Não foi propriamente assim
que aconteceu. Estou apenas traçando uma versão mais aerodinâmica, para
simplificar o relato.
Eu estava num evento
ligado a Bob Dylan, abertura de uma exposição em São Paulo dedicada ao bardo de
Minnesotta. Teve DJ, teve som ao vivo, teve um coquetel. Eu conversava numa
roda de conhecidos, e de repente me vi diante de uma moça simpática, jovem, que
falava de um jeito que eu achei bem interessante. O diálogo era a respeito de
alguma outra coisa, mas a certa altura ela perguntou:
– E você, é fã de Dylan?
– Claro – eu respondi.
– Diga sua música
preferida. Não!... Ninguém tem uma só, todo mundo tem muitas. – Eu já achei
inteligente essa ressalva, e me animei todo. – Diga uma que você gosta.
Puxei de uma cartola
qualquer um coelho aleatório.
– “Desolation Row”.
Os olhos dela se
iluminaram.
– Que maravilha! Eu
também. Deixe ver... você gosta mais das versões antigas tipo Royal Albert Hall
e Dublin, ou das mais recentes, tipo Locarno, Oslo...?
Comigo não tem tempo ruim,
de modo que eu dei um gole da bebida e respondi, na cara de pau:
– Eu acho que eu gosto da
versão original, do disco.
Ela me olhou com um misto
de dó, magnanimidade e irrisão. E disse:
– Ah. Então você não é um
fã. Você é um ouvinte casual.
O país das artes é vizinho
do país das religiões, e o trânsito através de suas fronteiras, em ambas as
direções, é intenso. Às vezes a gente pensa que está num deles, e quando vê,
todo mundo em volta está falando o idioma do outro.
O fã não é alguém que se
limita a gostar, é alguém que desenvolve um culto voraz. Camões dizia, erradamente
ao meu ver, que “transforma-se o amador na coisa amada”. Eu acho que o amador,
e o fã nada mais é que isto, transforma o mundo na coisa amada. Pra onde ele se
vira, só enxerga aquilo.
O fã transforma a coisa
amada num labirinto fractal onde cada detalhe se subdivide e se supermultiplica
em um milhão de outros. Não basta ser fã de (vá lá) Camões. É preciso rastrear
todas as versões que o soneto de Jacó e Labão já teve, é preciso saber na ponta
da língua todos os endereços onde o poeta pendurou seu casaco, é preciso
colecionar memorabilia, é preciso ter uma coleção de perguntas de algibeira
para dinamitar as pretensões dos incautos.
Lembro do saudoso crítico
de cinema André Setaro, de Salvador, meu parceiro etílico e meu contemporâneo,
que assinava críticas na Tribuna da Bahia
quando eu fazia o mesmo, com mais rapidez e menos perspicácia, no Correio da Bahia.
Um dia entro eu num
daqueles velhos cinemas nos arredores do Pelourinho para assistir, se não me
engano, Trama Macabra, o derradeiro
filme de Hitchcock, quando esbarro com Setaro. Cruzei a cortina e encontrei-o
de pé, junto àquele tradicional balcão de metro e meio de altura que protegia a
fila mais afastada da tela. Conversamos ali enquanto iam sendo exibidos o Canal
100 e os trailers. Quando surgiu a ponteira indicativa do filme, falei:
– É o filme agora. Bora
sentar?
Ele me olhou com cara de
fã ofendido e disse apenas:
– Filme de Hitchcock
assiste-se de pé, em sinal de respeito.
E fê-lo. Talvez só o tenha
feito porque sentei poucas filas à frente e o fiquei vigiando com o rabo do
olho, e ele então não teve outro jeito senão manter a pose; mas fê-lo, ora que
diabo.
O fã se confunde muitas
vezes com o colecionador, porque uma coisa conduz à outra com a mesma fluidez com que ser noivo conduz a ser
marido. O colecionador é um cara que casou com uma missão, e muitas vezes essa
missão nem é um ser específico, com cara na foto e nome no cartório; é um mero
conceito abstrato.
