segunda-feira, 30 de setembro de 2024

5107) Kris Kristofferson, 1936-2024



 
Uma das lendas que se contam sobre Kris Kristofferson é que ele trabalhava de faxineiro num estúdio de Nashville para poder se aproximar de cantores ou bandas, e interessá-los nas suas canções. Limpando os cinzeiros cheios de baganas, varrendo o chão, arrastando amplificadores, esticando fios, ele ia se aproximando dos músicos, amparado naquele jeitão de caipira simpático, até aquele momento, no balcão da lanchonete do estúdio, em que podia enfiar a mão no bolso do macacão e puxar uma letra rabiscada: “Bem, por falar em composições...” 
 
Deve ser verdade, porque ele de fato fez esse trabalho; mas a esta altura ele já ganhara um diploma em Literatura Inglesa por Oxford (com dissertação sobre William Blake) e tinha sido piloto de helicóptero no Exército, de modo que a faxina não era exatamente por falta de oportunidades ou de qualificação. 
 
Kristofferson, que morreu no sábado passado, aos 88 anos, teve uma carreira irregular, tanto como músico quanto como ator de cinema. Em casos assim, são os pontos altos que fazemos questão de lembrar. Por que? Talvez porque coisas ruins qualquer um de nós é capaz de fazer, mas quantos de nós serão capazes de compor uma canção como “Me and Bobby McGee”? 
 
Aqui, a clássica gravação de Janis Joplin
https://www.youtube.com/watch?v=sfjon-ZTqzU





Uma canção-de-estrada que ficou clássica, todo mundo gravou (eu não gravei, mas fiz uma versão), mas o primeiro Grammy lhe chegou às mãos com “Help Me Make It Through The Night” (Melhor Canção Country). 
 
Aqui, na voz do próprio:
https://www.youtube.com/watch?v=CksF7Kr7Drw
 
Virou referência dentro da música country à qual ele trouxe algo de um folk-rock claramente urbano, cosmopolita, intelectual. Mas suas imagens nunca foram sofisticadas como as de Bob Dylan e companhia. Nick Cave o citou na canção “Frogs”, e explicou a citação em sua newsletter The Red Hand Files (# 289): 
 
“Kris Kristofferson passa por mim, chutando uma lata / com uma camisa que ele não lava há anos...”  Os fãs da música country irão entender esta referência à grande canção de Kristofferson sobre desolação espiritual, “Sunday Morning Coming Down”, na qual o narrador acorda num domingo de manhã, esgotado e com a maior ressaca, e veste “a mais limpa das camisas sujas”. Pode pesquisar.
(trad. BT) 
 
Como ator, ele nunca foi um Marlon Brando, e era modesto ao avaliar seu trabalho. Dizia que só aceitava um papel se entendesse o roteiro e o personagem; e depois tentava ser o personagem diante das câmeras. Foi mais ou menos o que fez nos filmes que vi com ele. 
 
Tinha aquele ar à vontade de quem está confortável no próprio corpo; e aquela masculinidade tranquila de quem exerceu muitas tarefas braçais e leu bastante. Uma coisa compensa os defeitos da outra, não é verdade? Era daquele time de atores que inclui Brando, Nick Nolte, Josh Brolin... Uma amiga minha dizia que ele “era masculino sem precisar fazer força”. 



(Kristofferson e Bob Dylan em Pat Garrett e Billy the Kid)
 
 
Vou procurar aqui se ainda tenho o DVD de Pat Garrett and Billy the Kid (1973, Sam Peckinpah), um filme curioso que não é uma grande obra cinematográfica, não tem uma trilha sonora excepcional (a não ser pelo clássico “Knockin’ on Heaven’s Door”), não é o melhor filme de seu diretor (eu votaria em The Wild Bunch) nem tem interpretações memoráveis do elenco: mas, com todos os seus defeitos é uma obra marcante. Por quê, ninguém sabe até hoje. 
 
Kristofferson fez nesse filme o papel título de Billy The Kid, o famoso assassino que matou 21 homens antes de morrer aos 21 anos de idade. Billy era um desses bandidos sem nenhuma faceta redentora: era só bandido mesmo, bandido cruel e meio obtuso, sem revolta social, sem atitudes românticas. O cinema tentou modificá-lo mais de uma vez. 
 
Para fazer a trilha sonora do filme, Kristofferson e seu empresário Bert Block convidaram Bob Dylan – de quem KK se tornara amigo desde os tempos dos estúdios de Nashville. (Há relatos de que na canção “Lay Lady Lay”, do álbum Nashville Skyline, era Kristofferson quem segurava o bongô tocado pelo baterista Kenny Buttrey.)   
 
Dylan hesitou, mas acabou aceitando depois que assistiu alguns filmes do diretor: Meu Ódio Será Tua Herança (“The Wild Bunch”), A Morte Não Manda Recado (“The Ballad of Cable Hogue”), Sob o Domínio do Medo (“Straw Dogs”) e principalmente Pistoleiros do Entardecer (“Ride the High Country”). 
 
Para fazer o papel do pistoleiro de 21 anos, Kristofferson, então com 37, teve que raspar a barba, o que, aliado ao seu rosto largo, acabou lhe dando um aspecto de “bebezão” no filme. Dylan, pequeno, meio desajeitado, barba rala, roupas desarrumadas, faz o papel de “Alias”, um coadjuvante sem muito a fazer, mas que visualmente lembra muito mais a figura de Billy. 


(Billy The Kid)



(Dylan como "Alias")


As filmagens foram um caos, e apenas duas coisas prenderam Dylan (a esta altura um astro-pop, milionário) até o fim. A primeira é que ele resolveu considerar este trabalho um curso informal e gratuito sobre como dirigir um filme – lições que ele iria pôr em prática depois, no não-muito-bem-sucedido Renaldo e Clara. A segunda foi a amizade com Kristofferson, que o ajudou a aguentar as explosões machistas e temperamentais do diretor. 
 
