Os jornalistas têm uma rotina decemberista onde comentam
as novidades do ano que se encerra. Não é o meu caso. Como ninguém me paga para
monitorar os lançamentos, me desobrigo de acompanhá-los, o que é um alívio. Só leio
um livro novo se me interessar muito e não for muito caro. Minha leituras são
fruto do acaso (pessoas que encontro e que me dão seus livros), das amizades
(livros remetidos por amigos, conhecidos e desconhecidos), e de impulsos
inexplicáveis que me fazem pegar, hoje, um livro que estava intocado na estante
há mais de 25 anos. Por que logo hoje? Não sei, e não preciso saber.
Poesia
Leio muita poesia, mas tenho o defeito (e sei que é
defeito) de na maior parte do tempo estar lendo e relendo os mesmos vinte poetas
que já leio há meio século. Fazer o que? Não leio para saber de novidades. Leio
para saber se o que fazia sentido continua fazendo. (Spoiler: nem sempre faz.)
Mesmo livros de poesia, que em geral são fininhos e têm
vastos latifúndios de página em branco, eu não leio do começo ao fim. Livro de
poesia é como caixa de chocolate. De vez em quando a pessoa vai lá e saboreia
um.
Eu tenho amigos poetas que não leem os livros dos amigos,
nem sequer os meus, com esta imbatível desculpa: “Não quero correr o risco de
ser influenciado pelos meus adversários.” Eu não vejo os outros poetas como
adversários, assim como não vejo como adversários (nem sequer como concorrentes)
aquelas pessoas silenciosas e resignadas na fila da Lotérica. Estão ali fazendo
sua fezinha, tal como eu.
Dito isto, destacarei entre muita boa poesia que li uns
poucos livros. Um deles é de um poeta que não conheço pessoalmente, Izalco
Sardenberg, e me foi enviado através de um amigo comum. É um poeta da minha
idade e de leituras aproximadas às minhas, o que de certo modo aproxima os
diapasões. O livro é Remissão (São
Paulo: Amar-Amaro, 2019), onde se leem coisas como:
Choro por besteira,
um dia chorei ao ver a mãe
com o filho de perna mais curta que a outra.
Iam de mãos dadas, sob a guarda de um anjo cruel.
Chorei ao ouvir no Spotify uns versos
que não entendi (mas os sons, encadeados
e escandidos naquela voz eram tão belos).
Talvez seja hora de desistir,
talvez suba de novo a montanha de lava
e então encare a boca ardente. (p.
16)
Outro poeta da mesma geração é o nosso
paraibano-por-consagração W. J. Solha, que nos últimos anos vem desenvolvendo
em linhas paralelas uma série de romances muito pessoais sobre a Paraíba e o
sertão paraibano, e uma série de livros de poemas em versos longos, salpicados
de divertidas rimas internas, onde ele rastreia, identifica e coleciona as
“rimas do mundo”, as pequenas continuidades que parecem tornar a nossa
civilização uma obra de arte escrita por uma consciência coletiva.
O livro da vez é Vida
aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019), onde ele comenta:
O trem, a enferrujar na mata que lhe sobrepuja os trilhos,
não se altera ante o outro que – de repente – ao lado lhe aflora,
a quinhentos quilômetros por hora.
Vida... é isso que te põe ao lado da estrada. (p. 33)
Li muitos cordéis este ano, em função de uma série de TV
que escrevi (No País da Poesia Popular,
Truque Produções, Bahia, direção de José Araripe, lançamento previsto para 2020
no CineBrasilTV). Comentei vários deles aqui no Mundo Fantasmo ou em redes
sociais. Vou destacar um, pela ousadia da idéia e pelo vigor da linguagem: Veredas – versão em cordel, de Edmilson Santini (Rio: ed. Do autor,
s/d).
Santini faz num cordel de tamanho padrão um resumo
dramatizado dos episódios principais do romance-fluxo de Guimarães Rosa, o Grande Sertão. Usando estrofes de
extensão variável, mas sempre coladas à sextilha e à décima, e seus esquemas de
rima tradicionais, ele recria a prosa de Rosa com seus recursos, que não são
poucos, e produz um cordel com medidas iguais de reverência e de originalidade.
Diadorim, toda gateza,
o ódio, a faca, a vantagem:
seus verdes olhos: Coragem;
Coração, toda afoiteza...
