sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
1677) Se beber, não dirija (27.7.2008)
As estatísticas sobre a recém-promulgada Lei Seca no trânsito têm sido as melhores possíveis. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou uma complicada estatística ao fim da qual anunciava que a redução de mortes no trânsito nas últimas semanas foi de 57%. Eu considero isto um fato da maior importância. O cálculo foi feito comparando os fins de semana paulistanos (5a a domingo) antes e depois da vigência da lei. Segundo a Folha Online, “a soma dos 12 dias dos últimos três finais de semana do mês de junho é de 35 mortes, numa média de 2,91 mortes/ao dia. O cálculo dos outros oito dias (26 a 29 de junho, e de 3 a 6 de julho), dá um total de 10 mortes, numa razão de 1,25 mortes/ao dia. A diferença dessas duas médias -- de 2,91 a 1,25 -- é que aponta a redução de 57%.”
Note-se que a lei não proíbe o cara nem de beber nem de dirigir. Apenas estabelece uma penalidade para quem for apanhado fazendo as duas coisas juntas. Isto deveria valer para as drogas em geral. Se o sujeito quer usar, que use, mas qualquer bobagem que ele fizesse “sob o efeito” deveria ser punida com muito maior severidade, se fosse visível uma relação entre a droga e a bobagem. Como é o caso de bebida e carro. O álcool perturba a capacidade de guiar, mesmo que pessoas diferentes reajam ao álcool com maior ou menor resistência.
Temos a tendência e encarar as coisas com bom-humor, principalmente no que se refere ao nosso lazer e à nossa diversão. O nosso folclore urbano de mesa de bar é cheio de histórias divertidas sobre bêbados ao volante, como aquela do carro que se espatifa num poste, os bombeiros retiram dois bêbados das “ferragens retorcidas”, perguntam qual dos dois vinha dirigindo e um deles responde: “Não sei, vínhamos ambos no banco de trás”.
Parece brincadeira? Não é assim que pensam os leitores dos jornais da cidadezinha canadense de Abbotsford, onde recentemente dois homens foram presos porque dirigiam embriagados. O problema é que vinham os dois dirigindo o mesmo carro. Harvey Miller, de 43 anos, não tem as pernas, e vinha manobrando o volante, enquanto seu amigo Edwin Marzinske, de 56 anos, pisava nos pedais. O comportamento errático do veículo atraiu os guardas de trânsito, que constataram o estado de embriaguez dos dois motoristas. Ambos recusaram-se a receber a multa. “Eu não vinha dirigindo, pois não posso frear nem acelerar,” dizia Miller, e seu colega afirmava: “Eu não vinha dirigindo, nem toquei no volante!” O jornal não explica qual a punição salomônica que os dois devem ter sofrido.
O que não deixa de me lembrar outra história, provavelmente apócrifa, sobre os tremendos pileques que Chico Buarque e Tom Jobim costumavam tomar juntos. Num certo amanhecer, encerrando uma carraspana homérica, os dois voltavam de carro para Ipanema quando Chico advertiu: “Tom, vai mais devagar, a gente bebeu bastante”. E Tom respondeu: “Quem está dirigindo é você”.
1676) A elite invisível (26.7.2008)
(Ladder of Heaven de John Klimakos)
Quando a vida social é vista como uma escada, procuramos escalar os degraus de cima, e fugir aos de baixo. Ao percebermos as diferenças sociais, muda o uso de verbos como “subir” ou “descer”. Subir é bom, descer é uma catástrofe, porque desde cedo nos acostumam a ver a sociedade como uma pirâmide: um Topo onde está uma elite que tem tudo, uma Zona Média em que estamos nós, e uma Base onde estão aqueles que, na melhor das hipóteses, conseguem arranjar um emprego que lhes suga 12 a 14 horas por dia, mas evita que morram de fome. Quando nos ensinam a ver o mundo dessa forma, não há dúvida de que somos tomados de um desejo incoercível de subir. Talvez nem mesmo pela sedução dos paraísos de consumo e de hedonismo que possam nos aguardar lá em cima, mas pelo mero terror de ficarmos presos a um “aí em baixo” que para nós, da classe média, é ameaçadoramente próximo.