Diz Howard Sounes, em Dylan, a Biografia (Conrad, 2002, trad. Leila de Souza Mendes): 
 
Dylan e Kristofferson estavam na sala de projeção assistindo um copião quando Peckinpah mijou por toda a tela porque a imagem estava fora de foco. “Eu me lembro de Bob se virar e olhar para mim na reação mais adequada do mundo, sabe como é, em que diabo nós nos metemos”, diz Kristofferson. 
 
O que não impediu que ele voltasse a trabalhar com Peckinpah anos depois, no papel principal de Comboio (“Convoy”, 1978), onde ele faz um motorista de caminhão que se envolve numa rebelião coletiva de caminhoneiros perseguidos por policiais. A insurreição, violenta e festiva, guiada por rádio, lembra Corrida Contra o Destino (“Vanishing Point”, Richard Sarafian). 
 
Foi um dos últimos filmes do caótico Peckinpah, mas que David Thomson (A Biographical Dictionary of Film, 1981) considera “o filme mais descontraído de todos os que fez, flagrantemente bobo em sua dramatização da canção de C. W. McCall, mas divertido, com o aspecto de uma balada tradicional, e imbuído de um senso da beleza do deserto e do espetáculo dos caminhões, que lembram uma justa entre cavaleiros medievais”. 
 
De pistoleiro do faroeste a caminhoneiro, Kristofferson se dedicou a personagens parecidos com ele, rudes, aventureiros, lúcidos na avaliação das situações em que se metem, impulsivos o bastante para persegui-las até o fim, impondo-se em qualquer ambiente com uma presença masculina capaz de fazer os homens darem um passo atrás e as mulheres darem um passo à frente. 
 
Como compositor, foi sempre um rapaz da música country, das melodias simples dedilhadas no violão de cordas de aço, mais próximo de Tin Pan Alley do que do Greenwich Village, mas igualmente à vontade em ambos. Durante algum tempo fez parte do supergrupo “The Highwaymen”, um quarteto de pesos-pesados da música country. 



(The Highwaymen: Willie Nelson, Kris Kristofferson, Johnny Cash e Waylon Jennings)

 
Na juventude, Kristofferson tinha ambições de se tornar escritor – e quem não tem? Aos 18 anos, duas histórias suas foram premiadas num concurso do Pomona College, onde estudou. As duas (publicadas depois no Atlantic Magazine) podem ser lidas aqui: 
 
https://kriskristoffersonfan.com/sample-page/biography/kris-kristofferson-short-stories/
 
Sempre bem-humorado, ele recordava com gosto seus tempos de estudante e dizia: “Acho que eu e Bill Clinton conseguimos desfazer quaisquer ilusões que as pessoas tivessem sobre o brilhantismo dos alunos do Pomona College”. 
 
 
 
 
 
 



sexta-feira, 27 de setembro de 2024

5106) O susto com o mundo (27.9.2024)



(Roy Andersson, About Endlessness)

 
A literatura da imaginação, que abarca muitos gêneros editoriais (o fantástico, a ficção científica, o horror sobrenatural, o realismo mágico, a ficção absurdista, etc.) depende tanto da imaginação do leitor quanto da imaginação do autor. 
 
De nada adianta um romancista executar piruetas e acrobacias do pensamento se ele não conta com um leitor capaz não apenas de acompanhá-lo nesses voos, mas de ter prazer com isto. 
 
No caso da ficção científica, é preciso lembrar que a ficção não pede emprestada à ciência apenas a disciplina, o amor pela exatidão, o raciocínio rigoroso. Tudo isto pode vir no pacote, mas haverá sempre uma lacuna se não vier também a fascinação pelo mistério e pelo desconhecido, o prazer pela aventura mental, a busca do conhecimento, a aceitação do real mesmo quando ele parece absurdo. Tudo isto é também da essência do conhecimento científico. 



 
Richard Feynman, um dos cientistas de cabeça mais aberta que já existiram, dizia:
 
Eu não me sinto amedrontado pelo fato de não saber alguma coisa, pelo fato de estar perdido num universo misterioso, sem sentido, que é o que de fato acontece, pelo menos do meu ponto de vista. Pode ser que seja assim. Isso não me amedronta. 
 
Sem mistério não há possibilidade de descoberta. A ciência não é apenas a propensão a ensinar, é a disposição para aprender. O verdadeiro cientista sempre começa dizendo: “Não sei, e isto me dá vontade de saber.” 




Ray Bradbury colocou no seu clássico As Crônicas Marcianas (1950) esta epígrafe:
 
É bom renovar nossa capacidade de assombro, disse o filósofo. A era espacial nos transformou em crianças novamente. 
 
Essa capacidade de assombro é o que caracteriza tanto o cientista quanto o ficcionista. Conta-se que Galileu Galilei, ainda bem jovem, foi desprezado por uma namorada e decidiu, como todo jovem, atirar-se no rio para matá-la de remorso. Ao se debruçar na ponte, criando coragem para o salto final, ele ficou observando os objetos que desciam arrastados pela correnteza, e percebeu que objetos de formato diferente desciam lado a lado, mas com velocidades diferentes. Por quê?... 
 
Foi o que bastou para ele esquecer o suicídio, a namorada, e correr para casa para esboçar o cálculo matemático daquele movimento. 
 
Este episódio é verdadeiro? Pouco importa (está no capítulo inicial de A Vida de Galileu, de Zsolt Harsányi). É verdadeiro, mesmo que seja ficção, e pode nos ensinar tanto quanto um romance de Tolstoi ou de Graciliano. É uma experiência humana, em forma de ficção. A boa ficção não precisa ser verdade “lá fora”, desde que seja verdadeira “aqui dentro”. 



George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, começou sua carreira literária como autor de ficção científica, que para ele cumpre uma função muito semelhante à da literatura de fantasia, embora com outros recursos. 
 
