terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

5154) O eclipse dos amores inconclusos (18.2.2025)




Meu saudoso professor da Escola de Cinema da UCMG, o padre Massote, costumava palestrar longamente sobre os aspectos arquitetônicos do cinema de Michelangelo Antonioni, um dos seus diretores preferidos. Parece estranho, eu sei, um padre católico mineiro gostar de um diretor tão crítico da religião, tão voltado para os dramas eróticos e existenciais de gente rica, burguesa, européia. 
 
Acontece que Massote era acima de tudo um adorador da imagem, e aqui não me refiro à arte sacra: era a imagem cinematográfica mesmo, aquele mundo falso-3D no 2D da tela, aquela Terra plana e vertical, aquele planeta retangular. 
 
Nisto ele seguia uma tradição brasileira, a proximidade filosófica entre a doutrina católica e a fascinação pelo cinema. O cineclubismo nordestino, por exemplo, sempre recebeu muito apoio das dioceses e paróquias locais, inclusive nas épocas da “caça às bruxas”, em que jovens de 18 ou 20 anos podiam ser presos (ou pelo menos intimados a prestar depoimento no quartel) somente porque estavam exibindo Aruanda de Linduarte Noronha. 
 
E havia a tradição dos livros de autores católicos que minha geração lia com aplicação, como os Elementos de Cinestética do Pe. Guido Logger, O Cinema tem Alma? de Henri Agel, Caminhos do Cinema do paraibano José Rafael de Menezes, Noções de Cinema do Irmão Samuel...  
 
Nenhum desses livros nos conduziu ao Seminário, assim como Aruanda não nos conduziu às Ligas Camponesas. Por que? Talvez porque nossa geração (ou pelo menos a turma com quem eu convivia mais) tivesse sido tocada mais pela imagem do que pela mensagem. 


 
Revi agora O Eclipse (1962) de Antonioni, que não via há mais de vinte anos. É um filme belo, frio, luminoso como um bisturi. Dizem que Antonioni celebrava (criticava? lamentava?) o vazio emocional de seus personagens de classe média alta, e para conseguir melhor esse objetivo drenava as emoções da platéia, impedindo que ela se envolvesse, se identificasse, sofresse, risse, ficasse comovida ou assustada. 
 
Neste sentido, o cineasta de Deserto Vermelho talvez fosse o mais brechtiano dos diretores, não fosse pelo fato de que, ao contrário de Brecht, não oferecia um substituto nítido para a catarse emotiva – não propunha um tipo qualquer de iluminação da consciência. Nada disso. Na maioria dos filmes dele, e em O Eclipse especialmente, vemos personagens que parecem ter olhado para o abismo e deixado lá tudo que traziam dentro de si. Voltaram “só a casca”. 
 
Ninguém ilustrou melhor esse vazio do que Mônica Vitti, que foi casada com o diretor nesse período, e apareceu para o mundo em quatro filmes sucessivos dirigidos por ele: A Aventura (1959), A Noite (1960), O Eclipse (1962) e Deserto Vermelho (1964). 
 
Os minutos iniciais do filme são uma amostra dos contrastes que ele malabariza. Começam os letreiros (o filme é em preto-e-branco) ao som de uma cançãozinha-pop estridente e banal. Quando surge o letreiro “Música: Giovanni Fusco”, começa a trilha sonora de verdade, atonal, dissonante, ora ruidosa, ora minimalista. Uma música “de clima”, um clima de expectativa e estranheza. 
 
Essas duas referências acompanham o filme todo. Podemos dizer que está dividindo entre a estridência formal da vida moderna e a melancolia desamparada dos que não conseguem se integrar a ela. 



 
Um apartamento, paredes cobertas de pinturas, um ventilador ligado. Silêncio. Um homem de camisa branca (Francisco Rabal, “Riccardo”), uma mulher de vestido preto (Monica Vitti, “Vittoria”). A câmera acompanha a mulher enquanto ela vagueia pela sala, mexe nos objetos. O homem está sentado, olhando para ela. O diálogo que começa entre os dois é frouxo, desinteressado, vê-se que ela não quer mais nada com ele, mas ele ainda insiste, sem forçar. Há copos de bebida, cinzeiros cheios. Vê-se que passaram a noite acordados, discutindo. Sem violência, mas naquela areia-movediça mental em que quando mais se conversa menos se entende. 


 
Ela se despede, volta a pé para casa, e aí vemos que os dois estão num bairro de edifícios modernos com vastos espaços vazios entre eles. É a área residencial e de escritórios chamada “EUR”, espólio do fascismo, e, na época do filme, talvez um sintoma de que a Roma milenar estava mergulhando de cabeça nas novidades americanizadas do pós-guerra (uma constante no cinema italiano dos anos 1940-50-60). 
 
A certa altura surge o que é talvez a cena mais polêmica do filme: um número de dança blackface. Vittoria e uma amiga visitam outra mulher, que mora no Quênia e tem opiniões arrepiantemente racistas sobre os africanos. Este seu apartamento em Roma é coberto por objetos nativos, fotos, etc. E então, “do nada”, Vittoria se pinta de preto, veste um traje ficcionalmente africano e executa uma dança selvagem. Como disse um crítico da época: “Passarão mil anos e Mussolini continuará invadindo a Etiópia”. 