“Subir” tem dois objetivos: reconhecimento social e recursos financeiros, os populares “Fama e Fortuna”. São diferentes mas interligados, quanto mais a gente consegue de um mais fácil fica conseguir do outro. Algumas pessoas se contentam com um. Muitos artistas, por exemplo, passam a vida inteira numa pindaíba de dar dó, mas são felizes porque concedem entrevistas diárias, são chamados para animar bailes de formatura ou desfiles de modas, dão autógrafos no supermercado... E outras pessoas se contentam com a fortuna, como é o caso dos grandes banqueiros e investidores cujo nome sempre aparece nas listas dos “Cem Mais Ricos” e cuja foto nunca sai no jornal, que eles não são bestas.
Eu reconheço a existência e o peso dessa concepção verticalista da sociedade, mas questiono frontalmente seus critérios. Nunca tive como objetivo a escalada social. Nunca tive vontade de sair da classe média onde nasci. Não só nunca procurei ficar rico, como sempre evitei, cuidadosamente, qualquer atividade que pudesse me levar nessa direção. Nunca quis ser publicitário, por exemplo, para desconsolo de vários amigos que me profetizavam um futuro brilhante, tostando-me em Ibiza ou Aruba, tomando daiquiris, rodeado de havaianas dançando hula-hula. Não quis. Não combino.
Acho que o nosso objetivo (se não de todos, pelo menos dos sensatos) deveria ser uma ascensão, mas não uma ascensão rumo ao topo da pirâmide social, mas rumo a uma Elite. Nos seus textos em prosa, Fernando Pessoa se refere à existência de uma elite de seres humanos superiores, que possuem saber mas não o ostentam, que possuem poder mas só o exercem submetendo-o ao equilíbrio. Essa elite não consta de gênios, reis ou banqueiros. É formada por pessoas de ocupações modestas: escriturários, alfaiates, donas de casa, mestre-escolas, tipógrafos. Não são intelectuais: são sábios. Não são aristocratas: sua nobreza é a do espírito. São essas pessoas invisíveis o esteio de sabedoria e ética que mantém a humanidade a salvo de si própria. É a essa Elite que espero um dia pertencer.
1675) Cinema de animação (25.7.2008)
Tenho ido ao Anima Mundi, o festival internacional de filmes de animação que é uma das melhores coisas do Rio. E me ponho a pensar sobre questões de estilo. Digamos uma história assim: um homem vive sozinho num quarto de pensão. Todo dia, ao ir para o trabalho, ele joga uma moeda no chapéu de um mendigo na calçada. À noite, debruça-se na janela e fica olhando o apartamento no prédio em frente, onde, em salas e varandas iluminadas, uma família feliz se diverte. Ele fica cheio de inveja. Um dia puxa o revólver e, à distância, mata com um tiro o dono do apartamento. No dia seguinte, ao ir para o trabalho, não vê o mendigo no lugar habitual. Outro mendigo, ao lado, diz: “Morreu ontem de uma bala perdida”.
Uma historinha talvez boba; um fiapo de história, na verdade. Mas suponhamos que minha historinha fosse filmada por alguns animadores fictícios. O diretor “A” talvez optasse por mostrar personagens e ambientes através de silhuetas, traços rápidos sobre fundo branco, fazendo a transição entre uma forma e outra com os traços se libertando e se recombinando: a casa se desmonta e faz a rua, as linhas da calçada se arredondam e formam o chapéu do mendigo, tudo fluindo. Haveria fusões entre o homem solitário à janela e a janela oposta, cheia de movimento e música... Um solo de violino, ininterrupto, seria a trilha sonora.