A FC é a nova fantasia. A fantasia mítica, tradicional, preenchia uma necessidade de maravilhamento por parte do leitor, uma necessidade de estranheza, de algo que a ficção realista comum não podia lhe dar. Historicamente, ela usava lendas como as dos fantasmas e dos elfos, deuses pagãos com os quais convivemos por milhares de anos, e nos quais as pessoas acreditavam pra valer. 
(Locus, dezembro de 2000, trad. BT)
 
O desenvolvimento da ciência e da filosofia foi de certa forma “encurtando” nosso mundo mental, tornando-o mais próximo, mais nítido e mais explicável, mas por outro lado bem menor que o mundo imaginativo da Antiguidade. Esse processo não parou até agora. Ganhamos de um lado – a Ciência nos permite manipular a Natureza – mas perdemos por outro, o lado imaginativo e simbólico. 
 
Tenho a impressão de que perdemos nossa capacidade de assombro. Antes, havia as Sete Maravilhas do Mundo. Você podia viajar e contemplar uma dessas coisas capazes de produzir deslumbramento, espanto. O mundo em que vivemos hoje não tem Sete Maravilhas. Se você parar pra pensar, vai perceber que temos um milhão de maravilhas: edifícios, monumentos... Está tudo ao nosso redor, mas não nos afeta. E por isso começamos a sonhar sonhos cada vez mais espantosos. E criamos artefatos como o Ringworld.  (idem) 
 
Martin se refere ao ciclo de romances de Larry Niven sobre o “Ringworld”, uma construção gigantesca que a Humanidade descobre em nossa galáxia: um anel artificial, metálico, com cerca de 300 milhões de quilômetros de diâmetro, tendo ao centro um sol. A FC está cheia dessas “macroestruturas” ou “grandes objetos mudos” cujas meras dimensões causam tontura. 


 (R
ingworld)
 

Um balanço dessas misteriosas maravilhas artificiais está aqui:
https://sf-encyclopedia.com/entry/macrostructures
 
Um aspecto interessante de toda a gigantesca aventura humana na conquista do espaço (o avião, o foguete, os satélites artificiais, o pouso na Lua, os super-telescópios, a Estação Espacial em órbita, etc.) é que as descobertas da ciência são pautadas pela imaginação da literatura. É frequente alguém observar que o escritor A ou B se equivocou nos detalhes técnicos de seu romance espacial escrito há meio século ou mais. Essa crítica esquece que cabe à literatura a imaginação em larga escala, não a profecia do detalhe técnico. O voo espacial é um problema imaginado por escritores e resolvido por cientistas. 



Dizia o Padre António Vieira:
 
"Dizem os filósofos que a admiração é filha da ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque, admirados os homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar, e isto é o que se chama ciência. Como filha da ignorância, me ensinará a mesma admiração a perguntar; e como mãe da ciência, a responder, posto que tão alta seja a segunda parte, como profunda a primeira. " 
(Padre António Vieira)
 
A literatura pauta a ciência, não por um processo organizado e metódico, mas porque ma imaginação dos escritores VALE TUDO. Ela parte ao mesmo tempo em todas as direções possíveis, excita a imaginação de leitores jovens, e são alguns destes que no futuro se tornarão cientistas e se dedicarão a tornar real um ou outro detalhe (quando este é factível, realizável) do que era apenas uma aventura fantástica. 
 
Nem tudo pode virar ciência. O foguete e a viagem à Lua foram concretizados. A máquina do tempo e a teleportagem instantânea talvez nunca o sejam. (Sou cético – aposto que nunca existirão.) O que de fato se realiza, porém, deve igualmente à imaginação de uns e ao senso prático dos que vieram depois. 
 
Tanto o cientista quanto o ficcionista devem ser capazes de se assustar com o mundo. Um susto que se transforma em interrogação, a interrogação em curiosidade, a curiosidade em pesquisa, a pesquisa em descoberta. 

 
Dizia G. K. Chesterton, em Tremendous Trifles:
 
O mundo nunca sofrerá uma escassez de maravilhas, e sim uma escassez de maravilhamento. Devíamos ser capazes de nos maravilhar com as coisas permanentes, e não com a simples exceção. Devíamos nos espantar com o sol, não com o eclipse. Devíamos nos assombrar menos diante de um terremoto, e mais com a própria terra. O que é maravilhoso na infância é que para as crianças tudo é fonte de assombro. Seu mundo não é simplesmente um mundo cheio de milagres, mas um mundo milagroso. 
 
Essa capacidade de se maravilhar – que na ficção científica recebeu o nome de “sense of wonder” – não é privilégio da FC. Está presente em outros tantos poetas e prosadores do mainstream. É aquilo que Carlos Drummond de Andrade chamava “o sentimento do mundo”, e que ele glosou de forma melancólica em poemas como “A Máquina do Mundo”, ecoando um deslumbramento terrífico experimentado por Augusto dos Anjos em “As Cismas do Destino”. 
 
É o que fazia Guimarães Rosa, outro menino permanentemente fascinado pelas coisas mais pequeninas da existência, dizer, arrebatado: 
 
Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes,
é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.
(“Grande Sertão: Veredas”)
 
Sem esse susto e sem essa descoberta é possível escrever coisas belas e importantes sobre o mundo e a vida. Mas quem passa por essas epifanias escreve algo que é substancialmente diferente, algo que atrai um certo tipo de leitor como se fosse um campo magnético ou gravitacional. 


(G
uimarães Rosa)
 



terça-feira, 24 de setembro de 2024

5105) A palavra incontornável (24.9.2024)



 
De vez em quando o povo descobre (ou inventa) uma palavra. Ela começa com um susto-de-novidade, projetando uma luz diferente e interessante na frase onde se instala. “Que maneira legal de dizer isto”, pensam as pessoas, e se danam a usá-la a torto e a direito. 
 
É nova.  É diferente.  Desperta a atenção de quem ouve, e é sempre bom ter um jeito-de-dizer capaz de arrancar as pessoas do piloto-automático. Tirar as pessoas do transe-zumbiforme em que elas parecem estar mergulhadas, até mesmo quando estão andando, olhando, falando alto. 
 
É o caso atual da palavra “incontornável”. Num efeito curiosamente metalinguístico, ficou difícil contornar essa palavra, que volta e meia insiste em se postar à nossa frente, mãos nos quadris, atitude desafiadora. Não importam as voltas e volteios do nosso discurso verbal, a gente acaba indo na direção dela, tentando contorná-la como um motorista contorna um girador, mas... debalde. 
 
