Carlos Drummond de Andrade dedicou a seu amigo Pedro Nava
este poemazinho de Alguma Poesia, seu livro de estréia em 1930. É um poema de época, flash de um tempo em que
as casas tinham um piano na sala, para que as moçoilas exibissem seus dotes às
visitas, após a ceia. Fazia parte nos namoros daquele tempo esse momento ao
piano, em que sensibilidade, refinamento, traquejo social e outras qualidades
eram aferidas ao som de um Noturno ou de uma Polonaise. Machado, no “Memorial
de Aires”, tem belas páginas em que o
Conselheiro Aires observa o namoro de dois jovens durante essas sessões
pianísticas.
O poema de Drummond, “Música”, diz: “Uma coisa triste no
fundo da sala. / Me disseram que era Chopin. / A mulher de braços redondos que
nem coxas / martelava na dentadura dura / sob o lustre complacente.” O traço mais notável aí é uma certa rudeza
nos símiles – os braços parecem coxas, o teclado é comparado a uma dentadura.
Isto já condiz com a inapetência do narrador para com essa música que desde o
início ele considera “uma coisa triste”, sem sequer chamar de música.
E ele prossegue: “Eu considerei as contas que preciso pagar,
/ os passos que era preciso dar, / as dificuldades... / Enquadrei o Chopin na
minha tristeza / e na dentadura amarela e preta / meus cuidados voaram como
borboletas.” Na obra de Drummond, a
criação artística redime tudo, recupera tudo. O Chopin deste poeminha é primo
legítimo das canções que ele enumera em “A música barata”: “Paloma, Violetera,
Feuilles Mortes, / Saudades de Matão e de mais quem? / A música barata me
visita / e me conduz / para um pobre nirvana à minha imagem”. Como acontece com o protagonista de “A
Náusea” de Sartre, que em plena crise de bad-trip existencialista deixa-se
resgatar de volta para o mundo e a vida através de um blues cantado por uma
negra; “Some of these days / you’ll miss me honey...”.
No começo de século em que
viveram esses escritores a música barata surgia como uma possibilidade de
enlevo, de êxtase acessível. Era a música capaz de arrancá-los da tristeza e da
banalidade do cotidiano. Tempo em que a música era uma salvação caída do céu, e
não esse martelar constante e onipresente do mundo de hoje. Pra onde a gente se
vire, há uma superfície eletrônica produzindo música, e mesmo que toda essa
música fosse a música de que gostamos, isto não seria uma versão requintada do
inferno? Estar preso numa gaiola com um milhão de pássaros cantores? No tempo
de Drummond, tanto o Chopin erudito quanto as valsinhas kitsch dos salões eram
capazes de fazer as preocupações humanas partirem todas numa revoada de
borboletas.