terça-feira, 8 de março de 2016

4070) Jorge de Lima (9.3.2016)



A prudência manda desconfiar de biografia escrita por amigo do biografado. Todo amigo é suspeito. Não porque tenda a “falar bem” do biografado. É porque teve envolvimento pessoal com aquilo. Já tem uma versão, e tem a sensação de que ela brotou de um consenso entre ele e o biografado. Todo amigo de um famoso, ao biografá-lo, ganha um pouquinho de tom de quem se julga meio dono dele, numa atitude de “eu sei disso, eu era amigo dele, estava lá e vocês não, vocês não podem questionar”.

É o que contamina às vezes livros como os de Robert Shelton sobre Bob Dylan, de Max Brod ou Gustav Janouch sobre Kafka, de Estela Canto sobre Borges, de Carlos Povina Cavalcanti sobre Jorge de Lima (Vida e Obra de Jorge de Lima, Rio, Correio da Manhã, 1969).  O autor era amigo de infância do poeta, ligado por laços de família, tiveram convivência constante na vida adulta. A vantagem é poder dar preciosas indicações sobre contexto, e confirmar detalhes. A desvantagem é ter de ferver no mesmo caldeirão a biografia escrita e a imagem pública que cultivava do biografado, seu compadre, seu parente até. Não digo isso para denegrir o esforço, mas para mostrar o quanto ele já começa em desvantagem, mesmo que pareça ser o contrário.

Jorge de Lima é autor de inúmeras coisas bonitas em poesia (O Grande Circo Místico) e prosa (nunca li seus romances), mas para mim é acima de tudo o autor de Invenção de Orfeu, uma espécie de Divina Comédia inspirada em André Breton e Georges Bernanos. Devia ser aberto ao acaso e lido, um poema por dia, aí quando o cara se tocar, enxerga o céu todinho.

Jorge e Murilo Mendes foram nossos grandes surrealistas, e pagaram caro por terem sido surrealistas cristãos, um oxímoro tão escandaloso quanto “dadaísmo greco-ortodoxo”. Resultado: em JdL e MM os cristãos se escandalizam com as libertinagens imagéticas do surrealismo, e com o eventual anarquismo erótico; e os surrealistas se entediam com a imageria cristã e as recorrentes fórmulas devocionais. Cristianismo e Surrealismo eram, quase cem anos atrás, talibanismos contrapostos. e não haveria de ser dois brasileiros que conseguissem fazê-los funcionar juntos, poeticamente. Pra mim, ambos conseguiram, mas quem sou eu?

Figura misteriosa, o Jorge de Lima de Povina, sempre solícito e generoso, ausente num “stream of consciousness” permanente. Um brasileiro que passou em branco pela política (deputado estadual em Alagoas, vereador no Rio), mas não pela Medicina. Há traços comuns de personalidade entre ele, Guimarães Rosa, Conan Doyle, outros escritores-médicos que se detiveram diante de um Umbral cruel e reconheceram haver ali um Corte místico entre dois mundos.