Depois que esbarrei nela cinco vezes seguidas antes das três da tarde, nas redes sociais, fiz uma promessa muda de nunca utilizá-la. Percebi que já estava se fossilizando em clichê, adquirindo as mesmas propriedade anti-pensantes da maioria do nosso vocabulário comum. Estava indo para a mesma prateleira onde já estão, por exemplo, instigante e camadas. 
 
“Camadas” é a besta-sinistra do meu confrade Lira Neto, cuidador do idioma, a quem irrita a onipresença dessa metáfora em tudo quanto é assunto. Tudo hoje em dia se define em termos de “camadas”. 


 

Há, de fato, muitas camadas superpostas no uso desse termo.  No começo de tudo, foi útil trazer esse aspecto para o meio da discussão, porque todo mundo começou a admitir que, sim, não só no mundo físico como no mundo das idéias tudo se organiza em películas superpostas. Tudo é constituído de layers, como as cascas geológicas que se recobrem umas às outras em nossos continentes. Por baixo de alguma coisa há sempre uma coisa diferente. 
 
Já disse algum pensador que se arranharmos a superfície de um cínico vamos sempre encontrar um idealista desiludido. E Fausto Fawcett, o Bardo Cibernético de Copacabana, já observou que se a gente raspar um Jetson vai encontrar por baixo um Flintstone. Camadas. 
 
Por que apareceu, de um momento para outro, essa necessidade de definir tudo em termos de camadas? Porque se trata de uma palavra instigante, e aí chegamos a esse outro piercing verbal, penduricalho que, por volta dos anos 1980, todo mundo trazia na ponta da língua. 
 
Falei disso aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/01/0755-palavra-instigante-1982005.html
 
São palavras que já existiam no idioma mas estavam meio que na despensa ou no freezer, e quando alguém lhes dá uma requentada e as traz para o centro da mesa não chegam pra quem quer. 
 
É longa a lista de palavras atualmente na moda, e já com verniz de clichê, a ponto de franzir a testa de muita gente.  Ressignificar.  Potente.  Território.  Narrativa.  Imersão.  Literalmente.  Icônico.  Multifacetado.  Resiliência.  Empoderamento.  



(Lewis Carroll, Through the Looking-Glass, ilustração de Sir John Tenniel) 
 

Estas palavras são idiotas? De jeito nennhum, são palavras bastante úteis e expressivas, e eu já devo ter usado todas elas. Só que, no momento, faço questão de não usar mais – porque já prevejo as caretas resignadas de muita gente. “Ai meu Deus, de novo essa palavra idiota, não aguento mais.” 
 
As palavras são como um chiclete, começam com um gosto agradável de hortelã ou de cereja, mas esse gosto logo desaparece, vai-se embora o susto-de-novidade que uma palavra invulgar contém. O açúcar se dissolve todo, e fica só a borrachinha. O chiclete vira clichê. 



(arte: Philadelpho Menezes)

 
Penso às vezes que isto acontece porque vivemos numa bolha cultural onde é muito rápido, para uma palavra, entrar na moda; e pelas mesmas razões é muito rápido tornar-se lugar-comum. Num país de mais de 200 milhões de usuários do idioma, essas sucessões de modismos e clichês se dão numa bolha minúscula de meio milhão a um milhão de leitores, se tanto.  
 
O ricochete interno nas paredes da bolha (leia-se imprensa eletrônica; leia-se redes sociais) é muito rápido. As palavras viralizam nas redes sociais, com todo seu charme de novidade e potência (êpa) expressiva; e logo viralizam mesmo, literalmente (êpa), como vírus, doença, uma coisa chata que quando a gente vê já contraiu.  
 
Alguns meses de uso intenso, de incômoda reiteração... e pronto, a palavra está puída, desgastada, desvalorizada, eu diria quase prostituída por tantos usos e abusos. 
 
Pobres das palavras, que culpa alguma carregam. Pobre da palavra incontornável, quando descobre que não é indispensável, inevitável, imprescindível.    


 


 



sábado, 21 de setembro de 2024

5104) Sete segredos (21.9.2024)



(ilustrações ad hoc produzidas por Inteligência Artificial)


Isabelle Astaing, 27 anos, moradora de Bas-Béthune, na França. Cresceu sem mãe e sem irmãos, criada pela avó materna. Quando tinha apenas um ano, seu pai, Jacques Astaing, num acesso de insanidade, invadiu uma igreja, fuzilou fatalmente seis pessoas, deixou mais onze feridas, e foi morto pela polícia. Sua esposa Marie-Frances morreu (“de desgosto e de vergonha”, dizia-se) meses depois, deixando a bebê para ser cuidada pela avó. A menina, quando ficou grandinha, ficou sabendo de tudo a respeito de seu pai, mas a avó a aconselhava a não tocar no assunto com ninguém da cidade, porque poderia ser alvo de preconceitos. Todos na cidade sabiam da história dos Astaing, mas viam a menina com simpatia. Ela cresceu tendo poucos amigos, e imaginando que ninguém sabe quem foi seu pai, porque ninguém lhe faz perguntas sobre a família. E assim ficam, ela e os outros, cada qual por motivos diferentes, evitando tocar no assunto, e se fazendo de desentendidos sempre que alguém inadvertidamente menciona o episódio da “Chacina da Église du Bon-Dieu”.

 

(I.A. -- Bing)


Chuck Hollinger, 38 anos, advogado em Manhattan, passou pelo andar térreo do World Trade Center naquele dia fatal, duas horas antes do atentado, para tomar o café da manhã numa lanchonete antes de ir para uma reunião a alguns quarteirões dali. Na lanchonete, viu de longe um casal aos beijos que reconheceu como sendo Steve Canby, 35 anos, e Sue Lavery, 29 anos, que trabalhavam num escritório de advocacia no 81º. andar. Hollinger viu os dois saírem de mãos dadas rumo ao estacionamento, ao invés de subirem ao WTC. Nos dias subsequentes ao atentado, sem comentar nada com ninguém, ficou na expectativa de notícias a respeito dos dois e de como talvez tivessem escapado por pouco à destruição das torres. Semanas passaram, e através de cuidadosas e discretas inquirições Hollinger soube que os dois eram dados como desaparecidos pelas respectivas famílias. Ele nunca comentou o fato com ninguém.

