(Morreu pouco tempo atrás nos Estados Unidos o poeta John Ashbery, que mereceu longos e elogiosos obituários. Na época o nome não me despertou nenhuma lembrança. Agora, remexendo em arquivos velhos, encontrei este poema que li e salvei há alguns anos, movido por alguma ressonância autobiográfica. É um belo poema sobre o processo criativo literário, familiar a todo escritor que de vez em quando vai à janela. Vai ele aqui com tradução minha. O original é de 1956, do livro “Some Trees”.)
O MANUAL DE INSTRUÇÕES
(John
Ashbery)
Sentado à janela do meu
prédio, olhando para fora,
penso como seria bom se
não tivesse de redigir
um Manual de Instruções a
respeito das utilidades de um novo metal.
Olho para a rua lá embaixo
e vejo as pessoas,
cada qual passeando cheia
de paz interior,
e sinto inveja delas. Tão
distantes de mim!
Nenhuma delas tem que se
preocupar
com a entrega do Manual no
prazo combinado.
E, bem ao meu jeito, começo
a sonhar,
apoiando os cotovelos na
mesa
e me soerguendo um pouco
para olhar pela janela,
e sonho com Guadalajara! A
cidade das flores cor de rosa!
A cidade que eu mais
desejo conhecer, e nunca conheci, no México!
Mas imagino vê-la agora,
sob a pressão de ter que escrever o Manual de Instruções,
vejo a praça pública da
cidade, seu coreto cheio de adornos!
A banda está tocando Scheherazade de Rimsky-Korsakov,
e em redor do coreto as
garotas das flores
seguram flores cor de rosa
e de limão,
cada uma tão atraente em
seu vestido de listas em azul-e-rosa (oh! cada tom de rosa e azul!)
e ali perto a barraquinha
branca onde mulheres de verde
distribuem frutas verdes e
amarelas.
Os casais desfilam: todos
estão em clima de feriado.
Primeiro, puxando o
desfile, vem um sujeito elegante
vestido de azul escuro. Na
cabeça traz um chapéu branco
e exibe um bigode, que foi
aparado para aquela ocasião.
Sua querida, sua esposa, é
jovem e bela; o xale dela é vermelho, cor-de-rosa e branco.
Suas sandálias são de
couro, ao estilo americano,
e ela traz um leque,
porque é encabulada, e não quer que a multidão veja seu rosto o tempo inteiro.
Mas todo mundo está tão
ocupado, com suas esposas ou suas amadas,
que duvido que notem a
esposa do homem de bigode.
E aí vêm os rapazes! Vêm
saltando e jogando coisas na calçada
que é feita de ladrilhos
cinza. Um deles, um pouco mais velho, traz um palito entre os dentes.
É mais silencioso do que o
resto, e finge não reparar nas moças bonitas de vestido branco.
Mas os amigos dele
reparam, e gritam provocações para as garotas risonhas.
E no entanto isso tudo vai
acabar,
quando os anos ficarem
mais profundos,
e o amor os trouxer ao desfile
por outros motivos.
Mas acabei perdendo de
vista o rapaz com o palito.
Esperem! Ali está ele, do
outro lado do coreto,
separado dos amigos,
envolvido na conversa com uma garota
de catorze ou quinze anos.
Tento escutar o que estão dizendo
mas parece que estão
apenas murmurando coisas – palavras tímidas de amor, provavelmente.
Ela é um pouco mais alta
do que ele, e abaixa os olhos com calma para os olhos dele, tão sinceros.
Ela está de branco. A
brisa agita seus cabelos longos e finos de encontro ao rosto moreno.
Ela está visivelmente
apaixonada. O rapaz, o rapaz do palito, está apaixonado também:
os olhos dele o
demonstram. Afastando minha visão deste casal
vejo que houve agora um
intervalo no concerto.
Os transeuntes estão
descansando, tomando refrigerantes no canudinho
(o refrigerante está numa
grande jarra de vidro, e quem o serve é uma senhora de azul escuro),
e os músicos se misturam a
eles, com seus uniformes brancos, e conversam,
sobre o clima, talvez, ou
sobre como as crianças estão se saindo no colégio.
Vamos aproveitar esta
oportunidade
e entrar na ponta dos pés
nesta ruazinha transversal.
Aqui vocês podem ver uma
daquelas casinhas brancas com enfeites verdes
que são tão populares
aqui. Olhem! Bem que eu lhes disse.
Dentro está mais fresco à
sombra, mas o pátio está banhado de sol.
Uma mulher idosa de
vestido cinza está sentada, abanando-se com um leque de folha de palmeiras.
Ela nos convida a entrar
no pátio, e nos oferece um refresco para beber.
“Meu filho está na Cidade
do México,” diz ela. “Ele os receberia também se estivesse aqui. Mas ele
trabalha num Banco, lá.
Olhe, este aqui é o
retrato dele.”
E o rapaz de pele morena
com dentes de pérola nos sorri naquela velha moldura de couro.
Agradecemos a ela sua
hospitalidade, porque está ficando tarde
e precisamos olhar melhor
a cidade, antes de irmos embora,
olhar a cidade de cima de
um lugar bem alto.
A torre daquela igreja
pode servir – aquela em cor de rosa desbotada, de encontro ao azul vívido do
céu. Entramos lentamente.
O porteiro, de uniforme
marrom e cinza, pergunta há quanto tempo estamos na cidade, e se estamos
gostando.
A filha dele varre os
degraus, e nos cumprimenta quando passamos rumo à torre.
Logo chegamos ao topo, e a
teia quadriculada da cidade se estende aos nossos olhos.
Ali está o bairro nobre,
com suas casas rosa e branco, e seus terraços cheios de plantas se esboroando.
Ali o bairro mais pobre,
onde as casas são azul escuro.
Ali o mercado, onde os
homens vendem chapéus e espantam moscas,
e ali a biblioteca pública,
pintada em tons de verde claro e bege.
Olhem! Lá está a praça de
onde viemos, onde o pessoal passeia.
Agora há menos gente por
lá, agora que o calor do sol ficou mais forte,
mas aquele rapaz e a
garota ainda conversam junto ao coreto.
E aquela é a casa da
pequena senhora—
lá está ela no pátio, se
abanando.
Como foi breve, mas como
foi completa, a nossa experiência de Guadalajara!
Vimos o amor entre os
jovens, entre os casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
Ouvimos a música, provamos
as bebidas, olhamos as casas coloridas.
O que nos resta a fazer,
senão ficar? Mas isto não é possível.
E quando a derradeira
brisa refresca o topo da velha torre,
eu giro a cabeça, e os
meus olhos
se voltam para o Manual de
Instruções – que me fez sonhar com Guadalajara.