Qualquer enumeração de “grandes começos literários” acaba
sempre citando os habituais suspeitos: Fahrenheit
451, Cem Anos de Solidão, Anna Karenina, Moby Dick, A Metamorfose,
The Go-Between, Neuromancer, Grande Sertão: Veredas... São os
melhores começos da literatura universal? Não, não são, são apenas começos
excelentes e que nossa cultura decidiu erigir como exemplos obrigatórios.
São o troco-de-algibeira de professores, estudantes,
jornalistas, blogueiros, críticos literários. São citados, referenciados,
imitados, plagiados, parodiados, pastichados por todo pretendente a escritor
que deseja mostrar, logo de cara, que já leu “os clássicos modernos”.
Um bom começo não tem necessariamente que estar atrelado
a um clássico da literatura. Às vezes, nem sequer a um livro muito bom. É
frequente um livro começar bem, e depois desandar. E às vezes o autor, que tem
lá seus talentos e habilidades, dedicou ao primeiro parágrafo um esforço e uma
lucidez que não teve paciência de aplicar no livro inteiro. Acontece.
Vou lembrar aqui alguns começos (de romances e de contos)
que acho eficientes. Não, não são “Os Melhores De Todos Os Tempos”. São apenas
exemplos de começos bem escritos, coisa que nem todos nós conseguimos produzir.
(Os exemplos estrangeiros vão traduzidos por mim.)
O particular e o
universal
Em termos de ficção científica, por exemplo gosto muito
desse primeiro parágrafo de Robert Charles Wilson, em Spin (2005). É o começo do primeiro capítulo pra-valer da história
(o livro abre com um episódio que se refere a outro momento do tempo.
Eu tinha doze anos, e os gêmeos treze, na noite em que as estrelas
desapareceram do céu.
“Num cápsula” temos os três personagens principais da
narrativa e o grande problema cósmico envolvido (a Terra fica misteriosamente
isolada do Universo). E ilustra a grande qualidade de Wilson: narrar eventos
cataclísmicos de grandes proporções e colocar na frente os dramas pessoais dos
personagens, que poucos na FC exploram tão bem quanto ele. (O livro é a
história de um rapaz pobre que tem um casal de amigos ricos, irmãos gêmeos, e
se apaixona pela garota.)
O protagonista
(modo indireto)
Mostrar o protagonista em poucas linhas é uma maneira
forte de começar. Eu não esqueço as linhas iniciais com que Robert Heinlein em The Green Hills of Earth (1947) quando
ele criou o maior poeta da FC, o bardo cego Rhysling:
Esta é a história de Rhysling, o Cantador Cego do Espaço; mas não é a
versão oficial. Vocês cantaram os versos dele na escola:
Eu rezo para aterrissar mais uma vez
no planeta onde nasci:
pousar de novo meus olhos nas nuvens brancas
e nas verdes e suaves colinas da Terra.
Ou talvez os tenham cantado em francês, ou em alemão. Talvez até em
esperanto, enquanto a bandeira de arco-íris da Terra tremulava sobre sua
cabeça.
Rhysling foi uma espécie de Cego Aderaldo ou Patativa do
Assaré do futuro, viajando de planeta em planeta e compondo versos; e em poucas
linhas Heinlein mostra sua importância nessa Terra, inclusive com o detalhe do
uso do Esperanto e da “rainbow banner”.
O protagonista
(modo direto)
Outra maneira de abrir o conto mostrando sua figura
principal é entrar “de cara”, com uma descrição inequívoca, precisa, memorável.
Poucos exemplos serão tão vigorosos quanto o início do conto “A caolha” de
Julia Lopes de Almeida (em Ânsia Eterna,
1903):
A caolha era
uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços
compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes,
ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas,
cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse
cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão
de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos
e cariados. O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos;
não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada
tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra
descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula
continuamente porejante.
É um retrato brutal, que lembra aqueles desenhos em
preto-e-branco, filigranados a carvão ou a bico-de-pena, como que na intenção
de nada deixar de fora, nenhuma verruga, nenhuma ruga, nenhum poro.
