domingo, 24 de novembro de 2013

3352) Mente binária (24.11.2013)




Eu estava lendo um saite literário, com advertências e conselhos. Num certo post, o autor dizia algo assim: “Na ficção, o personagem é essencial. Ele tem que ter espessura, credibilidade. Se o personagem não parece uma pessoa – dentro das limitações de um texto, claro – a história não se sustenta”. O primeiro comentário do saite dizia: “Falso. E os personagens de Kafka, de Beckett? Que espessura eles têm? Parecem com quem? Isso que você fala é um absurdo.” A crítica do leitor tem uma certa razão, porque os personagens de Kafka e Beckett têm tudo menos essa “espessura” realista que o autor do saite reivindicava. Mas o que ele diz exprime, sim, uma verdade. Só que uma verdade parcial. E é sobre isto, não sobre literatura, que quero falar.

A mente de muitas pessoas funciona de modo binário, preto ou branco, sim ou não, 100% ou 0%. Acho que na infância elas assimilaram o conceito de “verdade” e “mentira”, e daí em diante se fixaram na atitude mental de considerar que qualquer afirmativa ou é cem por cento verdadeira ou cem por cento falsa. Eu chamaria a isso A Crispação Aristotélica – me parece que foi Aristóteles quem estabeleceu o conceito de que “se A é A, então A não é B”... algo assim.

Na discussão acima, a afirmação sobre a necessidade de verossimilhança dos personagens literários é uma verdade. Não no sentido científico de uma verdade factual, que pode ser objetivamente comprovada quantas vezes for preciso, mas no sentido de uma “verdade cultural”, de um conceito que faz parte da nossa cultura literária. É uma verdade parcial (digamos), que convive com a verdade parcial oposta. Anna Karenina e Joseph K podem coexistir no mesmo universo cultural. São verdades opostas, mas verdadeiras.

A imensa maioria das generalizações que a gente diz são verdades parciais. E a toda hora aparece um Leitor Binário, um Crispado Aristotélico para dizer que nossa afirmação é falsa, porque ele acaba de descobrir algumas exceções a ela. Qualquer afirmação vaga como, digamos, “os brasileiros gostam de futebol” é imediatamente denunciada, porque (dizem eles, triunfantes) nem todo brasileiro gosta de futebol. Ora, “os brasileiros” não significa (e é isso que ele não entende) “todos os brasileiros”. Significa “um número significativo de brasileiros”. É uma verdade estatística, cinzenta, difusa, como as da Física Subatômica.

E é a existência de gente assim, catadoras de lêndeas verbais, que obriga o redator a atulhar seus textos com a repetição de expressões como “na maioria dos casos”, “quase sempre”, “cerca de”, “aproximadamente”, “em torno de”, “grande parte”... Ressalvas que um leitor mais lúcido faz sem precisar de instruções.