sábado, 18 de março de 2023

4923) Começos de livros (18.3.2023)




Qualquer enumeração de “grandes começos literários” acaba sempre citando os habituais suspeitos: Fahrenheit 451, Cem Anos de Solidão, Anna Karenina, Moby Dick, A Metamorfose, The Go-Between, Neuromancer, Grande Sertão: Veredas... São os melhores começos da literatura universal? Não, não são, são apenas começos excelentes e que nossa cultura decidiu erigir como exemplos obrigatórios.
 
São o troco-de-algibeira de professores, estudantes, jornalistas, blogueiros, críticos literários. São citados, referenciados, imitados, plagiados, parodiados, pastichados por todo pretendente a escritor que deseja mostrar, logo de cara, que já leu “os clássicos modernos”.
 
Um bom começo não tem necessariamente que estar atrelado a um clássico da literatura. Às vezes, nem sequer a um livro muito bom. É frequente um livro começar bem, e depois desandar. E às vezes o autor, que tem lá seus talentos e habilidades, dedicou ao primeiro parágrafo um esforço e uma lucidez que não teve paciência de aplicar no livro inteiro. Acontece.
 
Vou lembrar aqui alguns começos (de romances e de contos) que acho eficientes. Não, não são “Os Melhores De Todos Os Tempos”. São apenas exemplos de começos bem escritos, coisa que nem todos nós conseguimos produzir. (Os exemplos estrangeiros vão traduzidos por mim.) 



O particular e o universal
 
Em termos de ficção científica, por exemplo gosto muito desse primeiro parágrafo de Robert Charles Wilson, em Spin (2005). É o começo do primeiro capítulo pra-valer da história (o livro abre com um episódio que se refere a outro momento do tempo. 
 
Eu tinha doze anos, e os gêmeos treze, na noite em que as estrelas desapareceram do céu.
 
“Num cápsula” temos os três personagens principais da narrativa e o grande problema cósmico envolvido (a Terra fica misteriosamente isolada do Universo). E ilustra a grande qualidade de Wilson: narrar eventos cataclísmicos de grandes proporções e colocar na frente os dramas pessoais dos personagens, que poucos na FC exploram tão bem quanto ele. (O livro é a história de um rapaz pobre que tem um casal de amigos ricos, irmãos gêmeos, e se apaixona pela garota.)  
 

O protagonista (modo indireto)
 
Mostrar o protagonista em poucas linhas é uma maneira forte de começar. Eu não esqueço as linhas iniciais com que Robert Heinlein em The Green Hills of Earth (1947) quando ele criou o maior poeta da FC, o bardo cego Rhysling: 
 
Esta é a história de Rhysling, o Cantador Cego do Espaço; mas não é a versão oficial. Vocês cantaram os versos dele na escola:

 

Eu rezo para aterrissar mais uma vez
no planeta onde nasci:
pousar de novo meus olhos nas nuvens brancas
e nas verdes e suaves colinas da Terra.

 

Ou talvez os tenham cantado em francês, ou em alemão. Talvez até em esperanto, enquanto a bandeira de arco-íris da Terra tremulava sobre sua cabeça.
 
Rhysling foi uma espécie de Cego Aderaldo ou Patativa do Assaré do futuro, viajando de planeta em planeta e compondo versos; e em poucas linhas Heinlein mostra sua importância nessa Terra, inclusive com o detalhe do uso do Esperanto e da “rainbow banner”.
 
 
O protagonista (modo direto)
 
Outra maneira de abrir o conto mostrando sua figura principal é entrar “de cara”, com uma descrição inequívoca, precisa, memorável. Poucos exemplos serão tão vigorosos quanto o início do conto “A caolha” de Julia Lopes de Almeida (em Ânsia Eterna, 1903): 
 
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados. O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante. 
 
É um retrato brutal, que lembra aqueles desenhos em preto-e-branco, filigranados a carvão ou a bico-de-pena, como que na intenção de nada deixar de fora, nenhuma verruga, nenhuma ruga, nenhum poro. 

