segunda-feira, 6 de maio de 2024

5059) O falatório nordestino (6.5.2024)




(Corbiniano Lins, "Monumento aos Pioneiros", Campina Grande)

Acho oportuno lembrar que estas minhas compilações de palavras e expressões não têm o objetivo de afirmar que elas têm origem no Nordeste, ou na Paraíba, etc.  São expressões da minha linguagem afetiva, que ouvi pela primeira vez na infância ou adolescência, e depois descobri serem um tanto raras, principalmente na linguagem escrita. Claro que não são exclusividade do Nordeste. Fazem parte de um Nordeste que é só meu, mas que me dá prazer compartilhar com quem se interessa. 
 
 
Às folhas tantas
Expressão usada, geralmente pelas pessoas mais velhas, para dizer: "em dado momento...  foi então que..."  Entra na narrativa para indicar um sentido de passagem de tempo, de que houve uma certa duração entre o que houve antes e o que vai ser narrado a seguir.   "Eles entraram no bar e ficaram conversando, comeram alguma coisa... Às folhas tantas, Fulano tocou no assunto do pedido de emprego."    
 
Imagino que há uma relação com a expressão muito frequente no linguajar dos cartórios: "Está registrando no Cartório Tal, livro 16, às fls. 27-28..."    Neste caso, a intenção é apontar um local preciso, enquanto a expressão anterior simplesmente indica transcurso de tempo.  Eis um exemplo típico de como uma utilização pode ter acabado dando origem à outra: 
 
Até dois amigos mais íntimos de Mary McCarthy se surpreenderam com suas maravilhosas (e mal organizadas) memórias, ao contar que chifrou fartamente todos seus conhecidos amantes e maridos.  Às folhas tantas se pergunta se é promíscua, porque dormiu com quatro homens no espaço de tempo de 24 horas. 
(Paulo Francis, O Globo, 29-6-1995) 
 
 
Deforeta
“Tomar uma deforeta” (pronúncia: "deforéta") é dar uma relaxada, descontrair um pouco, descansar, ir à janela ou ao terraço para respirar um pouco de ar puro.  “Faz três horas que a gente está pegado com esse trabalho...  Vamos dar uma paradinha e tomar uma deforeta, daqui a pouco a gente volta.”   Quando éramos garotos, minha irmã Clotilde sentenciava: “Deve ser uma corruptela de diaforético”.  Indagada sobre o que seria isso, ela respondia: “Não sei, mas parece nome de remédio”.  Na verdade, "diaforético" diz-se de algo que provoca a transpiração.  Variante: "deforéte". 
 
O senhor de engenho, por sua vez, estagnava na rotina e na indolência.  Sair da rotina era coisa que parecia exceder de todo a sua capacidade de ação.  A indolência do corpo não era menor que a do espírito.  Durante o dia tirava largos deforetes na rede da sala ou, deitado sobre montes de bagaço, espiava pachorrentamente o engenho moer. 
(Horácio de Almeida, Brejo de Areia, pag. 106) 
 
 
Pabulagem
Jactância; hábito de contar vantagem.  “Não venha com pabulagem não, que todo mundo aqui sabe que você é muito do mentiroso”.  Existe o verbo “se pabular”: “O papo estava até bom, mas depois de uma certa hora Fulano começou a se pabular, contando riqueza, aí eu enchi o saco e vim embora”. 
 
De que serve o senhor se pabular
que só conta grandeza e valentia
já mostraste a tua covardia
e vai correndo com medo de apanhar
se fugires, eu corro até pegar
a minha volta ninguém se livra dela
com uma mão no peito e outra na goela
mas se o bruto salvar-se dessa vez
eu pego ele, tranco no xadrez
e o Pelado servirá de sentinela. 
(João Martins de Athayde, Peleja de João Athayde com Raimundo Pelado do Sul
 
Vai dormir, que teu mal é sono
Expressão brincalhona que se usa em várias ocasiões: quando a pessoa está de fato sonolenta; quando está de mau humor, sem motivo; quando está perturbando o sossego dos outros.  "Cala essa boca, menino, deixa a gente acabar de ouvir a história!  Vai dormir, que teu mal é sono!" 
 
Já peguei Josué na Catingueira
uma noite de São João numa novena
meia-noite o rapaz fazia pena
deu-lhe frio levantou-lhe até coceira
quis meter-se debaixo da fogueira
ficou logo sem sentidos, descorado
não podia estar em pé e nem sentado
eu lhe disse: "vá dormir, seu mal é sono
vá sabendo, no sertão só tem um dono
é Carneiro, este velho seu criado." 
(João Martins de Athayde, Peleja de Serrador com Carneiro) 
 
“Mulher, vem pra dentro que teu mal é sono!  Vem, pra dentro,
vem!  Vem, que teu mal é sono, e o meu também!” 
(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato I) 
 
 
Todo mundo quer ser bom, e a lua falta um pedaço
Equivale a: "Não há quem não tenha algum defeito".  Observe-se que a grafia mais correta será com acento grave: "...e à lua falta um pedaço".  Há variantes, como: 
 
Na propriedade alheia
outro de fora não manda.
Todo mundo quer ser bom
a lua falta uma banda.
E um dos meus carneirinhos
quem sabe em que lugar anda! 
(Severino Pinto, cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág. 97)
 
 
Não se cresça!
O mesmo que “Não se atreva!  Não se meta a besta!”  Usa-se geralmente no imperativo.  “Olhe, Fulano, você não se cresça comigo não, porque amizade tem limite.” 
 
Dizia o príncipe ao anão:
Vou abrir sua cabeça,
O anão dizia: príncipe
É melhor que se esmoreça
Se renda logo à prisão
Fique calmo e não se cresça
(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 102)
 
Pegado
Vizinho; diz-se de moradias. “Eu estou indo morar pegado com a casa de Seu Fulano”.  Variante: “encostado”. 
 
-- Essas duas casas são pegadas ao casarão onde o senhor mesmo mora?
-- São sim senhor!
-- É verdade que elas se comunicam por portas internas?
-- É sim senhor!
-- Sua casa é pegada, pelo outro lado, ao prédio da Biblioteca que o senhor dirige?
-- É sim senhor!  A Biblioteca fica na esquina.  Depois, do lado direito e pegada com a Biblioteca, fica minha casa.  Depois, pegada à minha pelo lado esquerdo, vem a casa do Professor Clemente.  E finalmente, pegada à de Clemente, fica a casa do Doutor Samuel. 
(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 272)
 
Olhe a boneca!
Exclamação de zombaria que se usa quando alguém vem nos anunciar uma novidade que já é do conhecimento de todos.  “-- Minha gente, vocês não sabem da maior...  O Papa morreu!  -- Olhe a boneca!   Deu na TV faz mais de meia-hora.”   Vem acompanhada de um gesto -- a pessoa que dá a resposta agarra um pedaço de pano, geralmente da própria roupa, e o exibe ao “dono da novidade”, como se mostrasse uma boneca.