terça-feira, 14 de abril de 2009

0978) Adeus, Lênin (5.5.2006)



Vi com atraso este belo e ocasionalmente divertido filme alemão, onde uma mulher na Alemanha Oriental passa alguns anos em coma e, quando desperta, força seus filhos a uma complicada manobra de despiste para que ela não perceba que o Comunismo acabou. Presa à cama, ela recebe a visita de pessoas cuidadosamente vestidas com as roupas modestas da era comunista, come os alimentos que se encontravam nos supermercados antes da Queda do Muro, e assim por diante.

Toda a conspiração é urdida pelo filho mais novo, que quer evitar que a mãe tenha um enfarte ao saber que o Comunismo, pelo qual ela lutou a vida inteira, acabou fracassando. Como o rapaz tem um amigo que tem acesso a uma ilha de edição e tem veleidades de cineasta, os dois começam a produzir falsos telejornais com notícias otimistas sobre a Alemanha Oriental, usando para isto uma cuidadosa edição de imagens. As cenas da Queda do Muro de Berlim, por exemplo, são vistas pela mulher como sendo o resultado de pressões políticas dos jovens do lado ocidental, cansados de consumismo e querendo viver uma vida mais solidária e mais participativa, no lado comunista.

É um filme sobre amor filial e sobre o clássico conceito da “piedosa mentira”, em que enganar alguém resulta numa boa ação. Mas é também um filme que mostra as infinitas possibilidades de manipulação das pessoas através de texto e imagem. Quando a mulher doente vê um painel da Coca-Cola num edifício próximo, o filho “produz” uma reportagem em que demonstra que a fórmula original do refrigerante tinha sido inventada na Europa comunista, e que a companhia americana cedeu à Alemanha Oriental os direitos de fabricação. Nenhuma notícia parece inverossímil quando é respaldada pela enorme credibilidade de um telejornal, cujas imagens cuidadosamente editadas são tidas como prova suficiente.

A imagem mais forte de Adeus, Lênin é talvez a cena em que a mulher consegue vestir um roupão e sair à rua, onde vê out-doors capitalistas, carros ocidentais, etc. A certa altura, ela vem caminhando pela calçada de um parque quando vê aproximar-se um helicóptero que conduz, pendurada por um enorme cabo de aço, uma estátua de Lênin, na pose tradicional com o braço esticado e o dedo em riste. A estátua passa a alguns metros de distância da mulher, como se olhasse para ela, e vai embora.

É um filme sobre manipulação da realidade. Os alemães orientais viveram décadas de propaganda estatal garantindo-lhes que eles viviam no melhor dos mundos e na mais justa das sociedades, apesar da visível diferença entre o que era dito pela mídia e o que era visto na ruas. Depois da Queda do Muro e da unificação, será que os alemães aceitam passivamente a propaganda da mídia capitalista, como aceitaram a outra? Bem que alguém poderia fazer um segundo filme em continuação a este, mostrando que às vezes a gente acorda de um pesadelo para se encontrar no interior de outro.

0977) O Cânone (4.5.2006)




(Cobra Norato, de Raul Bopp)

A revista Continente Multicultural está preparando uma matéria sobre o cânone literário brasileiro, e para isto fez uma enquete com escritores, críticos, etc. 

Temos que sugerir dez títulos (entre ficção e poesia) de obras que achemos com qualidade suficiente para figurar nesta lista de obras obrigatórias para se conhecer uma literatura. 

Estabelecer um cânone é uma tarefa tão espinhosa quanto escalar a melhor Seleção Brasileira de todos os tempos, pelo simples fato de que o valor dos nomes antigos não se dissipa com o tempo, e novos nomes não param de surgir.

De qualquer modo, algumas obras antigas têm preferência, pela simples razão de que sua importância tende a crescer com a passagem dos anos, o aumento da “fortuna crítica”, as biografias, os estudos, etc. O cânone vai se solidificando desta forma, com alguns clássicos indiscutíveis firmando cada vez mais sua posição. 

Numa votação para um cânone de literatura brasileira, quem ousaria deixar de votar em obras definitivas como Dom Casmurro de Machado de Assis ou Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa?

Bem, eu ouso. Como é uma simples votação de revista, que não pode acarretar prejuízos financeiros ou editoriais para os autores envolvidos, tive a idéia de esquecer clássicos deste porte e votar em dez obras que me parecem perfeitamente legítimas como expressões literárias do nosso país, mas que talvez (na minha opinião) não figurem na lista final. 

Sugeri seis obras de prosa:

Corpo de Baile de J. G. Rosa 
Memórias Sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade 
A Pedra do Reino de Ariano Suassuna 
Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato 
A Grande Arte de Rubem Fonseca 
Nove, Novena de Osman Lins. 

E quatro de poesia: 

Invenção de Orfeu de Jorge de Lima 
Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles 
Eu de Augusto dos Anjos 
Cobra Norato de Raul Bopp.

Não sei se estes títulos podem desbancar outros como A Educação pela Pedra de João Cabral, Macunaíma de Mário de Andrade, A Rosa do Povo de Drummond e por aí vai. 

