro só me permite tomar as mais rudimentares decisões, e desembarcando num aeroporto desconhecido, àquela hora, a decisão era: “Siga a boiada”.
Segui a boiada ao longo de larguíssimos corredores, imensas escadas rolantes, um cenário kubrickiano e futurista que só vim a admirar depois, em retrospecto, porque naquele instante meus neurônios estavam, por unanimidade, tentando seguir a boiada. Éramos uns duzentos passageiros e acabamos nos amontoando num saguão vasto, onde me encostei numa parede, mochila às costas. Todo mundo amarfanhado e sonolento. Homens de negócios com pastinhas 007 (eram raros os laptops naquele tempo), famílias inteiras aglomerando-se em busca de proteção, casais jovens de mãos dadas e cabecinha no ombro, gente se maquilando, gente conversando baixinho, casais com bebês. Um rosadíssimo guarda de uniforme surgiu por uma porta perto de onde eu estava e falou com voz possante uma série de frases sem legenda, fazendo no final um gesto de “sigam-me!”.
Segui-o, porque foi isto que outras pessoas em volta começaram a fazer, e pegamos novos corredores até uma sala menor, onde me deixei cair num assento plástico. E então notei algo muito estranho. Nesta nova sala, onde muitos assentos continuavam vazios, havia apenas cerca de vinte casais, conduzindo vinte bebês… e eu. Olhei em volta, confirmei. Alguns casais exibiam seu bebê uns aos outros, trocavam comentários. Percebi que tinha me metido num grupo diferente, que iria passar por outro filtro de imigração, sei lá o quê. Enganchei a mochila nas costas e retornei à sala anterior, onde o restante do grupo já era levado noutra direção.
Tempos depois, amigos me disseram: “São casais de americanos que vão aos países do 3o. Mundo para adotar bebês. Em geral, eles têm um filho e a criança precisa de um transplante. Eles viajam, adotam um bebê nativo, trazem-no, e o transplante é feito na moita, em clínicas particulares e secretas”. Uma lenda urbana, é claro. Mas, quando leio hoje as notícias sobre missionários que são apanhados no Haiti “adotando” crianças supostamente órfãs (até mesmo contra a vontade delas próprias) fico matutando. Por que será que a versão mais sinistra dos fatos nos parece tão plausível? Porque devemos sempre imaginar o pior, para que ele não nos pegue de surpresa? Ou porque algo nos diz que o pior não surpreende nunca, que neste nosso mundo ele acontece o tempo todo, ele é a norma?
2156) Mais um Sherlock Holmes (4.2.2010)
Jorge Luís Borges, criticando a dublagem do cinema argentino do seu tempo, comparou o Minotauro, que tinha cabeça de touro e corpo de homem, com o monstro produzido pela dublagem, que tinha “rosto de Greta Garbo e voz de Aldonza Lorenzo.” A mais recente criatura teratológica em circulação habita as telas do filme de Guy Ritchie, e combina o nome de Sherlock Holmes e a pessoa física de Robert Downey Jr. O ator talvez seja o menos culpado, porque já admitiu, em entrevistas, que seu personagem tem mais a ver com James Bond do que com o detetive de Conan Doyle. (Por falar nisso, o Sean Connery dos anos 1970 não teria feito um Holmes aceitável?)
Não devemos nos iludir com a questão superficial da semelhança física. Holmes era alto, longilíneo, dolicocéfalo, capaz de ímpetos de energia física e de semanas inteiras de letargia absoluta; um tipo cerebral, introvertido, obsessivo. (Que tal Fred Astaire?...) Downey Jr., que é bom ator, faz o que pode, não para se parecer com Holmes, o que é impossível, mas para encarnar um personagem com algumas dessas características; consegue, em vários momentos. Holmes já foi vivido por Christopher Plummer e por Charlton Heston, mas não acredito que, fora a altura, os dois tenham contribuído com muita coisa. Baixinho por baixinho, já tivemos no papel Peter Cushing (e também, curiosamente, sua eterna nêmesis, Christopher Lee). Os meus Holmes preferidos foram o clássico dos anos 1940, Basil Rathbone, e os mais recentes Michael Caine (no divertido Without a Clue, 1990) e Nicol Williamson (A Solução Sete por Cento, 1976).
Depois de ver o filme de Guy Ritchie dei uma passada rápida em vários saites e percebi que praticamente todas as críticas (positivas e negativas) se concentram num único aspecto: o filme é fiel ao personagem? Fala-se pouco do enredo (que é satisfatório para os padrões atuais), da direção de arte (excelente), dos efeitos especiais (muito bons), do resto do elenco (variável). O que os críticos discutem é: parece ou não parece com Holmes?
