sexta-feira, 8 de agosto de 2008

0500) O concerto mais longo do mundo (26.10.2004)



(o saite do concerto)

O concerto mais longo do mundo está acontecendo há mais de três anos numa igreja abandonada da cidade alemã de Halberstadt, e se tudo correr bem deverá se encerrar dentro de mais 636 anos. Se vocês acham que a música de Philip Glass é monótona e repetitiva, deviam ouvir esta. Em julho passado, os técnicos encarregados de manipular o órgão especialmente criado para esta performance fizeram a última mudança, adicionando mais duas notas ao Sol Sustenido, Ré e Sol Sustenido que vinham sendo emitidos continuamente desde fevereiro de 2003.

Quando eu disser o nome do compositor todo mundo vai matar a charada. Sim, é ele mesmo, John Cage, o compositor de vanguarda que entre outras aparentes excentricidades tem uma peça intitulada “4 minutos e 33 segundos de silêncio”, a qual consiste exatamente nisto. Cage, falecido em 1992, havia escrito esta nova peça com o título “Organ2 / ASLSP” (“Órgão ao quadrado: tão devagar quanto possível”). A expressão “tão devagar quanto possível” é aberta a interpretações, claro. O grupo de musicólogos que decidiu homenagear o compositor acabou fixando em 639 anos a duração total por ser esta a idade do antigo órgão da igreja de Halberstadt. A execução, portanto, deverá ser concluída por volta do ano 2640. O início da peça musical constou de um ano e meio de silêncio, e as primeiras notas só começaram a ser tocadas em fevereiro de 2003. A próxima mudança prevista é para março de 2006, quando duas das notas atuais pararão de ser tocadas.

Diante de uma obra desse tipo, o sujeito só pode mesmo é espernear ou filosofar. Espernear significa dizer que há crianças morrendo no Haiti e no Sudão, ou, se isto não comove mais ninguém, que há músicos desempregados na própria Alemanha, e os 246 mil dólares que são o custo total do concerto poderiam ter uma “contrapartida social” mais palpável.

Filosofar significa encolher os ombros. Gasta-se mil vezes mais por aí com coisas muito mais irrelevantes. Um concerto como este equivale, em escala, a uma catedral gótica, como a de Colônia, que levou 632 anos para ficar pronta. Ou a Bíblia, que levou milênios desde o primeiro rascunho do Pentateuco até a Vulgata de São Jerônimo. Na era do consumo voraz e do efêmero obrigatório, é reconfortante sentir a nossa mente elastecer-se a ponto de abranger a simples idéia de um tal concerto, de uma música que leva 600 anos para ser tocada. Mais do que um concerto de música, o “Organ2 / ASLSP” é um breque filosófico neste tobogã de nossa cultura rumo ao Presente Infinitesimal.

Por outro lado, diz a imprensa que cerca de 10 mil turistas visitaram a cidade entre abril e setembro de 2003, quando as três primeiras notas já estavam sendo tocadas. Vamos colocar então uma média de 20 mil turistas por ano, o que nos daria ao fim do concerto 12 milhões, 780 mil espectadores. Meu amigo! É mais gente do que o da última excursão do U-2. Quem foi que disse que John Cage não é pop?!




0499) O sol e a chuva (24.10.2004)



Alguns dias atrás falei aqui sobre a luz e a treva, e a injustiça de se atribuírem valores absolutos a cada uma (a luz como algo necessariamente bom, a treva uma coisa má). 

Outra parelha dessas que sempre me chamou a atenção foi o sol e a chuva. Qualquer nordestino, por exemplo, sabe que o sol é um mal necessário. Sem ele seria impossível a vida na terra, mas o problema é que com ele a situação não melhora tanto assim. 

Ouçam o Cancioneiro Nordestino de A a Z, meus camaradinhas, para vocês verem como o sol nos provoca medo, ou um respeito misturado com repulsa, uma mágoa que não tem perdão que cure. 

“No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra...” 

“Meu Deus, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho...” 

E a chuva? Ave Maria! Chuva é festa, é alegria, é banho de barreiro, é menino sapateando em poça de lama, é o véio mais a véia tomando banho na bica... Chuva traz as coisas boas da vida.