O mesmo argumento seria usado pelo diretor “B” para um filme com bonecos de massinha. Ruas e casas pintadas em corres berrantes. Bonecos atarracados, hiperrealistas. O quarto da pensão um cubo com 30 cm de altura. Na hora do tiro, ele faria (como? não sei) a pequena bola de massinha se deslocar cruzando a rua até se espatifar em fragmentos no peito do boneco...
O diretor “C” poderia optar por animação em aquarelas, carregando no contraste entre o quarto sombrio do protagonista, a rua em tons mais abertos, com pastéis suaves, e o apartamento em festa usando técnicas mistas com pururinas ou lantejoulas misturadas à tinta. O homem atingido pela bala teria suas cores diluídas em água, até ficar totalmente preto-e-branco e imóvel.
O diretor “D” escolheria uma abordagem kafkeana, sombria, “noir”, cenários pintados a carvão e sobre eles fotografias de atores, recortadas e animadas com saltos bruscos e descontinuidades, uma trilha sonora com ruídos ásperos, guinchos eletrônicos, “charlestons” dos anos 1920...
Em nenhuma arte se vê a diferença entre “história” e “estilo” com tanta nitidez como na animação. O estilo é indizível. Não se pode escrever um roteiro dizendo coisas como “...nesse momento as cores se misturam, os traços revoluteiam uns sobre os outros, a imagem adquire uma textura de pergaminho antigo sobre o qual deslizam tatuagens marrons..” Isso tudo é estilo, a beleza visual das superfícies, é música para os olhos. Na literatura, estilo é criar com palavras algo que produza um efeito parecido, e que tem muito pouco a ver com a história contada.
1674) Antropologia do celular (24.7.2008)
Jan Chipchase é um londrino de 38 anos, formado em Economia, que mora atualmente no Japão e trabalha para a Nokia, fazendo um trabalho que a imprensa chama de “antropologia das corporações”, mas que ele, por não ser propriamente um antropólogo, prefere chamar de “pesquisa de design”. Basicamente, o que ele faz é viajar pelo mundo estudando as novas maneiras de utilizar os telefones celulares.
Já falei aqui que a tal “Revolução do Microcomputador” é coisa do passado. Sou da geração que quando viu um computador (CPU + monitor + teclado + impressora) em cima de uma mesa, para ser usado apenas por mim, me ajoelhei no chão erguendo e abaixando os braços, e salmodiando: “Caramuru!... Caramuru!...” Não parecia haver milagre maior. O milagre maior veio logo depois, quando vi o primeiro notebook – um computador inteiro (OK, menos a impressora!) do tamanho de um livro. OK, não qualquer livro – do tamanho do meu exemplar da Beatles Anthology. Mas era outro deslumbramento.
Mal sabia eu que a próxima virada de esquina nos traria o Grande Milagre atual: o celular. Concebido para ser apenas um telefone portátil, virou uma maquininha multiuso que inclui telefone, câmera fotográfica, filmadora, agenda eletrônica, calculadora, processador de texto, acessador de Internet... Onde iremos parar?
Jan Chipchase diz que o público usuário de celular se expande em todas as direções. Há populações analfabetas aprendendo a usá-lo, e a Nokia está desenvolvendo modelos que facilitam o uso a quem não sabe ler, embora tais modelos não sejam “marquetados” dessa forma, para não criar um estigma e afastar os usuários. Na África é comum um único aparelho servir para uma família inteira, e foi desenvolvido um sistema que permite esse aparelho guardar várias identidades, cada qual com sua agenda telefônica, mantendo a privacidade de cada usuário.