A estranheza - I
Há muitas maneiras de começar um livro produzindo uma
quebra de realidade, puxando o leitor, logo na primeira frase, para um mundo
estranho. Uma das melhores sacadas, a meu ver, é o começo de George Orwell para
1984:
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze
horas.
Um antigo ditado inglês refere-se à “décima-terceira
badalada” de um relógio como uma indicação de que o relógio está com defeito,
ou de que alguma coisa está fora dos eixos. No caso de Orwell, a crítica
costuma apontar o fato de que são todos
os relógios da cidade que batem assim ao mesmo tempo. Em tradução, isto se
perde um pouco, porque “treze horas” é uma expressão que passa despercebida
aqui no Brasil; e em geral as 13:00 são assinalados com uma batida única.
A estranheza – II
Outro exemplo de estranheza, neste caso estranheza
sintática, é o começo de Le Dimanche de
la Vie (1952) de Raymond Queneau, uma história corriqueira de amor onde
Queneau infiltra, subversivamente, as críticas que fazia ao seu idioma:
Ele não duvidava de que todas as vezes que passava diante da sua loja,
ela o observava, a comerciante, o soldado Brû. (trad. BT)
Tem um solavanco aí na ordem natural das palavras, mas um
leitor que não esteja mal-humorado aceita e entende. Queneau havia publicado um
artigo intitulado “Connaissez-vous le chinook?” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1950) onde comparava o francês
coloquial, da rua, com o chinook (língua do oeste da América do Norte). Dizia
ele que os franceses estavam organizando a frase do mesmo jeito que os falantes
do chinook quando diziam: “Ela ainda não
viajou, tua prima, à África”, ao invés do francês formal, que diria: “Tua prima ainda não viajou à África”.
Queneau escreveu mais de vinte livros, mas esta é a sua
frase inicial mais citada, depois (é claro) da palavra-inventada com que ele
abre Zazie no Metrô:
“Doukipudonktan?”.
O choque
Produzir um choque nas primeiras linhas é sempre um
“gancho” eficaz para agarrar a atenção do leitor, principalmente se o choque,
ao invés de se esvair por si só, desencadeia um mistério, uma necessidade de
continuar lendo para saber que diabo significa aquilo.
O elusivo e cruel Jonathan Carroll começa assim seu
romance A Child Across The Sky (1989):
Uma hora antes de se suicidar com um tiro, meu melhor amigo, Philip
Strayhorn, me telefonou para conversar a respeito de polegares.
– Já percebeu que quando você lava as mãos você na verdade não lava os
seus polegares?
Essa mistura do macabro e do cotidiano perpassa o livro
inteiro; aliás, a obra inteira de Carroll.
A presença ominosa
Iniciar uma narrativa anunciando a existência de um
fenômeno fora do comum e descrevendo-o aos poucos, de maneira indireta, com
alusões, como que preparando o terreno. É um recurso habitual em histórias de
terror ou narrativas fantásticas em geral. É o abrir gradual de uma cortina,
revelando pouco a pouco uma realidade estranha. É importante para o autor fazer
vibrar o diapasão do livro logo no primeiro parágrafo.
Não preciso exemplificar aqui as histórias de Shirley
Jackson, H. P. Lovecraft, Conan Doyle ou Edgar Allan Poe que utilizam essa
forma insidiosa de introduzir o insólito. Mas ainda pretendo imitar o primeiro
parágrafo de A Náusea (1938) de
Jean-Paul Sartre (o início do texto propriamente dito; há um prólogo):
Segunda-feira, 29 de janeiro de 1932. Alguma coisa aconteceu comigo,
não posso mais duvidar. Veio como uma doença vem; não como uma certeza banal,
não como uma coisa evidente. Veio ardilosamente, pouco a pouco; comecei a me
sentir meio estranho, meio inquieto, e isto é tudo. Uma vez que aquilo se
instalou, não se afastou mais, ficou ali sem fazer bulha, e assim eu pude até
me convencer de que não havia nada de errado comigo, que tinha sido um falso
alarme. E agora, aquilo está desabrochando.
É apenas o começo. E quantos começos, de tantas coisas em
nossa vida, não acontecem exatamente assim?