A prudência manda desconfiar de biografia escrita por amigo
do biografado. Todo amigo é suspeito. Não porque tenda a “falar bem” do
biografado. É porque teve envolvimento pessoal com aquilo. Já tem uma versão, e
tem a sensação de que ela brotou de um consenso entre ele e o biografado. Todo
amigo de um famoso, ao biografá-lo, ganha um pouquinho de tom de quem se julga
meio dono dele, numa atitude de “eu sei disso, eu era amigo dele, estava lá e
vocês não, vocês não podem questionar”.
É o que contamina às vezes livros como os de Robert Shelton
sobre Bob Dylan, de Max Brod ou Gustav Janouch sobre Kafka, de Estela Canto sobre
Borges, de Carlos Povina Cavalcanti sobre Jorge de Lima (Vida e Obra de Jorge de Lima,
Rio, Correio da Manhã, 1969). O autor
era amigo de infância do poeta, ligado por laços de família, tiveram
convivência constante na vida adulta. A vantagem é poder dar preciosas
indicações sobre contexto, e confirmar detalhes. A desvantagem é ter de ferver
no mesmo caldeirão a biografia escrita e a imagem pública que cultivava do
biografado, seu compadre, seu parente até. Não digo isso para denegrir o
esforço, mas para mostrar o quanto ele já começa em desvantagem, mesmo que
pareça ser o contrário.
Jorge de Lima é autor de inúmeras coisas bonitas em poesia
(O Grande Circo Místico) e prosa (nunca li seus romances), mas para mim é
acima de tudo o autor de Invenção de Orfeu, uma espécie de Divina Comédia inspirada em André Breton e Georges Bernanos. Devia ser aberto ao acaso e lido,
um poema por dia, aí quando o cara se tocar, enxerga o céu todinho.
Jorge e Murilo Mendes foram nossos grandes surrealistas, e
pagaram caro por terem sido surrealistas cristãos, um oxímoro tão escandaloso
quanto “dadaísmo greco-ortodoxo”. Resultado: em JdL e MM os cristãos se
escandalizam com as libertinagens imagéticas do surrealismo, e com o eventual
anarquismo erótico; e os surrealistas se entediam com a imageria cristã e as
recorrentes fórmulas devocionais. Cristianismo e Surrealismo eram, quase cem
anos atrás, talibanismos contrapostos. e não haveria de ser dois brasileiros
que conseguissem fazê-los funcionar juntos, poeticamente. Pra mim, ambos
conseguiram, mas quem sou eu?