Frente à tamanha proeza,
puxei da mente meus ais,
do fundo dos embornais,
tirei alegre um suspiro;
num clim de costelas, um tiro!
Ele arriou pra jamais... (p.
35)
São amostras, apenas. Como falei acima, não faço balanços
minuciosos da produção literária. Deixo isso para os profissionais.
Memorialismo
Por gosto pessoal e eventualmente por leituras de
trabalho, acabo entrando em contato com livros de pessoas que em forma de
crônicas, autobiografias ou relatos confessionais falam do passado, de suas
experiências, do tempo que viveram sobre a terra.
Falam de sua história familiar, como o cearense Arievaldo
Viana em Sertão em desencanto (Fortaleza:
Queima Bucha, 2016), uma reconstituição que parece escrita a quatro mãos por um
historiador e um memorialista. O primeiro retraça as árvores genealógicas de
várias gerações até um passado distante, com nomes, datas e locais
escrupulosamente anotados. O segundo vai pincelando comentários ao longo dessa
história, registrando lembranças, encontros pessoais com um avô ou avó,
histórias pitorescas ou estranhas que passam de geração em geração como uma
moeda rara que se pode dar de presente mas é proibido gastar.
Numa raia parecida corre o livro Novas cartas do sertão do Seridó (Natal : edição do autor, 2009) de
Paulo Bezerra “Balá”, que já comentei mais extensamente aqui no blog. Paulo
Balá, já falecido, era um fazendeiro da velha estirpe, afeito ao trabalho
manual e à lida com os trabalhadores. Seu livro reconstitui histórias de época,
personagens esquecidos, e principalmente serve como um documento valioso de
hábitos, costumes, técnicas, detalhes da vida cotidiana nas velhas fazendas
nordestinas, que ele registra com olho infalível e uma prosa sóbria e vívida.
A crônica curta e leve também cumpre esse papel, e foi
pra mim uma surpresa agradável o livro Onde
davam esses trilhos, de Lido
Loschi (Vitória: Cousa, 2019). O autor é ator do grupo Ponto de Partida, de
Barbacena (MG) e suas crônicas são todas sobre lembranças de infância. Em vez
do tom meramente nostálgico e individualista do “que saudades que eu tenho da aurora da minha vida”, o livro de
Lido Loschi é cheio de episódios de traquinagens (algumas meio cruéis),
brincadeiras, tristezas, desobediências, aventuras que tanto terminam bem como
mal, a excitação coletiva de garotos que vivem na fazenda e parecem ter o mundo
à sua disposição. A prosa não é nostálgica nem sentimental: narra e descreve em
palavras poucas mas precisas.
Outra surpresa foi ter folheado um volume memorialístico
carioca, Antonio’s – caleidoscópio de um
bar (Rio: Record, 1992), de Mário de Almeida. O Antonio’s foi um bar famoso
do Leblon carioca, frequentado por músicos da Bossa Nova, artistas plásticos,
escritores, diplomatas, cineastas, jornalistas e o escambau, além de políticos
importantes e gente com muita grana no bolso. Seu administrador, o Manolo, era
um boa-praça que cuidava dos fregueses e eventualmente lhes servia de
psicanalista, confessor, avalista, enfermeiro, consultor conjugal, e sei mais o
que. É a história de algumas décadas da boemia carioca, com muitos textos do
autor Mário de Almeida, e numerosas contribuições fornecidas por boêmios
famosos e saudosos.
E gosto de pessoas contando (meio egoisticamente, mas
somos todos egoístas) os episódios da própria vida, naquela narrativa eu-eu-eu
onde o resto da humanidade aparece com meros coadjuvantes. É o caso do
excelente Vivir para contarla, de
Gabriel Garcia Márquez (já traduzido no
Brasil). Márquez tem o dom da narração, e este livro tem camadas superpostas de
memorialismo familiar (talvez um terço dele se ocupe das peripécias da
conquista da mãe pelo pai), relato da vida política da Colômbia (que conheço
muito pouco), apanhado de leituras, descobertas e influências. Pulando de
Aracataca para Cartagena, daí para Bogotá, daí para alguma outra cidade,
Márquez acumulou a experiência pessoal no trato com pessoas que acabou
encorpando de maneira única o seu “realismo mágico”. É um livro longo, cheio de
idas e vindas, que depois da última página dá uma vontade danada de voltar para
a primeira e começar a re-entender tudo aquilo.