Dizem que o detetive é o personagem literário mais adaptado pelo cinema, de modo que a esta altura ele já deve ter passado por todas as deformações possíveis. Prova de sua invulnerabilidade é o fato da cópia número 975 ainda ser comparada ao original, e não à cópia 974. Nenhum personagem foi tão adaptado, retalhado, reformatado, procusteado e deformado quanto Holmes. O filme de Guy Ritchie pode se gabar inclusive de ter produzido, com Jude Law, um Watson à altura do protagonista, e à altura dos melhores momentos do Watson literário. Watson é um ex-soldado, tem coragem pessoal, envolve-se em confrontos físicos ao lado de Holmes (que praticava, sim, artes marciais orientais e o box-savata francês). Há numerosos exemplos, nos contos, de deduções suas elogiadas por Holmes, comprovando que ele é pelo menos um bom aluno. Criar um Watson não ridículo é mais uma das qualidades deste filme.
2155) Os filmes da década (3.2.2010)
Historiadores do futuro irão examinar nossos escritos com a mesma perplexidade e estranheza que nos acomete examinando o delírio cultural da Idade Média, quando as pessoas se entregavam a tarefas ciclópicas que hoje nos parecem inteiramente insensatas. Muitos hão de se indagar por que motivo os homens do século 21 faziam (por exemplo) listas dos “melhores filmes do ano” ou dos “melhores livros da década”. À primeira vista parece algo necessário, para tornar mais nítidos certos parâmetros de qualidade. Mas de que adiantavam tais listas (pensarão eles), se ninguém chegava a um acordo? Lembro-me de ter visto uma vez uma lista dos “20 Melhores Filmes de Todos os Tempos”, em que cada crítico escolhia 20 títulos, e depois fazia-se uma contagem de pontos dos filmes mais citados. Foi escolhido como O Melhor de Todos os Tempos o inevitável Cidadão Kane de Welles, com um detalhe: ninguém votou nele como o melhor filme. Mas todos o incluíram em posições tais que na pontuação final ele pulou para a cabeça da lista.
Andei comparando duas listas recentes dos Melhores Filmes da Década, votados pelos participantes dos saites FilmComment (que selecionou 150 filmes) e MetaCritic (que escolheu 100). São grupos respeitáveis de entendedores. Entre os votantes do primeiro, há gente que admiro, como Gilbert Adair, David Edelstein, Jonathan Lethem, Jonathan Rosenbaum, Andrew Sarris e David Thomson. Este júri escolheu Os 150 Melhores Filmes da Década, e o melhor deles foi Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) de David Lynch. Ouço daqui os dentes de muitos leitores rangendo de irritação, mas, paciência, faz parte do jogo. Talvez se consolem um pouco ao saber que na outra lista (a do MetaCritic), o filme de Lynch sequer se classificou. Coisa espantosa – como é que um filme é o melhor de todos para um grupo, e para outro não fica sequer entre os 100 melhores?
Resolvi inverter a pesquisa: quem terá sido então o melhor, para a turma do MetaCritic? Ora, foi o filme O Labirinto do Fauno de Guillermo del Toro. Se o leitor acha a escolha injusta, pode se consolar ao ser informado de que na outra lista o filme espanhol ficou apenas num modesto 105o. lugar. Apenas um filme aparece entre os 10 primeiros de ambas as listas: o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. A lista do Film Comment pode ser vista aqui: http://tinyurl.com/ybo5db9. A do MetaCritic aqui: http://tinyurl.com/yaxw9ty. De um modo geral, a do FilmComment inclui filmes mais obscuros, de cinematografias pouco conhecidas; é uma escolha de especialistas com acesso a material raro e à programação de salas especializadas. A do Meta Critic é mais voltada para o cinemão, muito centrada na programação comercial dos EUA, tem um número maior de filmes que passaram aqui, e vários filmes que francamente, acho meio bobos. Nenhum filme brasileiro apareceu nas duas listas.
2154) Wilson Martins (2.2.2010)
Considerado por muita gente o maior crítico literário brasileiro, Wilson Martins morreu no sábado passado, aos 88 anos, em Curitiba, onde morava. Passei o domingo clicando Brasil afora para ver a repercussão de sua morte. Só achei notas curtas, com os dados biográficos, os prêmios, os títulos, e as obras principais, entre elas a única que conheço, a História da Inteligência Brasileira. Não a li toda: a edição que tenho é de sete volumes, embora alguns jornais falem em doze. Mas já a pesquisei muito, anos atrás, num tempo em que escavava, arqueologicamente, as raízes da ficção científica e da literatura fantástica brasileira. Wilson Martins tinha a combinação de dois talentos raros, o de muito ler e o de muito lembrar. Isto lhe permitia traçar o perfil de uma época literária recorrendo a dúzias de fontes heterogêneas. Romance, teatro, direito, poesia, imprensa, memorialismo, legislação, tudo isto ele consultava e costurava numa argumentação clara e muitas vezes ferina, fotografando o “espírito do tempo”.