 

(I.A. -- Firefly)


Rivalda Barbosa, 44 anos, diarista de profissão, estava há alguns meses fazendo faxina semanal na residência do casal Almério, 38 anos, e Ludmila, 30 anos, que a tratavam de maneira formal e educada, e no curso desse trabalho, que em si não era nem mais nem menos desgastante do que o de outras residências, pôde perceber a tensão entre o casal, fruto principalmente do temperamento agressivo e até cruel de Almério, o qual chegava a agredir a esposa, embora nunca diante de Rivalda, que mesmo assim já tinha passado por isto e conhecia os sinais. Uma tarde, limpando o banheiro da suite, ouviu através da porta fechada Ludmila queixando-se a alguma amiga, e dizendo: “Mas não tem nada não, estou preparando meu esquema, qualquer dia eu desapareço.” Nada disse, nada comentou, mas algum tempo depois, ao arrumar a despensa, lugar onde Almério raramente entrava, fez por mero acaso uma descoberta, um nicho secreto, num tipo de esconderijo que só poderia ter ocorrido a uma mulher, “um esconderijo à prova de homem”, pensou Rivalda, enquanto apalpava e corria com o polegar o maço de notas amassadinhas de cem e duzentos reais; e nas faxinas seguintes, a curiosidade sendo tão grande, percebeu que o pecúlio secreto aumentava, como também as violências verbais de Almério, cada vez mais ciumento, mais desaforado, e Rivalda quando tinha um tempinho ia lá conferir e aquela poupança crescia, enchendo-lhe os olhos, ela Rivalda com a mãe doente, ela Rivalda com o aluguel em atraso, ela Rivalda precisando fazer um canal no pré-molar, e aquela pequena fortuna ali dando sopa, até o dia em que ela chegou para o trabalho e deu com a cara na porta fechada, e uma vizinha lhe explicou, excitadíssima, que Ludmila tinha sumido sem dar explicações, Almério estava furioso e desconcertado, mas, concluiu a vizinha, “ela não é nenhuma boba e a essas horas deve estar muito longe”. E Rivalda comentou: “Tomara”.




(I.A. -- Bing)


Padre Simeão, 58 anos, da paróquia de Bom Retiro (MG), recebeu com certo sobressalto, numa terça-feira à tarde, a presença em sua modesta igreja de D. Emerenciana Catunda, 76 anos. A matriarca da família Catunda-Matoso, dona da maioria das terras daquela ribeira, mulher feita de ferro e baraúna, vinha à missa todos os domingos há décadas, mas jamais se confessava ou comungava. O padre fez os rapapés de sempre e conduziu a anciã até o confessionário, de onde ela se retirou meia hora depois, carrancuda como viera ao mundo e como certamente haveria de deixá-lo. O Padre Florival, 32 anos, observou tudo à distância, num pé e noutro, e, depois de transcorrido um conveniente intervalo, abordou o colega mais velho para saber do que se tratava, uma vez que entre ambos havia uma confiança total, com o beneplácito (esperavam eles) da Justiça Divina. Padre Simeão, no entanto, enxugou o suor da calva, esquivou-se, mudou de assunto, resistiu o quanto pôde, mas finalmente teve que dizer: “Padre Florival, pelo menos desta vez – respeite o segredo da confissão!...”  E nunca revelou nada. 



(I.A. -- Bing)


Marilinha Muniz, 23 anos, roqueira, vocalista simultânea de várias bandas emergentes, como Canabidiol, Coração da Índia, As Barbitúricas e outras, casada com o tecladista Otávio Rabelo, 28 anos, apaixonadíssima pelo seu marido, e fiel, independentemente das numerosas cantadas que recebe no palco e fora dele, das quais sempre se esquiva com um sorriso de desentendida, mantém um pacto com Otávio, pacto de abertura total, franqueza total, de nada-esconder-um-do-outro, e agarra-se a ele com a inocência dos que amam de verdade, mas numa noite de julho, depois de um show numa boate de Mossoró, ela deixou-se levar por um fã para um dogão e uma Coca, uma hora de papo sobre a vida, a música, a juventude, e no fim de tudo estava tão animada com esses três aspectos que deixou-se beijar demoradamente pelo patrocinador do lanche, Luís Paulo Aléssio, 41 anos, nerd, virgem, que lhe confessou balbuciante ser aquele o seu primeiro beijo, e a fez prometer silêncio absoluto sobre o episódio, principalmente sobre este último aspecto, e Marilinha voltou intacta para o hotel e para casa e para os braços confiáveis de Otávio Rabelo, e há anos sua invulnerável felicidade vive não-obstante toldada por uma sombra, de saber que pelo menos naquele detalhezinho comprometedor, ela achou mais cristão e mais fofo ser menos fiel à palavra dada ao marido e mais fiel à promessa feita ao rapaz do dogão, coitado.

 

(I.A. -- Firefly)


Valerii Nikolaiévitch Raspov, 43 anos, co-piloto de um voo comercial Irkutsk-Moscou, com 243 passageiros a bordo, viu como alarme a palidez tomar conta do rosto de seu colega, o piloto Dmitri Ivanovich Tchernáiev, 46 anos, quando o avião foi colhido por uma tempestade súbita e começou a chacoalhar, “era como se alguém estivesse tentando usar a aeronave para preparar um martini”, declarou depois Raspov. Por algum motivo Tchernáiev, piloto experiente, foi tomado por um acesso de pânico, talvez consequência do ser tão afeito à vodka e aos remédios tarja-preta; começou a suar abundantemente, com mãos trêmulas e olhos vidrados, e daí a pouco estava encolhido em seu assento, todo urinado, incapaz de tomar providências. Raspov isolou a cabine, ordenou aos comissários que acalmassem os passageiros, assumiu o comando, enfrentou aquele Maelstrom atmosférico e meia hora depois pousou a aeronave em segurança. A equipe de terra prestou socorro imediato ao piloto, cuja coragem Raspov elogiou em seu relatório. À esposa de Tchernáiev ele declarou: “Dmitri foi um herói, faça por onde ele seja um herói vivo.” Curiosamente, o piloto Tchernáiev, depois de recuperado, cortou relações pessoais com Raspov, a quem passou a acusar de ambicioso, carreirista e difamador. 