Meu pai tinha um amigo que
colecionava qualquer exemplar de qualquer periódico, desde que fosse o “ano 1,
número 1”. De tudo que saía em Campina, Seu Nilo comprava um exemplar e remetia
para esse cidadão, cujo nome minha incúria não guardou para a posteridade. E se
considerarmos o índice de mortalidade infantil das publicações brasileiras, as
literárias em especial, penso nas raridades valiosíssimas que ele terá
amealhado no correr das décadas.
Porque existe um mercado
subterrâneo para alimentar o fã-colecionador. Algum tempo atrás eu estava
bebendo no Amarelinho da Cinelândia, numa mesa grande onde havia um ou dois
amigos e outros caras que conheci na hora. Passou uma garota lindinha, meio
hippie, distribuindo filipetas de shows de rock que ia haver no Teatro Odisséia
e no Circo Voador. Um cara ao meu lado chamou a garota e pediu uma filipeta de
cada e pôs na mesa, junto do pacotinho de amendoim. Estranhei um pouco porque o
cara tinha jeitão de quem gosta de ver shows de Dona Ivone Lara, não do Macaco
Bong.
– Você vai ver esses
shows? – perguntei.
Ele deu um gole do chope,
leu com atenção todas as filipetas, e guardou no bolso da jaqueta, enquanto
respondia:
– Eu não vejo os shows, eu
coleciono isso.
– Você é fã de rock?
– Eu mesmo não – disse. –
Mas conheço fã de rock. No ano passado eu vendi uma filipeta dessa, do primeiro
show dos Paralamas do Sucesso, por cinco mil reais.
Como disse um economista
amador, demanda gera oferta e oferta gera demanda. Um rabisco a carvão feito
por Van Gogh, cujo valor estético roça o zero, é vendido por milhões de dólares
para um fã que vai... expô-lo no Metropolitan? Não, trancá-lo num cofre, junto
com a certeza de possuí-lo.
Diante disso, nós,
“ouvintes casuais” (não, não esqueci, moça, continua encravado, e doendo) temos
apenas que nos recolher à carapaça da nossa ignorância e prosseguir rastejando
no chão desse oceano de possibilidades. Por mais que a gente pense que ama Luís
Buñuel ou The Incredible String Band ou Ellery Queen sempre vai aparecer à
nossa frente um indivíduo blasé perguntando se a gente sabe a marca de talharim
que o ídolo preferia.
Um rapaz estava numa festa
na mansão da família de um amigo de faculdade. Lá pelas tantas, começou a
conversar com a avó do amigo, uma senhora setentona, simpática, boa de papo. Depois
de alguns minutos, a senhora suspirou e disse:
– Mas o que é isso, o
senhor tão jovem, a festa cheia de gente jovem, e eu aqui lhe incomodando... Vá
circular, se divertir.
– Qual nada – acudiu ele
de imediato. – Estou gostando muito de conversar com a senhora.
– Ninguém da família
conversa comigo – confidenciou ela. – Eles dizem que eu sou doida.
– Não é possível. A
senhora, tão lúcida, tão inteligente. Por que eles dizem isso?
– Porque eu gosto muito de
pão-de-ló.
O moço se surpreendeu:
– Pão-de-ló? Mas isso não
tem nada de mais. Eu também adoro pão-de-ló.
Os olhos da madame chamejaram
e ela cravou no braço dele cinco dedos de ferro:
– Então vamos lá em cima
no meu quarto. Eu tenho vinte e cinco malas cheias de pão-de-ló.
Ela era uma fã.
Clap! Clap! Clap! (Braulio, se vc percorresse o Brasil contando essas histórias, com esse viés nas artes e crítica de costumes, eu seria dos que pagaria ingresso pra ouvir vc. Ducaraio, sempre saboroso. Gracias, abrrr!_
ResponderExcluirVocê é um colecionador dê casos Braulio. E um generalista especializado.
ResponderExcluirUm ótimo contador de causos. Sempre paro para ler o que tem para contar o Bráulio Tavares.
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