Poucas pessoas terão lido tanto, ou, tendo lido, terão registrado com tamanha minúcia e visão pessoal suas impressões sobre o que leram. À esquerda e à direita Wilson Martins era tido como um franco atirador, um sujeito que não pertencia a nenhuma das dez ou doze confrarias informais que regem a Bolsa de Valores Literários do nosso país. Era um crítico que ia direto ao ponto quando se tratava de resumir em poucas linhas a contribuição de um autor ou os seus limites como criador literário. Muitos críticos são temidos pelos escritores porque sabemos que eles gostam de falar mal, justamente para serem temidos. Não era a impressão que me dava Wilson Martins. Tinha seus critérios de leitor, que muitas vezes divergem dos meus: lembro-me que nunca engoliu Sousândrade (que acho fascinante) e que costumava comparar Guimarães Rosa e Mário Palmério dizendo tratar-se do mais superestimado e do mais subestimado dos nossos romancistas regionais. Mas nada disso fazia parte da chamada “crítica vitriólica”, do “bater para ser respeitado”. Pelo que me ficou da leitura, Wilson Martins parecia ver nas obras o início, o fim e o meio de tudo, sendo os escritores e sua “persona” um mero fator a ser levado em consideração.
Tinha um humor fino, capaz de fazer murchar uma reputação pomposa com uma simples alfinetada no ponto certo. Pesquisar obras obscuras parecia diverti-lo imensamente. Num mundo dividido entre críticos textuais (que só veem as palavras) e contextuais (que só veem psicologia e sociedade), ele era capaz de compor vastos planos gerais da política, da história e da economia, ao longo de várias páginas, e partir dali para mostrar seus reflexos no enredo de um romance ou na temática de um florilégio de sonetos. Ia do texto ao mundo e de volta ao texto com um volteio da pena. Pensava com clareza e escrevia com elegância, o que sempre me fez abrir com alegria aqueles livros de 550 páginas.
2153) Chica Dondon (31.1.2010)
Dico ouvia falar em Chica Dondon desde que se entendia de gente. As mulheres não tocavam no nome dela, como se fosse perigoso. Diziam “a tal”, ou então “a sujeita da Vazante”, que era a baixa que corria ao longo do canavial. Lá se erguia a casinha de alvenaria, bem cuidada, com gaiolas de pássaros penduradas em volta. Quem falava nela como bem entendia eram os homens reunidos na bodega. “Vou lá em Chica hoje”, diziam, “vou descarregar”. Dico avistava de longe um vulto debruçado na janela, com um pano vermelho na cabeça, como que esperando alguém. Ela só ganhou existência real quando o pai dele, Noberto, entrou um dia no assunto. Dico estava sentado no batente da bodega (“vá lá trazer seu pai, e não me chegue aqui sem ele”), e os homens estavam bebendo e cuspindo. Seu Mateus estava arranchado em cima duma saca de farinha e disse, “Noberto, tu não vai mais na Dondon? Ela vive perguntando.” O pai respondeu: “Eu só piso em merda quando não vejo”. Os homens riram e Mateus insistiu: “Rai te danar, tu já passasse por aquela cama”. E ele: “Eu só fui lá quando tinha quinze anos, e não fui pra cama, fiquei sentado no sofá e quando terminou fui-me embora”. Houve uma trovoada de risos e aquilo nunca mais saiu da cabeça dele, principalmente aquele pedaço: quinze anos!
Quinze anos! E ainda era donzelão, como gritavam os moleques do canavial, facão em punho, quando ele passava rumo à escola. Os olhos pesados de sono à noite, quase colados à folha do caderno, fazendo o dever, à luz do candeeiro, escutando os berros da professora porque não sabia dividir as sílabas de “ro-se-i-ra-l”, a reguada nos dedos, os outros meninos gritando com ele, “vai lá em Chica tirar o selo, senão a gente tira o teu!”, e outro gritava, “vai logo, quem não faz leva!”.
Um domingo estava de castigo e a família foi pra missa. Pulou a janela e disparou para a Vazante como quem resolveu morrer. Bateu na porta sem ar. “Quem é?”, perguntou alguém lá dentro. Ele acertou a dizer: “Dico de Noberto”. Ela o fez entrar. Não era velha e cheia de feridas como ele imaginava, era muito branca, toda redonda, e cheirava a alfazema. Fez menção de levá-lo para o quarto, mas por alguma razão ele jogou-se no sofá. Ela se ajoelhou na frente dele e abraçou-o com calma, apertou-o de encontro a si e disse baixo, “Ô coraçãozinho pra bater...” Ele quis dizer que viera correndo, mas a boca estava seca como um papel. Ela o cobriu de cheiros, de afagos, e por fim falou: “Tu parece com teu pai. Mas tu não é pra mim. Sabe aquela casinha amarela lá embaixo, perto do rio? Quem mora lá é Zuleide, minha sobrinha. Ela te conhece. É uma de trança, que vende boneca na feira. Vai lá. Bate e diz quem é, que ela é doida por tu”. Ele pediu um caneco dágua, bebeu, e disparou de novo. Alguma coisa estava iluminando o mundo. Nuvens roxas cresciam no céu enquanto ele corria, o vento bravo aumentava, e as canas farfalhavam como um roseiral.
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