terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

5154) O eclipse dos amores inconclusos (18.2.2025)




Meu saudoso professor da Escola de Cinema da UCMG, o padre Massote, costumava palestrar longamente sobre os aspectos arquitetônicos do cinema de Michelangelo Antonioni, um dos seus diretores preferidos. Parece estranho, eu sei, um padre católico mineiro gostar de um diretor tão crítico da religião, tão voltado para os dramas eróticos e existenciais de gente rica, burguesa, européia. 
 
Acontece que Massote era acima de tudo um adorador da imagem, e aqui não me refiro à arte sacra: era a imagem cinematográfica mesmo, aquele mundo falso-3D no 2D da tela, aquela Terra plana e vertical, aquele planeta retangular. 
 
Nisto ele seguia uma tradição brasileira, a proximidade filosófica entre a doutrina católica e a fascinação pelo cinema. O cineclubismo nordestino, por exemplo, sempre recebeu muito apoio das dioceses e paróquias locais, inclusive nas épocas da “caça às bruxas”, em que jovens de 18 ou 20 anos podiam ser presos (ou pelo menos intimados a prestar depoimento no quartel) somente porque estavam exibindo Aruanda de Linduarte Noronha. 
 
E havia a tradição dos livros de autores católicos que minha geração lia com aplicação, como os Elementos de Cinestética do Pe. Guido Logger, O Cinema tem Alma? de Henri Agel, Caminhos do Cinema do paraibano José Rafael de Menezes, Noções de Cinema do Irmão Samuel...  
 
Nenhum desses livros nos conduziu ao Seminário, assim como Aruanda não nos conduziu às Ligas Camponesas. Por que? Talvez porque nossa geração (ou pelo menos a turma com quem eu convivia mais) tivesse sido tocada mais pela imagem do que pela mensagem. 


 
Revi agora O Eclipse (1962) de Antonioni, que não via há mais de vinte anos. É um filme belo, frio, luminoso como um bisturi. Dizem que Antonioni celebrava (criticava? lamentava?) o vazio emocional de seus personagens de classe média alta, e para conseguir melhor esse objetivo drenava as emoções da platéia, impedindo que ela se envolvesse, se identificasse, sofresse, risse, ficasse comovida ou assustada. 
 
Neste sentido, o cineasta de Deserto Vermelho talvez fosse o mais brechtiano dos diretores, não fosse pelo fato de que, ao contrário de Brecht, não oferecia um substituto nítido para a catarse emotiva – não propunha um tipo qualquer de iluminação da consciência. Nada disso. Na maioria dos filmes dele, e em O Eclipse especialmente, vemos personagens que parecem ter olhado para o abismo e deixado lá tudo que traziam dentro de si. Voltaram “só a casca”. 
 
Ninguém ilustrou melhor esse vazio do que Mônica Vitti, que foi casada com o diretor nesse período, e apareceu para o mundo em quatro filmes sucessivos dirigidos por ele: A Aventura (1959), A Noite (1960), O Eclipse (1962) e Deserto Vermelho (1964). 
 
Os minutos iniciais do filme são uma amostra dos contrastes que ele malabariza. Começam os letreiros (o filme é em preto-e-branco) ao som de uma cançãozinha-pop estridente e banal. Quando surge o letreiro “Música: Giovanni Fusco”, começa a trilha sonora de verdade, atonal, dissonante, ora ruidosa, ora minimalista. Uma música “de clima”, um clima de expectativa e estranheza. 
 
Essas duas referências acompanham o filme todo. Podemos dizer que está dividindo entre a estridência formal da vida moderna e a melancolia desamparada dos que não conseguem se integrar a ela. 



 
Um apartamento, paredes cobertas de pinturas, um ventilador ligado. Silêncio. Um homem de camisa branca (Francisco Rabal, “Riccardo”), uma mulher de vestido preto (Monica Vitti, “Vittoria”). A câmera acompanha a mulher enquanto ela vagueia pela sala, mexe nos objetos. O homem está sentado, olhando para ela. O diálogo que começa entre os dois é frouxo, desinteressado, vê-se que ela não quer mais nada com ele, mas ele ainda insiste, sem forçar. Há copos de bebida, cinzeiros cheios. Vê-se que passaram a noite acordados, discutindo. Sem violência, mas naquela areia-movediça mental em que quando mais se conversa menos se entende. 


 
Ela se despede, volta a pé para casa, e aí vemos que os dois estão num bairro de edifícios modernos com vastos espaços vazios entre eles. É a área residencial e de escritórios chamada “EUR”, espólio do fascismo, e, na época do filme, talvez um sintoma de que a Roma milenar estava mergulhando de cabeça nas novidades americanizadas do pós-guerra (uma constante no cinema italiano dos anos 1940-50-60). 
 
