segunda-feira, 18 de outubro de 2021

4755) O feitiço mortal de Lovecraft (18.10.2021)


 

Feitiço Mortal (“Cast a Deadly Spell”, 1991) de Martin Campbell, com roteiro de Joseph Dougherty, é uma mistura excêntrica (e em muitos momentos bem sucedida) entre o filme policial hardboiled, o horror lovecraftiano e a comédia.
 
Dougherty concebeu de forma plausível (pelo menos no tom de gracejo que o filme mantém boa parte do tempo) uma Califórnia de 1948 em que os poderes maléficos das criaturas lovecraftianas existem e fazem parte do cotidiano das pessoas, como se Os Antigos, os deuses poderosos inventados por H. P. Lovecraft, estivessem à solta no mundo.
 
A premissa tem que ser implícita, porque nessa Los Angeles o detetive particular cínico e mambembe que circula resolvendo crimes chama-se Phil Lovecraft, e numa cidade onde todo mundo (inclusive a polícia e os gangsters) usa feitiços, encantamentos e invocações demoníacas como parte do cotidiano, ele é o único que não se interessa por isso.
 
É uma premissa curiosa e Feitiço Mortal extrai bons momentos de comicidade e surpresa dessa situação.


Fred Ward, que interpretou Henry Miller em Henry and June, é o detective Lovecraft, que, de acordo com o clichê básico do filme de detetive hardboiled, é contratado por um milionário para descobrir um livro raro que foi roubado de sua biblioteca, o Necronomicon.
 
Como o Necronomicon, aqui em nosso mundo, é uma invenção do escritor Lovecraft, cria-se aí uma situação próxima da sátira ou da paródia, e o filme adota essa cadência em muitos momentos, principalmente quando aparecem monstrinhos que, longe de evocarem o horror lovecraftiano, adotam o visual sessão-da-tarde dos Gremlins (1984) de Joe Dante.

 
A história vai se desenrolando de clichê em clichê: David Warner no papel do milionário ansioso para fazer um pacto com as criaturas das trevas, Clancy Brown como o ex-policial que virou gangster bem sucedido e dono de nightclub, Julianne Moore como a mulher-com-um-passado que oscila entre o detetive e o gangster, Alexandra Powers como a filha donzela mas sapeca do milionário.
 
O filme está aqui, em versão dublada:
 
https://www.youtube.com/watch?v=jLj6txDulCU


Há um trecho em que a dublagem brasileira some e surge uma dublagem em russo, mas isso passa logo e o filme volta ao normal. Ademais, os diálogos são irrelevantes, porque o problema acontece em cenas que são auto-explicativas. A primeira é a cena em que o detetive vai visitar o milionário e a filha adolescente deste tenta seduzi-lo (todo filme pós-Philip Marlowe se sente na obrigação de parodiar a cena inicial de
The Big Sleep), e a segunda é uma investigação de rotina no quarto do cara desaparecido.
 
Misturas de gêneros como neste caso têm mais importância quando as convenções de um gênero ajudam a ter uma visão diferente (e às vezes críticas) sobre as limitações, os clichês e as “facilidades” do outro gênero.
 
Quando a gente assiste, por exemplo, O Jovem Frankenstein de Mel Brooks, a comédia aparece para satirizar uma infinidade de clichês que a gente via nos filmes de terror sendo praticados com a maior solenidade, como se o diretor fosse um John Ford dirigindo um épico.
 
A comédia desmontava isso tudo: quando a corcunda do ajudante mudava de lugar, quando o cavalo relinchava toda vez que alguém dizia o nome da megera, quando o conceito de “monstro feito de partes anatômicas selecionadas” sugeria um detalhe fescenino.
 
Em Cast a Deadly Spell, numa cena típica de romance policial, o detetive entra às pressas numa delegacia, de madrugada, durante o famoso plantão noturno onde aparece “de-um-tudo”, mas em vez de travestis bêbadas e traficantes violentos ele encontra vampiras e lobisomens sendo levados para a cela por policiais entediados resmungando “que saco, noite de lua cheia é foda.” 



Todo clichê cinematográfico é um velho amigo, e é bom quanto podemos sorrir ao reencontrá-los. 
 
O fato de nesse universo os zumbis estarem sendo usados para trabalhar na construção covil também é um detalhe mostrado en passant, mas com um efeito legal.
 
E há um aspecto com uma sutileza adicional, que mereceria estar num filme com perfil semelhante mas menos brincalhão, porque toca numa questão ampla do gênero policial, do gênero fantástico. É a presença pervasiva da magia nesse mundo. Quando o milionário recebe o detetive em sua biblioteca, faz um exame rápido, e se maravilha:
 
– É verdade!... Sem símbolos, sem talismãs e sem fetiches, nada! Você realmente não usa nada, nenhuma mágica, quero dizer.
 
– Como falei ao telefone.
 
– Não acredita em magia?
 
– Acredito. Só que não uso.
 
– Por que?
 
– Razões pessoais.
 
– E elas são...?
 
– Pessoais.
 
É uma cena curta que parece tirada diretamente de uma aventura de Philip Marlowe. O detetive criado por Chandler é um homem pobre (40 dólares por dia, mais despesas), mas honesto. Todo mundo na Califórnia usa a corrupção e o roubo, e Marlowe não. Por que? Ele é santo, é religioso, é um cara moralmente superior? Nem tanto, porque Marlowe mente, engana, suborna, ameaça... Mas é honesto. Por que? Razões pessoais.
 
Usar a magia é um pouco como usar a desonestidade, é um pouco como trapacear, violar as leis (no caso, as leis da Natureza) em benefício próprio. Os detetives do mundo hardboiled, de um modo geral, mantêm-se honestos, ou pelo menos mais honestos do que os políticos, os banqueiros, os industriais e os policiais com quem convivem (para não falar nas cantoras de cabaré que casam com milionários). Existe uma “mágica” especial no seu mundo, mas eles não usam.
 
Feitiço Mortal tem momentos sérios, momentos divertidos onde existe essa superposição de clichês vistos com “lentes de diferentes cores”, momentos meio bobinhos quando alguém vai enfrentar a Besta do Apocalipse e quem aparece é um Gremlin do Projac. O elenco se sai bastante bem da brincadeira, sem a levar muito a sério mas todos dando a impressão de que estão se divertindo e não apenas cumprindo cronograma.