Aí a gente dá um pulo pro Rio de Janeiro, e tudo muda de figura. Chuva aqui é palavrão, e o sol é a panacéia universal, o remédio que cura todos os males. A indagação mais ansiosamente murmurada pelos cariocas, dia após dia, ano após ano, é: “Será que vai dar praia?...” – enquanto os olhos súplices se voltam para o céu, buscando o sol com a mesma ansiedade com que os sertanejos buscam as nuvens grossas e cinzentas que podem salvar sua vida. 

E dêem uma olhada no Cancioneiro Carioca, desde o samba até o rock circo-voador e a bossa-nova. “Fim da tempestade, o sol nascerá...” “Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol...” Que sertanejo diria à sua amada uma heresia destas proporções?

Mas isto não é tudo. Bote o passaporte no bolso e vamos dar um pulo maior, até a Inglaterra. 

O Cancioneiro Beatle também está cheio de referências ao sol e à chuva. 

“Pois amanhã pode chover, então... eu seguirei o sol.” 

“Aí vem o sol, e eu digo que está tudo bem...” 

“Eu preciso rir, e quando o sol aparece eu tenho um motivo para rir... Bom dia, raio de sol...” 

Meu amigo!... Que sertanejo no mundo pronunciaria semelhante absurdo?!

Na verdade, isto mostra que em termos de simbolismo poético nunca se tem uma solução única, ou mesmo uma solução sim-ou-não. As soluções poéticas são múltiplas, e mesmo quando coincidem, pode ser por motivos diferentes. 

Tanto cariocas quanto londrinos amam o sol e abominam a chuva – mas os dois vivem em cidades de clima totalmente oposto. Em Londres, o normal é o dia nublado e chuvoso, e o dia de sol é uma festa da Natureza. No Rio, o sol é um direito civil, um piso mínimo de liberdade e alegria a que todos têm direito, e um dia sem ele é como um dia passado na cadeia.

Não há soluções poéticas óbvias, ou, pelo menos, sempre é possível fugir ao óbvio, desviar-se do clichê, recusar a enganadora facilidade do que já foi dito e repetido. Razão, como sempre, tinha John Lennon, quando dizia: 

“Sento num jardim inglês, esperando o sol, e se o sol não vier eu me bronzearei na chuva inglesa.”






0498) Um carro-bomba por dia (23.10.2004)



O escritor V. S. Naipaul, ganhador do Prêmio Nobel há poucos anos, afirmou numa entrevista recente que a guerra religiosa é uma realidade do mundo atual e que não se pode fugir a ela. Disse ele que alguns países promovem esse tipo de guerra, e que é necessário destruí-los. O repórter perguntou se ele se referia, por exemplo, à Arábia Saudita, e ele concordou. Perguntado sobre o Irã, concordou também. Perguntado sobre o Iraque, disse: “É bem claro que aquele não é um lugar onde deveriam ter ido.” Os comentaristas do saite “The Literary Saloon”, onde a entrevista é citada, dizem: “Vejam só, até um sujeito com esse tipo de visão acha que não foi uma boa idéia invadir o Iraque.”

Os norte-americanos já perderam mais de mil soldados no Iraque, a grande maioria deles depois que George W. Bush declarou em alto e bom som que a guerra tinha acabado. Explode um carro-bomba por dia em Bagdá, uma cidade um pouco menor que o Rio de Janeiro. E os alvos não são sequer os americanos: são os iraquianos acusados de colaborar com os invasores, alistando-se na polícia. Isto parece dar razão àqueles que dizem que Saddam Hussein era um cachorro-grande que mantinha intimidados os cachorros-pequenos. Os EUA o derrubaram, e agora não sabem o que fazer com tantos cachorros-pequenos à solta, mordendo-se uns aos outros.

Saddam se equilibrava no poder sabe Deus como. Eu nunca imaginei que caísse com tanta facilidade (nem eu nem ninguém). Depois do fim da guerra, vi no Canal GNT um especial antigo sobre o Iraque em que era entrevistado um iraquiano exilado, que ao que parece tinha trabalhado no Serviço de Informações americano. Perguntado como seria possível derrubar Saddam, ele dizia: “Não percam tempo. Invadam o país, e vão direto para Bagdá. Se os americanos entrarem em Bagdá, Saddam vem abaixo. Ele não tem sustentação popular.” Não deu outra.