A certa altura surge o que é talvez a cena mais polêmica do filme: um número de dança blackface. Vittoria e uma amiga visitam outra mulher, que mora no Quênia e tem opiniões arrepiantemente racistas sobre os africanos. Este seu apartamento em Roma é coberto por objetos nativos, fotos, etc. E então, “do nada”, Vittoria se pinta de preto, veste um traje ficcionalmente africano e executa uma dança selvagem. Como disse um crítico da época: “Passarão mil anos e Mussolini continuará invadindo a Etiópia”. 




Nos planos externos dessa parte do filme Antonioni se multiplica (com o fotógrafo Gianni di Venanzo) em ângulos de pessoas perdidas numa paisagem de superfícies vazias e enormes blocos de concreto. Essas sequências lembram Brasília, lembram o sonho modernista de eliminar tudo que seja rugosidade, dobras, capilaridade, proliferação biológica. Lembram o poema de João Cabral de Melo Neto:
 
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

 

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

 

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

 

A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Em O Engenheiro, 1942-45)
 
 


Essa arquitetura (que no filme cumpre um papel modernista, independente de seu estilo) contrasta com as sequências que trarão o namoro seguinte de Vittoria, com o jovem workaholic Piero (Alain Delon).  Nas cenas no centro velho de Roma, na Bolsa de Valores, tudo é o contrário desse episódio inicial. Os velhos prédios carcomidos, escritórios desmazelados, cheios de tralha funcional (papel, máquinas de escrever, pastas, anotações...) e na Bolsa propriamente dita o berreiro frenético dos investidores.
 
Nas sequências da Bolsa e sua gritaria atordoante, Antonioni cria uma coreografia circular de homens possessos, e faz Alain Delon rodear esse círculo, rompê-lo, entrar, sair, numa dança precisa. (Conta-se que o diretor escolheu um investidor real e fez o ator copiar-lhe os mínimos gestos.)




Delon está no auge de sua versatilidade física, saltando, correndo, esbarrando, gesticulando com veemência. A certa altura, Vittoria pergunta, agastada: “Você não pára?!...” Ele é um personagem totalmente moderno, um yuppie (a palavra não existia em 1962) jovem, obcecado em fazer muito dinheiro no menor tempo possível, o cara que não pára, não relaxa, só pensa em dinheiro, mal escuta o que lhe dizem... 
 
No filme, ele é o contrário de Monica Vitti, que aperfeiçoou aqui a sua “persona” frágil, desamparada, hesitante, parecendo consumida por algo que não pode revelar. Aquilo que o crítico  Andrew Sarris chamou de “antoniennui” (“antedioni”?...). Ela exprime melhor que ninguém aquela instabilidade que Antonioni imprime a alguns personagens, que parecem (no dizer de David Thomson) “epidermes frágeis que mal conseguem roçar umas nas outras sem se ferir”. 
 
Nesses filmes Antonioni/Vitti renasce o mito do diretor que usa a câmera para acariciar o corpo da mulher que o inspira, como fizeram Jean-Luc Godard com Anna Karina e Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Não importa se o cineasta quer mostrar um mundo burguês emocionalmente estéril ou um vibrante mundo moderno em que tudo parece possível: entre ele e o mundo se interpõe aquela presença carnal que arrasta a câmera consigo. 
 
O Eclipse poderia também ser o filme de abertura de um hipotético festival intitulado “Amores Inconclusos”, e que incluiria também In the Mood for Love de Wong Kar Wai, Vestígios do Dia de James Ivory, Lost in Translation de Sofia Coppola, Nunca Te Vi, Sempre Te Amei de David Jones e certamente muitos outros.


Dizia-se de Antonioni ser o cineasta da incomunicabilidade, do desencontro. Ele é também o cineasta do personagem humano perdido na paisagem urbana, uma paisagem não propriamente ameaçadora ou hostil (como nos filmes do Expressionismo Alemão), mas indiferente. Uma proliferação de edifícios em multiplicação constante e que parecem expulsar de seu projeto esses seres humanos incômodos, que vagueiam como zumbis. 
 
O mundo modernizou-se tão depressa e tão cruelmente que nos deixou para trás.  Minto: nos leva consigo, mas nos leva fora dele, como astronautas que saíram da espaçonave para dar uma volta e depois não conseguiram mais entrar, ficaram pendurados no vácuo, sendo arrastados espaço afora, mas fora do mundo. 
 
Um objetivo aparentemente conseguido na famosa sequência final de O Eclipse, uma série de imagens desconexas mostrando os ambientes por onde Vittoria e Piero passaram, como se os dois tivessem finalmente deixado de existir e a Cidade pudesse ser somente a Cidade.