O que é um gênero literário? Basicamente, é um conjunto
de regras, ou de instruções que devem ser seguidas, para que cada história
escrita possa ser agrupada ao lado de outras.
Quando se trabalha dentro dos gêneros mais populares –
terror, romance-de-amor, suspense, humor, pornografia, ficção científica,
policial – a filiação a um gênero envolve às vezes a vontade de entrar num nicho
de mercado. Pode envolver também uma paixão por parte do autor: ele gosta
daquilo, ele lê toneladas daquilo, e quer escrever algo parecido com aquilo.
Meus primeiros contos foram publicados nos anos 1970 no Correio das Artes, o tradicional
suplemento literário do jornal A União
de João Pessoa, que agora em 2019 completou 70 anos de circulação. Uma meia
dúzia de contos, que não tinham nenhum gênero específico. Um ou outro
aproximava-se levemente do que chamava-se na época de realismo mágico.
Eram contos que eu escrevia porque a idéia me vinha à
cabeça. Não havia nenhum interesse comercial (a publicação não era paga),
nenhuma encomenda, nenhuma “expectativa do público”. Pelo contrário. Ninguém sabia
quem eu era, mesmo na Paraíba.
Desses contos, lembro de “Meu irmão Jorge”, “Noturno”,
“Os artilheiros perplexos”, “Agora brinque com Pedrão Colaço!”, “Relatório
Policial”. Todos publicados entre 1975 e 1981. Apenas um foi recolhido em
livro: “Expedição às Profundezas do Oceano”, que incluí em Mundo Fantasmo (Rocco, 1996).
Depois, por volta de 1986, comecei a publicar nos
fanzines de ficção científica, principalmente o Somnium (São Paulo), dirigido por Roberto C. Nascimento. Ali
publiquei as primeiras e toscas versões de contos que em 1989 seriam recolhidos
no livro A Espinha Dorsal da Memória:
“Mestre de Armas”, “Sympathy for the Devil”, “Catálogo de Exposição”.
Começou então uma coisa interessante: a expectativa
“genérica” começou a se imiscuir na minha cabeça, porque eu sabia que os
leitores dessas publicações eram da faixa ficção científica / fantasia /
terror. Isso sem dúvida me ajudou a escrever – havia a noção muito nítida de um
público leitor à espera, um público que compartilhava comigo um repertório de
leituras e de informações. A esta altura eu havia me filiado ao Clube de
Leitores de Ficção Científica, e nossos encontros eram frequentes, com
discussões longas e acaloradas.
Isso é bom. Por outro lado, é ruim. Porque no Somnium e em outras publicações (Hiperespaço, Megalon, etc.) eu tinha um público atento, mas um público que, em
tese, esperava ler contos de FC/fantasia/terror.
E não foram poucas as idéias de contos que me
entusiasmaram, me levaram a escrever meia dúzia de páginas, mas morreram no
meio do caminho. Porque eram histórias “comuns”, histórias “mainstream”, que eu
jamais coneguiria publicar nos fanzines. Os fanzines eram meu único canal de
publicação. Se eles não aceitassem, publicar onde? E as história morriam no
meio do caminho. Porque “não eram FC”.
A FC sempre foi uma espécie de gueto, mas no Brasil ela era
uma espécie de gueto sem cidade em volta, porque não havia um mercado de
publicação de contos. Me refiro à época de 1986 em diante, e olha que a essa
altura eu já morava no Rio de Janeiro, já traduzia profissionalmente, já tinha
contatos em várias editoras, já publicara um livro pela Brasiliense (SP). Mas
não tinha onde publicar contos que não fossem de FC.
Eu via exemplos disso a torto e a direito na própria FC
norte-americana. Me lembro de um comentário de Fritz Leiber sobre seu excelente
e premiado conto “Gonna Roll the Bones” (1967), a história de um cara que
disputa uma partida de dados com o Diabo. Leiber disse que foi forçado a enfiar
meia dúzia de detalhes bobos para dizer que o conto era de FC – tipo fazer o
personagem olhar para o céu noturno e ver a passagem de um foguete, coisas
assim.
Nesse sentido, pode-se dizer que um gênero é um conjunto
de regras, ou de senhas, que simultaneamente nos dão acesso a alguns ambientes
editoriais e no vedam o acesso a outros.
Uso o termo “ambiente”, em vez de “mercado editorial”,
porque é preciso incluir os fanzines, as publicações independentes, a Web de
hoje – que não são um mercado no sentido financeiro e profissional do termo.
Num texto na revista Locus,
Gary K. Wolfe sugere (a tradução é minha):
Talvez pudesse ser um exercício útil (ou pelo menos interessante)
pensar nos vários gêneros fantáticos menos em termos de territórios distintos
do que em termos de poços gravitacionais – quanto maior a sua massa, mais um gênero
se torna capaz de atrair objetos que cruzam sua órbita, e mais difícil se
torna, para quem já está dentro dele, alcançar velocidade de escape.
É disto que muitos escritores de FC vêm se queixando durante o último
meio século, mais ou menos: o gênero tem massa suficiente para atrair pessoas
como George Lucas ou Margaret Atwood, mas se você já está pousado no solo , se
você já é conhecido como escritor de FC, pode ser muito difícil sair dali.
Claro que não existe (ainda bem) uma definição unânime do
que seja FC, de modo que o empuxo gravitacional varia de região para região.
Minha geração de leitores, por exemplo, se formou em
torno de três revistas principais (para quem lia em inglês):
1) a Isaac Asimov
Magazine, editada por Gardner Dozois, editor/autor de talento, com um
conhecimento amplo e uma filiação sólida à tradição da FC de língua inglesa,
mas com uma informação literária ampla e aberta, disposta a aceitar tipos
variados de novas experiência;
2) a Analog SF
editada por Stanley Schmidt, reduto da FC tecnológica, hard, pouco afeita a experiências puramente literárias, mas com
conceitos exigentes de coerência interna, aventura, verossimilhança
psicológica;
e 3) o Magazine of
Fantasy and Science Fiction (chamado F&SF),
criado por Anthony Boucher, e depois editado por Edward Ferman, Kristine K.
Rusch, Gordon van Gelder, com uma abertura de gênero ainda maior que a de
Dozois, assimilando o tipo de fantasia urbana contemporânea herdado das antigas
Galaxy ou If.
Havia (e há ) outras boas revistas, mas estas eram as
principais, em termos de circulação e visibilidade.
O “mercado” (ou “ambiente editorial”) brasileiro nunca
chegou a esse grau de alcance gravitacional. Nem mesmo quando tivemos a versão
brasileira do F&SF editada por
Jeronymo Monteiro para a Ed. Globo de Porto Alegre (1970-71), ou a versão da Asimov, editada por Ronaldo di Biasi
para a Ed. Record do Rio de Janeiro (1990-92), e que publicou um conto
brasileiro em cada um dos 25 números que lançou antes de fechar.
Um gênero é definido, em geral, pelas pessoas que
determinam o que vai ser publicado sob esse rótulo. A ficção científica publicada
por John Campbell na década de 1940 não era a mesma publicada por Anthony
Boucher na F&SF.
No Brasil, nunca houve, pela inexistência de um mercado
propriamente profissional, esse tipo de imposição “gravitacional” – a não ser a
que vinha de fora. Sempre trabalhamos em torno de conceitos importados, e nesse
sentido a FC e o rock são muito semelhantes. Quando dizemos “estou escrevendo
FC” ou “estou compondo rock”, é como se um certo número de portas se abrissem e
outras se fechassem automaticamente.
E nada disso é obrigatório para quem escreve.