O que aconteceu no Iraque se parece com o jogo Coréia x Portugal na Copa de 1966. Embalada por alguns bons resultados, a Coréia entrou em campo na ponta dos cascos e em poucos minutos estava ganhando de 3x0. Mas não tinha time para sustentar esse placar. Portugal, mais maduro, foi comendo pelas beiras e venceu o jogo por 5x3. Mal comparando, é o que os iraquianos de diferentes facções estão fazendo com os EUA, que ganharam a invasão mas estão perdendo a ocupação. Não há tropas suficientes, não há moral suficiente nas tropas disponíveis, não há um plano. Os americanos precisaram perder 55 mil soldados no Vietnam até se convencerem de que ficar lá não era uma boa idéia. O pior é reconhecer que, se perderem 20 ou 30 mil no Iraque e caírem fora (o que duvido), o país vai virar um ninho de cobras. Isto quer dizer que Saddam era uma coisa positiva? Não, amigos, isto quer dizer que o sentido da existência humana neste mundo é algo muito tênue, e quando tiros começam a ser disparados é bem possível que a lógica vá pro brejo e o absurdo, finalmente, prevaleça.

0497) A morte no cinema (22.10.2004)


("O Manto Sagrado")

Meu primeiro contato com uma morte de verdade no cinema foi num faroeste que contava a vida de Jesse James. É claro que àquela altura eu já tinha visto centenas de índios e de bandidos sendo abatidos a tiros, mas, como sabemos, essas mortes não contam. São mortes cenográficas, um mero telão-de-fundo para as aventuras e façanhas dos mocinhos. No tal filme, porém, levei um choque. No fim, depois de muitos tiroteios e cavalgadas, Jesse James está mais ou menos aposentado, e recebe umas visitas em casa. A certa altura ele se levanta para ajeitar um quadro na parede, ou para pegar alguma coisa num armário. O visitante, em visível desobediência às regras básicas da dramaturgia, puxa o revólver e o enche de tiros pelas costas. Jesse James morre, e o filme acaba.

Me consolei um pouco quando fiquei sabendo que foi assim na vida real, mas uma pulga instalou-se atrás da minha orelha. E voltou a morder com toda força quando fui ver Psicose de Hitchcock, que talvez seja o primeiro caso na História do Cinema em que a estrela principal morre com 20 minutos de filme. Saber que o filme continuaria até o fim sem a presença de Janet Leigh me pareceu tão injusto quanto saber que o mundo continuaria um dia sem a minha.

Hesito em listar aqui a morte de Marcelino Pão e Vinho – primeiro porque não é bem uma morte, e sim uma subida aos céus nos braços de Cristo; segundo, porque vi o filme quando tinha aquela mesma idade, e minha identificação com o personagem era tão forte que qualquer julgamento fica necessariamente prejudicado. Mas poucos anos depois marejei os olhos quando Alain Delon morre num duelo em Christine (deixando Romy Schneider inconsolável). Para mim, eram dois adultos que viviam num mundo de emoções inacessíveis. O que me apavorava era descobrir que o Final Feliz não era uma Lei da Natureza, e sim um capricho ocasional dos produtores cinematográficos. Nenhuma felicidade estava garantida, nem mesmo a fictícia: eles, os Personagens, eram tão mortais quanto nós. O que me pareceu, pela lógica arrevesada que vigora na cabeça dos escritores, uma injustiça ainda maior.

Certas mortes no cinema nos abalam porque acreditávamos que ali, pelo menos, era um território onde o “The End” não era um fim, e sim uma porta aberta para a eternidade. No mundo que víamos através do écran dourado ninguém morria, ou pelo menos ninguém que importasse. Por isto ainda me lembro da sensação de abismo que experimentei na cena final de O Manto Sagrado, quando Richard Burton entrega a alguém o manto púrpura de Cristo e, de mãos dadas com Jean Simmons, marcha na direção dos portões que se escancaram para a arena, onde os dois serão devorados pelos leões. A memória emocional que guardo desse momento pode ser assim transcrita: “Mas é assim que vai acabar? Tanta luta, tanta esperança, e no fim a gente vai morrer?” Vai. E é melhor ficar sabendo aos dez anos de idade, porque depois a porrada vai ser maior ainda.