O problema com conceitos como o de cânone é que os votantes começam a se concentrar cada vez mais numa lista consensual em que certos títulos vão sendo considerados intocáveis, a ponto que dificilmente um livro mais recente tem chance de desbancá-los. 

O título mais recente de todos os que citei aqui é o livro de Rubem Fonseca, de 1983, vinte e três anos atrás. Quero só ver qual o título mais recente no “cânone” final.

Parece coisa de desocupado, mas é um mecanismo inevitável da cultura. Tudo precisa de um núcleo, de uma medula, de um conjunto de elementos sobre os quais todo mundo está de acordo. Todo mundo precisa de uma régua e compasso, e isto que chamamos de “cânone” é a régua de medir quem surge. 

Creio que a lista que forneci acima é um filtro exigente e capaz de dizer aos novatos: “Isto é o que temos até agora. E você, trouxe o quê?”






0976) A fé e o intelecto (3.5.2006)





(Dostoiévsky)

Existem os artistas de fé e os artistas de intelecto. 

Os primeiros tornam-se grandes artistas através da crença constante em si próprios e na existência de uma missão de que foram incumbidos. Por causa disto, freqüentemente, radicalizam seus princípios, tornam-se repetitivos e insistentes, avessos a mudanças, concentrados num objetivo estético que em última análise se confunde com sua própria pessoa. 

Os artistas do intelecto costumam ser ecléticos, cheios de recursos, mas nos dão uma impressão de volubilidade, pouco ou nenhum apego a causas ou idéias específicas. Este tipo costuma ser versátil na execução e disperso nos compromissos, porque é da natureza do intelecto concentrar-se nos meios, não nos fins; nos processos, não nos objetivos.

Os artistas da fé costumam dedicar a vida inteira a uma jornada estética, pela qual suportam muitas vezes a pobreza, a incompreensão, a perseguição política. 

O artista do intelecto muitas vezes arranja um emprego estável numa atividade profissional qualquer, e se dedica a ela com a naturalidade de quem vê naquilo uma tarefa a mais, e não uma prostituição de sua Arte. 

Para o primeiro, nada deve afastá-lo da Obra que ele sente ser seu dever trazer ao mundo. 

Para o segundo, qualquer coisa que ele faça já faz parte dessa obra, ou ajuda a financiá-la, por mais dissímile ou trivial que pareça.

Os artistas de fé são muitas vezes, de acordo com o ambiente social e a época em que vivem, arrebatados por convicções políticas ou religiosas, cuja intensidade de sentimento e concentração de foco parece corresponder ao seu modo instintivo de ver a vida. 

Já os artistas do intelecto costumam ser exageradamente críticos em relação a sentimentos transcendentais. São grandes individualistas, mesmo quando são individualistas dotados de um humanismo solidário. Desconfiam das grandes causas; seu entusiasmo é frequentemente tolhido por um ceticismo distanciador.

Nos termos acima, não vejo outra maneira de classificar pessoas como Van Gogh, Dostoiévski ou Augusto dos Anjos senão como artistas de fé; e pessoas como Luís Buñuel, Jorge Luís Borges ou Pablo Picasso como artistas do intelecto. 

Note-se que não falta intelecto a uns nem fé aos outros, mas o modo como procuro vê-los aqui é tentando identificar qual a força interior que os animava de maneira mais substancial e constante ao longo de suas vidas. 

Podemos imaginar como seria a obra de escritores intensamente intelectuais como Georges Perec, Nabokov ou Machado de Assis, caso fôssem animados por uma fé intensa em algo. 

Não digo que fossem indivíduos superficiais ou apáticos, mas os escritores desse tipo parecem ter uma vocação para o distanciamento, a observação afastada, a contemplação da tragédia humana (ou comédia, conforme o momento) por parte de alguém que não se envolve, que não se emociona muito, que mantém o seu próprio mundo interior sob uma cuidadosa couraça protetora.






0975) Numerologias (2.5.2006)


(Karlsson - relógio de parede)

A “numerologia” que está na moda é a que atribui valores numéricos às letras do alfabeto e valores simbólicos aos números, para com isto determinar, através do nome, as qualidades morais de alguém, ou adivinhar o seu futuro. Para uns, uma perda de tempo; para outros, uma maneira, entre muitas, de inventar significado para a própria vida.

Chamo também de numerologia (e chamo por conta própria, não sei se o dicionário concorda) a qualquer atividade que procure descobrir harmonias inesperadas nos números que nos cercam, e que são menos raras do que se imagina. A rigor, só existem dez números, e eles se repetem o tempo todo. Se a gente ficar prestando atenção, vai descobrir certos arranjos seriais que nos levam a supor uma intencionalidade da parte do Arquiteto Cósmico.

Por exemplo: na próxima quinta-feira, dia 5 de maio, as pessoas que usam certos tipos de relógio eletrônico verão no mostrador, durante um instante fugaz, a seguinte série de números: 01:02:03 04/05/06. Ou seja: uma hora, dois minutos e três segundos de quatro de maio de 2006. Alguns anos atrás, foi possível ver a série 00:01:02 03/04/05. E assim por diante. Outros horários e datas curiosos a serem vistos este ano são: 06:06:06 06/06/06, ou seja, seis horas, seis minutos e seis segundos de seis de junho de 2006; e 11:10:09 08/07/06, que quer dizer onze horas, dez minutos e nove segundos de 8 de julho de 2006.