Em Uganda, diz Jan, o celular serve à população pobre como um meio de transferência de dinheiro. Digamos que Fulano está na capital e precisa transferir 50 dólares para sua irmã, que mora num vilarejo onde não há bancos. Ele vai no shopping, compra 50 dólares em crédito num cartão pré-pago, e liga para o cara que mantém no vilarejo um quiosque de celulares pré-pagos para uso da população. Ele informa ao cara o número do cartão pré-pago, o cara carrega o valor num dos seus celulares, e entrega 50 dólares à irmã do outro.
Em comunidades pobres onde não existem luxos como nome de rua e número de casa, diz ele, é comum as pessoas escreverem sobre a porta de entrada o número de seus celulares, o qual passa a ser o segundo meio mais importante de identificação, depois do nome próprio. Diz Jan (cujo blog, aliás, fica em: http://www.janchipchase.com/): “Qualquer interferência pirata para melhorar o uso prático de um celular, criada em qualquer parte do mundo na segunda-feira, na sexta-feira já estará sendo aplicada nas ruas de Gana”. Ou de Campina.
1673) A palavra Eu (23.7.2008)
As palavras e as frases que usamos determinam nosso modo de pensar. Não é uma relação mecânica de causa-e-efeito, mas ninguém pode negar que acontece.
Tanto é verdade que as livrarias estão cheias de livros de auto-ajuda ensinando a gente a dizer “estou com um desafio criativo” em vez de “problema sério”, porque o modo como a gente verbaliza uma situação mobiliza de maneira diferente nossa energia psíquica.
Toda sintaxe é uma forma de poder.
William S. Burroughs, autor de Almoço Nu e Junkie (ambos traduzidos em 2005 pela Ediouro), foi um escritor obcecado com os processos de dominação mental e de exercício do poder que existem por trás de nosso discurso verbal.
Burroughs é conhecido por livros onde há um tratamento franco e direto do homossexualismo e do uso de drogas, o que já lhe valeu processos, livros proibidos pela censura, etc.
Também é um dos principais expoentes da Geração Beat (juntamente com Jack Kerouac e Allen Ginsberg) e é considerado por muitos (por mim, principalmente) como um dos grandes escritores de ficção científica situados fora do “ambiente” da FC.
Diz Burroughs, em seu livro The Job:
“O verbo TO BE poderia muito bem ser eliminado de todas as línguas. A identidade que afirma “é” sempre traz consigo a implicação disto e de nada mais, traz consigo o sinal de uma condição permanente. Do mesmo modo, o artigo “THE” contém a implicação de algo único: o Deus, o Universo, o caminho, o certo, o errado. Esse artigo deveria ser eliminado e substituído sempre pelo artigo “A”: um universo, um caminho, etc. (...) O conceito de “OR” também deveria ser eliminado e substituído pelo conceito de “AND”.
Isto me lembra umas teorias de viés anarquista nos anos 1970, em que éramos aconselhados a não dizer “o Governo” e sim “a Administração”, porque “governo” passa uma idéia de controle, de comando, e “administração” revela o que os governantes de fato são: pessoas encarregadas de administrar bens alheios (no caso, do Povo).
Era o mesmo pessoal que, em Salvador, nessa época, completava com “ss” sutis as pichações de muro que diziam “Abaixo a Ditadura!”, fazendo: “Abaixo as Ditaduras!”, para nos lembrar que nosso problema não era apenas a ditadura de direita que vigorava no Brasil, mas todas as ditaduras do mundo.
Burroughs também dizia:
“Seja lá o que você for, você não é a palavra EU, assim como não é aquele conjunto de informações que estão impressas no seu passaporte”.
Esta é uma afirmação muito próxima do que dizia Fernando Pessoa sobre a multiplicidade e divisibilidade do Eu, que é heterogêneo, contraditório.
Burroughs e Pessoa são dois escritores que foram muito fundo na investigação deste mais elusivo dos conceitos, o da identidade pessoal, identidade psicológica. A vida e obra dos dois são sintomas da fragmentação e do estranhamento que são características essenciais da arte do século 20. É um momento da História em que o Eu se estilhaçou.
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