(I.A. -- Bing)


Alex Ramos, 25 anos, volante da equipe do Itumbiara, perseguido e esnobado pelo técnico Wilson Maciel, 48 anos, guardando calado o ressentimento pelas reclamações, críticas, comparações desestimulantes, viu chegada sua hora quando durante um treino coletivo o técnico apitou mandando parar e anunciou que tinha perdido a aliança, o que levou todo o plantel a agachar-se no gramado à procura, cabendo a Alex, ao passar os dedos numa grama alta junto à lateral do campo, ver o brilho do pequeno círculo dourado, e ter a estranha reação de pegá-lo disfarçadamente e enfiá-lo entre a chuteira e o pé, talvez com a intenção de fazer uma brincadeira mais tarde, talvez com intenção de pedir algo em troca, talvez para esticar um pouco mais aquela pausa num treinamento entediante, enfim, o próprio Alex ficou sem saber por que motivo escondeu a aliança, que levou para casa após o treino e guardou embaixo de um taco solto no quarto-de-empregada do apartamento em que morava e de onde se mudou no ano seguinte, e onde a aliança continua até hoje, catorze anos depois. 
 



quarta-feira, 18 de setembro de 2024

5103) "Paisagens do Fim": quando o mundo acaba (18.9.2024)



 
Paisagens do Fim é um filme recente do crítico Carlos Alberto Mattos, “Carmattos”. Um ensaio cinematográfico que evoca nossa fascinação pelas ruínas, pelos cenários de destruição, pelos espaços onde vida e morte coletivas se entrelaçam naquela mistura inseparável das lacunas do que se foi com os pedaços do que restou.  
 
Eu tenho fascinação por essas coisas, e a coloco na mesma prateleira do meu interesse por lugares abandonados, cidades fantasmas, prédios desertos, os chamados “espaços liminares” de que vez por outra estou falando aqui neste blog. Tudo isto habita o mesmo universo simbólico do que Victor Burgin chamou de “imagens catastrográficas”, como lembra Carmattos. 
 
A primeira meia hora de Paisagens do Fim é ocupada por cenas de filmes de guerra, da devastação provocada pelo próprio ser humano. Dá um certo calafrio rever em filmes como Alemanha Ano Zero ou Paisà as tomadas aéreas de Berlim ou de Florença consumidas pelos bombardeios, os edifícios reduzidos a cacos pontudos que apontam para o céu. 



(Paisà -- Roberto Rossellini)


A expressão “filme de guerra” traz instintivamente à nossa lembrança imagens de bombas explodindo, soldados de infantaria, cargas de baioneta, aviões despejando napalm... Existe, contudo, um tipo mais arrepiante de “filme de guerra”, e é o que conta o que acontece depois da guerra – os habitantes dos escombros, nas cidades agora pacificadas onde não se dispara um tiro de revólver sequer, mas onde é preciso descobrir onde existe pão, onde existe água de beber, onde é possível achar um colchão para dormir, uma bacia onde lavar roupa. E não se acha. 
 
Esse é o tipo mais inquietante de filme-de-guerra, porque não mostra a destruição, mostra a ruína.  Durante a destruição, tudo que interessa é o impulso pânico de escapar à morte. Já nas ruínas, a tarefa é mais complicada e mais a longo prazo – o que fazer com a vida. E isso vira uma dor permanente e sem esperança, uma dor que não dorme. 

Como lembra o poema do tcheco Miroslav Holub:


CINCO MINUTOS DEPOIS DO ATAQUE AÉREO

(trad. BT)

 

Em Pilsen,

na Estrada da Estação, número 26,

ela subiu ao terceiro andar

onde as escadas eram tudo que restava

da casa inteira.

Abriu a porta de par em par

e contemplou o céu,

de pé sobre a borda.

Pois foi naquele lugar

que o mundo acabou.

Depois

trancou tudo com muito cuidado

para que alguém não roubasse

Sírio

ou Aldebarã

da sua cozinha;

desceu para o térreo

e se acomodou

para esperar

que a casa se erguesse de novo

que o marido ressurgisse das cinzas

e que as mãos e os pés das crianças fossem de novo postos no lugar.

Foi achada de manhãzinha,

dura como pedra, 

pardais bicando suas mãos.






(Terra da esperança – Sion Sono)


No filme japonês Terra da Esperança (de Sion Sono), pessoas recusam-se a deixar a cidade que está sendo evacuada, assim como em La Soufrière de Werner Herzog alguns moradores da encosta do vulcão aferram-se ao seu lugar, mesmo com a erupção iminente. O que é isto? Talvez o poder hipnótico que tem, sobre nós, a morte em grande escala, a morte catastrófica, a morte apocalíptica – a morte que surge como uma revelação final, mas nunca tardia, de que nossa vida individual conta muito pouco ou quase nada em termos da nossa espécie ou do nosso mundo. 

Augusto dos Anjos se referia a “esta necessidade do horroroso que é talvez propriedade do carbono” – ou seja, a fascinação pelo Terrível, pelo Medonho, pelo Monstruosamente Sublime – um poder primal que arrebata a alma de todas as criaturas vivas. 
 
Quando vemos os cenários de terremotos e inundações, a destruição parece não somente inevitável, mas também uma parte da vida. O mundo mexe-se, respira, arfa, o mundo se contrai e se distende, e nesse movimento típico de todas as coisas que contém mudanças, ele rebenta nossas represas, nossos muros, bota abaixo nossos arranha-céus, consome em chamas nossos jardins e plantações. 
 