Vi num livro de quebra-cabeças uma coisa parecida, referindo-se ao dia 7 de agosto de 1990, quando em alguns relógios apareceu a série 12:34:56 7/8/90 (doze horas, trinta e quatro minutos e cinquenta e seis segundos daquele dia). Tudo depende, é claro, do formato escolhido para exibição dos números no mostrador. As combinações, apesar de numerosas, são limitadas, e cedo ou tarde um número aparentemente “de propósito” acaba aparecendo. São casos típicos de ordem aparente que brota do caos. Se um número finito e reduzido de elementos se recombina o tempo todo de maneira aleatória, ele acaba reproduzindo certos padrões aparentemente simétricos ou ordenados, dando a impressão de algo “proposital” ou fatalista.

Um exemplo crucial disto é quando jogamos na Mega Sena um grupo aleatório de números (digamos: 05 – 11 – 28 – 33 – 40 – 41) e na segunda-feira descobrimos que estamos milionários pro resto da vida. Para todo o resto do Brasil, esta série foi uma série caótica, desorganizada. Para nós, que estamos segurando nos dedos trêmulos o comprovante das dezenas apostadas, é o maior exemplo possível de Ordem gerada pelo caos (pelo giro aleatório das tômbolas da Caixa Econômica). Uma Ordem que no caso só o é aos olhos de um único indivíduo, mas que nem por isto deixa de ter para ele o mais transcendental dos significados. Produzir significados em padrões aleatórios é uma função obrigatória da mente humana, das sociedades humanas. Talvez seja a melhor receita para não bater de cara com o absurdo da existência.

0974) A razão e a emoção (30.4.2006)





(Rob Gonsalves - "House by the Railroad")

Tempos atrás eu conversava com um poeta, discutindo algum detalhe de um poema dele, não me lembro o quê. Falei: “Tá legal. Mas qual foi a idéia que você tinha em mente com este verso?” E a resposta foi: “Eu não escrevo sobre idéias, idéias são uma coisa muito superficial. Eu quero ir mais fundo, quero atingir as emoções.” Pense num impasse filosófico de primeira grandeza! O camarada achava que as idéias estavam na superfície e as emoções nas profundezas, quando eu acho exatamente o contrário. Por sorte havia uma TV no bar, eu apontei e disse: “Eita! Parece que teve um atentado não-sei-onde!”

Entendo o raciocínio do meu amigo. Acostumado ao freudianismo-de-bolso da imprensa de hoje, ele acha que as idéias são essas coisas que nós tagarelamos no dia-a-dia: se vai chover ou fazer sol, se o dólar vai subir ou descer, se o ataque da Seleção vai deslanchar... E as emoções são aqueles terremotos profundos que brotam do Inconsciente, onde estão guardados os nossos desejos incontroláveis, as nossas paixões em brasa, nossos traumas, sonhos e pesadelos. Se for isso mesmo, até lhe dou razão, mas mesmo assim quero ir mais longe.

Emoção é superfície, é mero sintoma, reação desencadeada em nosso organismo por algo que ocorre em nossa mente. O coração bate mais rápido. O sangue aflora à pele, ou reflui, deixando-a lívida. As mãos ficam frias e suadas. As pupilas se contraem. A respiração se acelera. Tudo isto são sintomas de uma emoção forte, que acompanham nossos momentos de raiva, medo, alegria, excitação sexual, ansiedade... Sentimos que estamos vivos. É o animal em nós que desperta, a memória remota de milhões de anos lutando pela sobrevivência.

A literatura, no entanto, não é feita com a emoção, e sim com o intelecto. A emoção fornece apenas a vontade imperiosa de escrever; mas o valor literário de um texto se deve ao modo como organizamos as palavras para gerar emoção no leitor. Claro que nossa própria emoção pressiona o intelecto na hora de escrever, mas arrrisco-me a dizer que tal emoção deve ser mantida sob controle. É como uma criança pulando e pedindo: “Vamos, pai! Arma logo o meu trenzinho!” e o pai dizendo, “Calma, está quase pronto, faltam só algumas peças”. Se não tivermos esse lado intelectual, tranquilo, discriminador (capaz de distinguir o que serve e o que não serve), jamais produziremos literatura de boa qualidade: escreveremos apenas um tumulto desencontrado, repleto de clichês, repleto de citações conscientes ou inconscientes de versos ou frases que um dia nos produziram uma emoção parecida.

Imagine um pianista. Já vi gente sair de uma sala de concerto queixando-se: “É um porre esse pianista, não tem a menor emoção”. E em outras vezes pessoas entusiasmadas: “Que concertista maravilhoso! Que emoção intensa!” Pois literatura é como piano. Pode-se fazer literatura com emoção ou sem ela: mas sem técnica, até hoje, eu sinceramente não vi.