 

A estranheza - I
 
Há muitas maneiras de começar um livro produzindo uma quebra de realidade, puxando o leitor, logo na primeira frase, para um mundo estranho. Uma das melhores sacadas, a meu ver, é o começo de George Orwell para 1984
 
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas.
 
Um antigo ditado inglês refere-se à “décima-terceira badalada” de um relógio como uma indicação de que o relógio está com defeito, ou de que alguma coisa está fora dos eixos. No caso de Orwell, a crítica costuma apontar o fato de que são todos os relógios da cidade que batem assim ao mesmo tempo. Em tradução, isto se perde um pouco, porque “treze horas” é uma expressão que passa despercebida aqui no Brasil; e em geral as 13:00 são assinalados com uma batida única.   
 
 
A estranheza – II
 
Outro exemplo de estranheza, neste caso estranheza sintática, é o começo de Le Dimanche de la Vie (1952) de Raymond Queneau, uma história corriqueira de amor onde Queneau infiltra, subversivamente, as críticas que fazia ao seu idioma:
 
Ele não duvidava de que todas as vezes que passava diante da sua loja, ela o observava, a comerciante, o soldado Brû. (trad. BT) 
 
Tem um solavanco aí na ordem natural das palavras, mas um leitor que não esteja mal-humorado aceita e entende. Queneau havia publicado um artigo intitulado “Connaissez-vous le chinook?” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1950) onde comparava o francês coloquial, da rua, com o chinook (língua do oeste da América do Norte). Dizia ele que os franceses estavam organizando a frase do mesmo jeito que os falantes do chinook quando diziam: “Ela ainda não viajou, tua prima, à África”, ao invés do francês formal, que diria: “Tua prima ainda não viajou à África”. 
 
Queneau escreveu mais de vinte livros, mas esta é a sua frase inicial mais citada, depois (é claro) da palavra-inventada com que ele abre Zazie no Metrô: “Doukipudonktan?”.
 



O choque
 
Produzir um choque nas primeiras linhas é sempre um “gancho” eficaz para agarrar a atenção do leitor, principalmente se o choque, ao invés de se esvair por si só, desencadeia um mistério, uma necessidade de continuar lendo para saber que diabo significa aquilo. 
 
O elusivo e cruel Jonathan Carroll começa assim seu romance A Child Across The Sky (1989): 
 
Uma hora antes de se suicidar com um tiro, meu melhor amigo, Philip Strayhorn, me telefonou para conversar a respeito de polegares.
– Já percebeu que quando você lava as mãos você na verdade não lava os seus polegares?
 
Essa mistura do macabro e do cotidiano perpassa o livro inteiro; aliás, a obra inteira de Carroll.
 
 
 
A presença ominosa
 
Iniciar uma narrativa anunciando a existência de um fenômeno fora do comum e descrevendo-o aos poucos, de maneira indireta, com alusões, como que preparando o terreno. É um recurso habitual em histórias de terror ou narrativas fantásticas em geral. É o abrir gradual de uma cortina, revelando pouco a pouco uma realidade estranha. É importante para o autor fazer vibrar o diapasão do livro logo no primeiro parágrafo. 
 
Não preciso exemplificar aqui as histórias de Shirley Jackson, H. P. Lovecraft, Conan Doyle ou Edgar Allan Poe que utilizam essa forma insidiosa de introduzir o insólito. Mas ainda pretendo imitar o primeiro parágrafo de A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre (o início do texto propriamente dito; há um prólogo): 
 
Segunda-feira, 29 de janeiro de 1932. Alguma coisa aconteceu comigo, não posso mais duvidar. Veio como uma doença vem; não como uma certeza banal, não como uma coisa evidente. Veio ardilosamente, pouco a pouco; comecei a me sentir meio estranho, meio inquieto, e isto é tudo. Uma vez que aquilo se instalou, não se afastou mais, ficou ali sem fazer bulha, e assim eu pude até me convencer de que não havia nada de errado comigo, que tinha sido um falso alarme. E agora, aquilo está desabrochando. 
 
É apenas o começo. E quantos começos, de tantas coisas em nossa vida, não acontecem exatamente assim?