Como dizia o poeta Shelley, “a Terra troca de pele, como uma serpente”. 
 
O mundo, neste sentido, é quase um ser biológico; a gente sente um certo impulso de acreditar cegamente nas hipóteses de “Gaia”. O planeta é uma criatura viva? Tudo bem, ele tem processos próprios de auto-equilíbrio e redistribuição de energia, mas ele sabe o que está lhe acontecendo? O mundo sente? O mundo reage? 
 
Carmattos recorta cenas cruciais dos filmes, imagens que mostram, geralmente em planos afastados, essa imensidade dos processos geológicos ou climáticos, e a insignificância física de um ser humano. Nada é tão minúsculo quanto um ser humano diante do movimento de grandes massas de fogo, de água, de terra ou de ar.  Dos quatro elementos arquetípicos da natureza. 
 
E ao mesmo tempo somos significantes, por que não? Nossa vida pode não ser grande coisa para o planeta, mas dane-se o planeta, é uma grande coisa para nós, que não temos outra. Mesmo que todo o nosso significado não passe de um esforço de recitar Shakespeare no meio do deserto, numa cidade-fantasma tomada pela areia, como no filme dinamarquês O Rei Está Vivo. 



(O rei está vivo -- Kristian Levring)

 
A consciência ecológica tem por vezes a face sorridente e iluminada da cultura new age. Graças a ela descobrimos, meio de repente, que somos como notas musicais de um vasto concerto cósmico, ou fios de uma tapeçaria. Existem uma Ordem, e fazemos parte dela. 
 
O reverso da moeda é algo parecido com a revelação arrepiante do Roquentin, o protagonista de A Náusea de Jean-Paul Sartre. De repente ele se dá conta da existência das coisas fora da consciência dele. Roquentin olha para a raiz de uma árvore e percebe que essa raiz não está ali por causa dele, não está lhe dizendo nada. A raiz existe independentemente dele. Não pensa, não sente, não percebe a existência dele e não precisa dele para existir. 
 
Basta um estalo de dedos para percebermos que essa raiz é a Natureza inteira, é o planeta Terra, que não passa recibo de nossa presença aqui. As poucas centenas de milhares de anos da efêmera passagem humana pelo planeta não deixarão muitas marcas. Não somos mais importantes do que os vulcões ou as minhocas. 
 
Blaise Pascal comentou, numa frase famosa, que “o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.  Acho que nos apavora ainda mais quando entendemos que não é um silêncio de recusa, e sim de ignorância. O universo não está se negando a falar conosco: o universo simplesmente não sabe que existimos, porque não é dotado de consciência. 



(Acqua Movie -- Lírio Ferreira ]

 
Paisagens do Fim é o relato alternadamente angustiante e resignado da presença desta humanidade no planeta, esta fagulha que ao mesmo tempo ilumina e se consome. É preciso o olho esperto e o corte preciso do cineasta para montar o quebra-cabeças deste ensaio fílmico, mostrando as mil e uma formas que esta obsessão adquire ao ser transposta para a tela. 
 
“Destruição e tradição se confundem”, diz a narração a certa altura. O que chamamos de Tradição, ou de História, ou de Memória Cultural ou o que quer que seja, é apenas o que sobreviveu a todos os cataclismos: as guerras, os incêndios, os pogroms, as limpezas étnicas, as escravizações, os bombardeios.  E também os tsunamis, os terremotos, as desertificações, as pragas da lavoura, as epidemias. 



(Quando a Terra Treme -- Walter Salles) 


A Tradição é o que resta depois de todos estes extermínios. O que chamamos de “teatro grego” são as peças que sobreviveram aos milênios e por uma via ou outra chegaram até nós. Toda tradição é amputada, incompleta, parcialmente obliterada não somente pela destruição violenta mas pelo esquecimento, a deterioração, o acaso. 
 
Um verso de Caetano Veloso queixa-se do Brasil dizendo que “aqui tudo ainda é construção e já é ruína”, mas o sentido maior do verso pode se estender ao mundo inteiro, a essa nossa passagem meteórica, mesmo que tentemos deixar para trás pirâmides, zigurates, templos, muralhas, torres gêmeas. E tudo vai passar, tudo vai virar pó. 
 
O filme de Carmattos pode ser visto de graça no Vimeo:
https://vimeo.com/1005118046
 
Em paralelo com ele, o autor mantém um blog/livro com textos mais longos a respeito de todas as obras comentadas: http://paisagensdofim.com  Vale um demorado passeio.  



(La Jetée – Chris Marker)
                






domingo, 15 de setembro de 2024

5102) A arte de inventar palavras (15.9.2024)




Devem ser poucos os leitores jovens que tenham ouvido falar no Dr. Castro Lopes (1827-1901), um filólogo que foi um dos grandes defensores da pureza do nosso idioma.  
 
Defender a pureza absoluta do idioma é tão utópico quanto como defender a pureza absoluta do ar que respiramos.  O mais que podemos fazer é controlar o nível de poluição e lutar para que o resultado seja bom para a saúde.  
 
O Dr. Castro Lopes defendia nossa saúde verbal combatendo os galicismos, palavras de origem francesa. Naquela época, o grande referencial para quem queria ser “chic” no Brasil era o francês; hoje, o referencial para quem quer ser “cool” é o inglês.  
 
Para combater essa influência, que considerava nefasta, Castro Lopes passou a inventar palavras com raízes gregas ou latinas. Pelo seu raciocínio, ao que parece, o Brasil tinha mais a ver com Roma e a Grécia antiga do que com a França. 
 
O problema era que na sua mente de erudito bastava que a palavra fizesse sentido, filologicamente, para estar justificada.  Por exemplo: ele não gostava de “abajur”, palavra derivada do francês “abat-jour”; e propunha, para substituí-la, “lucivelo”.  Por que não usá-la? É uma palavra que contém as mesmas idéias, de “luz” (jour/luci) e de “ocultar” (abat/velo). 
 
Por algum razão, a palavra inventada não pegou.  Em toda minha vida, só vi essa palavra em artigos sobre o Dr. Castro Lopes. Por outro lado, na Paraíba todo mundo chamava o objeto de “quebra-luz”. 
 
