domingo, 5 de maio de 2013

3178) As marcas do morto (5.5.2013)





Quando meu tio Fabriciano morreu, não chorei nem fiz drama, mas talvez eu tenha sentido sua morte mais do que a viúva e os dois filhos, para quem o velho (inválido, introvertido) era um entrave, uma sangria financeira. Eu era o único parente que o visitava, o único que era bem aceito. Recebi com uma surpresa formal a notícia de que ele tinha deixado para mim a estante de livros. Lá, ninguém tinha interesse por eles, e meu tio me fizera aquela última gentileza. Ademais, eram poucos, não mais de duzentos.

Folhear livros de um ausente é uma forma de seguir suas pegadas pelo mundo não-linear e ilimitado das idéias. Livros lidos, relidos, manuseados ao longo da vida. Trechos sublinhados, parágrafos inteiros circundados por uma linha firme e intencional, traços ondeados por baixo de termos duvidosos ou de erros de imprensa. Pequenos comentários em forma de pontos de exclamação, interrogação; asteriscos e setas puxando correções ou esclarecimentos.

Quando comecei a examinar seus livros preferidos uma estranheza foi surgindo. Era como escutar meu tio falando. Naqueles livros, que eu mal e mal conhecia, começou a surgir a voz dele, seus modos de dizer, seus aforismos, seu vocabulário. Abrindo um romance ao acaso me defrontei com o “viver é perigoso” que ele tanto usava ao derramar na palma da mão os comprimidos que mantinham seu coração batendo; era estranho ver aquilo nos lábios de um pistoleiro. Abrindo ao acaso alguns livros de poemas, espantei-me, sem compreender como ele enfiara por entre aquelas linhas seus lugares-comuns preferidos: “seria uma rima, não seria uma solução”; “quando a indesejada das gentes chegar”; “não sou alegre nem triste, sou poeta”. Sim, não havia dúvida, ali estava a voz do meu tio, sua melancolia, sua amargura, o sarcasmo com que ele corroia as junturas do seu mundo e naufragava irônico, levando consigo os que lhe mentiam, os que o tratavam como um traste velho.

A cada ocorrência eu fechava o livro, assombrado com aquela violação das leis naturais. Que alguém fizesse anotações às margens de um livro, é coisa normal. Mas não existe nenhum processo – que não pertença ao reino do fantástico – capaz de fazer um homem, à força de tanto ler um livro, incluir nesse livro uma frase sua. Uma espécie de transformação alquímica da tinta e do papel, fazendo o texto anterior se rearrumar, ceder espaço à frase nova, organizar-se em novos metros e novas rimas para receber as queixas em voz baixa que meu tio fazia nos fins de tarde, sofrendo o desdém da família, bebericando seu café preto e murmurando: “somente a ingratidão, esta pantera, foi tua companheira inseparável”.