Uma das escritoras mais elegantes que conheço (e pode incluir o contingente masculino nessa avaliação) é a dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962), que usava o pseudônimo de “Isak Dinesen” para assinar seus contos densos, refinados. Ela geralmente aborda um mundo oitocentista onde as vidas transcorrem como rios largos e vagarosos. Sua ficção lembra certos filmes de Luchino Visconti onde diferentes camadas do tempo se superpõem num mesmo espaço impregnado de memórias aristocráticas (O Leopardo, Violência e Paixão)
– Vossa Eminência respondeu minha pergunta contando-me uma história na qual meu amigo e professor é o herói. Vejo com clareza o herói da história, quase que luminoso, e num elevado plano. Mas meu mestre, meu conselheiro e meu amigo continua tão afastado quanto antes. Não parece humano aos meus olhos e, ai, não consigo dizer que não me causa temor.
– Madame, eu lhe contei uma história. Histórias têm sido contadas desde que a fala começou a existir, e sem histórias a humanidade teria perecido, como pereceria sem água. A senhora vê os personagens de uma história real com clareza, quase luminosos, num plano elevado, e ao mesmo tempo ele podem não lhe parecer bem humanos, podem até causar-lhe medo. É assim que são as coisas. Mas hoje, Madame, eu percebo uma nova arte da narração, uma nova literatura, nova categoria das belas-letras, alvorecendo sobre o mundo. Já está entre nós, sem dúvida, e tem ganho a simpatia dos leitores do nosso tempo. E essa nova arte literária irá, em benefício dos personagens individuais da história, e com o intuito de manter-se próxima deles, sem medo, essa literatura estará disposta a sacrificar a história em si.
“Os indivíduos dos novos livros, novos romances, estão tão próximos ao leitor que é como se um calor corporal nos fluísse deles; o leitor os trará para perto de si e os tornará seus companheiros, amigos, confidentes. E à medida que aumentar essa troca de empatias, a história propriamente dita irá perdendo terreno, perdendo peso, e acabará evaporando-se, como o buquê de um vinho nobre cuja garrafa tenha sido esquecida aberta.
Nesse conto do Albondocani,
que imagino situar-se no século 17 ou 18 (nunca se sabe; essas ambientações
aristocráticas parecem existir numa espécie de animação suspensa fora do tempo
e do espaço), discute-se a passagem de uma literatura para a outra, ou melhor,
o surgimento de um novo tipo, visto que a história antiga, a
história-pela-história, não dá nenhuma mostra de desaparecer, e em 2021 continua
lépida e saltitante.
Ian Watt (A
ascensão do romance) observa no romance inglês do século 18 essa guinada
definitiva na direção do realismo da observação, da descrição e reprodução fiel
dos ambientes individuais e coletivos, da psicologia profunda dos personagens.
Comentando as obras de Daniel Defoe, Samuel Richardson e
Henry Fielding, três dos fundadores do romance inglês, ele observa:
O propósito primordial [desse novo realismo psicológico] consiste em fazer as palavras trazerem-nos seu objeto em toda a sua particularidade concreta, mesmo que isso lhes custe repetições, parênteses, verbosidade.
Tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla – aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento que substituiu a visão unificada do mundo da Idade Média por outra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de invidíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares.
(A Ascensão do Romance, Companhia das Letras, trad. Hildegard Feist)