Outro galicismo que ele abominava era “piquenique”, aportuguesamento do francês “pic-nic”: e propôs  em seu lugar “convescote”.  Esta chegou a ter uma certa aceitação, mas não substituiu a outra.  O doutor não gostava de “chofer” (do francês “chauffeur”) e sugeriu dizermos “cinesíforo”.  Não gostava de “galocha”, e propôs usarmos “anidropodoteca”.  E assim  por diante. 
 
Tenho grande admiração pelo doutor. Ele parece ter sido (não sei quase nada de sua biografia) um desses cientistas puros de coração, que se guiam pela razão e pela lógica, e ficam meio surpresos quando a Humanidade não os acompanha. Uma espécie de Sheldon Cooper das letras brasileiras. 
 
O exemplo do heróico doutor bastaria para chegarmos à conclusão falsa de que palavras inventadas não “pegam”, não se incorporam espontaneamente à língua.  Mas não é o que acontece.  Escritores (e também filólogos) criam palavras do nada, ou da justaposição inesperada de elementos, e em pouco tempo elas estão fazendo parte da nossa linguagem diária.  

Num dos seus prefácios a Tutaméia (“Hipotrélico”), Guimarães Rosa lista uma série de palavras e os autores que as inventaram (ou puseram em circulação): altruísmo (Auguste Comte), niilista (Turgueniev), egolatria (Rui Barbosa), necrotério (Alfredo de Taunay)... 




A estas poderíamos juntar intertextualidade (Julia Kristeva), anestesia (Oliver Wendell Holmes), eugenia (Sir Francis Galton), agnóstico (Thomas Huxley)...  
 
Atribui-se ao editor John W. Campbell, que pilotou durante décadas a revista Astounding Science Fiction, a criação do termo “hiperespaço” (“hyperspace”), para designar um espaço alternativo a este em que vivemos, um espaço onde fosse possível a uma nave viajar mais veloz do que a luz. 
 
Um método simples para inventar palavras é produzir uma variante de uma palavra já existente. Como Campbell fazia suas naves viajarem no “hiperespaço”, não me custou muito esforço sugerir (em A Espinha Dorsal da Memória, 1989) que os meus alienígenas, os Intrusos, viajavam no “hipertempo” (que em inglês seria “hypertime”), uma vez que tempo e espaço são apenas modos diferentes de nossa percepção do mesmo fenômeno. 
 
Guimarães Rosa foi um grande inventor de palavras novas, e há muitos livros dedicados exclusivamente a esse aspecto de seu talento literário.  
 
Rosa nem sempre inventava: às vezes recuperava, com pequenas alterações, palavras esquecidas.  “Nonada” e “tutaméia” são termos que ele repôs em circulação (pelo menos nos círculos literários), ambos significando ninharias, miudezas, coisas sem importância.  




No próprio volume de Tutaméia o autor nos presenteia com “fifrilim”, coisa insignificante (em “O Outro e o Outro”), “letrilhas”, versinhos populares (em “Sota e Barla”), “furta-flor”, o colorido do rosto de uma menina (em “Tresaventura”), “infinilhões”, grande quantidade (em “Estória no. 2”)... 
 
Por que ninguém usa estes termos, tão vívidos, tão intuitivamente verdadeiros?  Talvez porque sua origem literária seja evidente demais.  Os livros do escritor mineiro nos dão às vezes uma sensação constante de desperdício, de um léxico inteiro à disposição do povo, mas este não se sente à vontade para utilizá-lo porque o vê protegido (ou encarcerado) pela aura protetora da “literatura”. 
 
Os poemas de Carlos Drummond estão cheios de palavras cujo sentido e função poética são captados num instante: monstruário, incurioso, tremulargentina, ingaia...  
 
O poeta as inventa ou compõe por uma necessidade de expressão específica: para o assunto daquele poema, o tom de voz que o produz, os códigos verbais implícitos em cada um (erudito, irônico, paródico, etc.).  Talvez sejam palavras tão precisas, tão exatas, que só possam ser usadas uma vez. 
 
Ninguém pode prever se uma palavra vai ser incorporada à língua.  O próprio Dr. Castro Lopes, cujos fracassos mais retumbantes foram citados acima, nos proporcionou “cardápio”, que ainda hoje trava uma luta equilibrada com o francês “menu”.  “Cardápio” é uma palavra que pegou, pelo menos nos restaurantes. Por que?  É difícil saber.  
 
É relativamente mais fácil uma palavra nova se impor no meio mais erudito, no meio científico, quando corresponde à necessidade de encapsular num só termo um conceito novo ou complexo. É uma palavra que já nasce com a intenção de tornar-se propriedade coletiva. 
 
A palavra inventada com fins literários, porém, parece mais presa à personalidade de quem a inventou.  Basta ver a obra de notórios inventores como Lewis Carroll e James Joyce, para perceber que é ínfima a percentagem de palavras suas que chegaram à linguagem do dia a dia.  Talvez o uso desses termos, num contexto ficcional ou poético, as deixe demasiadamente personalizadas, ao passo que o uso “científico” de uma palavra nova a marque como sendo uma palavra impessoal, que pode pertencer a todos. 
 
Um exemplo recente de que tomei conhecimento foi a palavra “contradução” (“contraduction”), proposta pelo escritor Dan Barker, que a explica como um raciocínio feito às avessas, fazendo um efeito parecer a causa e vice-versa. Ele dá dois exemplos: quando estamos num trem parado na estação e vemos o trem ao lado entrando em movimento, temos a sensação de que é nosso vagão que está se deslocando. 
 
O segundo exemplo, mais útil, é o da popular falácia científica de achar que a gravidade e a atmosfera da Terra foram concebidas por alguém para favorecer os seres humanos, quando é mais sensato imaginar que foram os seres humanos que se adaptaram a ambas. É o mesmo raciocínio de quem diz: “Como é sábia a natureza, fazendo os rios passarem bem pelo meio das cidades, justamente onde sua água é mais necessária!...”