Nos planos externos dessa parte do filme Antonioni se multiplica (com o fotógrafo Gianni di Venanzo) em ângulos de pessoas perdidas numa paisagem de superfícies vazias e enormes blocos de concreto. Essas sequências lembram Brasília, lembram o sonho modernista de eliminar tudo que seja rugosidade, dobras, capilaridade, proliferação biológica. Lembram o poema de João Cabral de Melo Neto:
 
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

 

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

 

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

 

A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Em O Engenheiro, 1942-45)
 
 


Essa arquitetura (que no filme cumpre um papel modernista, independente de seu estilo) contrasta com as sequências que trarão o namoro seguinte de Vittoria, com o jovem workaholic Piero (Alain Delon).  Nas cenas no centro velho de Roma, na Bolsa de Valores, tudo é o contrário desse episódio inicial. Os velhos prédios carcomidos, escritórios desmazelados, cheios de tralha funcional (papel, máquinas de escrever, pastas, anotações...) e na Bolsa propriamente dita o berreiro frenético dos investidores.
 
Nas sequências da Bolsa e sua gritaria atordoante, Antonioni cria uma coreografia circular de homens possessos, e faz Alain Delon rodear esse círculo, rompê-lo, entrar, sair, numa dança precisa. (Conta-se que o diretor escolheu um investidor real e fez o ator copiar-lhe os mínimos gestos.)




Delon está no auge de sua versatilidade física, saltando, correndo, esbarrando, gesticulando com veemência. A certa altura, Vittoria pergunta, agastada: “Você não pára?!...” Ele é um personagem totalmente moderno, um yuppie (a palavra não existia em 1962) jovem, obcecado em fazer muito dinheiro no menor tempo possível, o cara que não pára, não relaxa, só pensa em dinheiro, mal escuta o que lhe dizem... 
 
No filme, ele é o contrário de Monica Vitti, que aperfeiçoou aqui a sua “persona” frágil, desamparada, hesitante, parecendo consumida por algo que não pode revelar. Aquilo que o crítico  Andrew Sarris chamou de “antoniennui” (“antedioni”?...). Ela exprime melhor que ninguém aquela instabilidade que Antonioni imprime a alguns personagens, que parecem (no dizer de David Thomson) “epidermes frágeis que mal conseguem roçar umas nas outras sem se ferir”. 
 
Nesses filmes Antonioni/Vitti renasce o mito do diretor que usa a câmera para acariciar o corpo da mulher que o inspira, como fizeram Jean-Luc Godard com Anna Karina e Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Não importa se o cineasta quer mostrar um mundo burguês emocionalmente estéril ou um vibrante mundo moderno em que tudo parece possível: entre ele e o mundo se interpõe aquela presença carnal que arrasta a câmera consigo. 
 
O Eclipse poderia também ser o filme de abertura de um hipotético festival intitulado “Amores Inconclusos”, e que incluiria também In the Mood for Love de Wong Kar Wai, Vestígios do Dia de James Ivory, Lost in Translation de Sofia Coppola, Nunca Te Vi, Sempre Te Amei de David Jones e certamente muitos outros.


Dizia-se de Antonioni ser o cineasta da incomunicabilidade, do desencontro. Ele é também o cineasta do personagem humano perdido na paisagem urbana, uma paisagem não propriamente ameaçadora ou hostil (como nos filmes do Expressionismo Alemão), mas indiferente. Uma proliferação de edifícios em multiplicação constante e que parecem expulsar de seu projeto esses seres humanos incômodos, que vagueiam como zumbis. 
 
O mundo modernizou-se tão depressa e tão cruelmente que nos deixou para trás.  Minto: nos leva consigo, mas nos leva fora dele, como astronautas que saíram da espaçonave para dar uma volta e depois não conseguiram mais entrar, ficaram pendurados no vácuo, sendo arrastados espaço afora, mas fora do mundo. 
 
Um objetivo aparentemente conseguido na famosa sequência final de O Eclipse, uma série de imagens desconexas mostrando os ambientes por onde Vittoria e Piero passaram, como se os dois tivessem finalmente deixado de existir e a Cidade pudesse ser somente a Cidade. 














sábado, 15 de fevereiro de 2025

5153) Cacá Diegues, 1940-2025 (15.2.2025)



 
Perdemos Cacá Diegues, o cineasta que para muita gente tinha o perfil mais parecido com o Cinema Novo. 
 
Assunto que rende etílicas polêmicas, é claro. Para uma igrejinha obstinada (onde me benzo de vez em quando), a cara do Cinema Novo era Glauber Rocha, sem discussão. Glauber foi o motor-de-luz que energizou uma geração inteira, excitando, provocando, desafiando, incentivando, polemizando, mas deixando claro a todos que o momento era de fazer cinema no Brasil. 
 
Sem dinheiro, sem indústria, sem patrocínio, fosse como fosse. E fazer um cinema provocativo, questionador, “revolucionário”. E de fato o cinema feito por Glauber, entre Barravento (1962) e O Dragão da Maldade... (1969) foi tudo isto, e serviu de bandeira a toda uma geração. “Sigam-me!  É por aqui!...” 




(Glauber Rocha) 

 
Depois, o cinema de Glauber deixou de ser bandeira e virou farol: “Afastem-se, o terreno aqui é perigoso”. O talento voluntarioso, a imaginação indisciplinada, os rasgos de ousadia, tudo isto sustentou o cinema que Glauber continuou fazendo até morrer em 1981; mas aí já não era mais o Cinema Novo, era o delírio pessoal de Glauber, suas cartas do exílio e seu manuscrito-encontrado-numa-garrafa. 
 
Para outros, a cara do Cinema Novo era Nelson Pereira dos Santos, que teve uma carreira totalmente diferente. Amigo de Glauber, Nelson era de outro planeta como pessoa e como diretor. Era um referencial de equilíbrio, de cabeça firme, de habilidade e sobrevivência mesmo no pior dos Anos de Chumbo. E tinha seu viés de doidice tropicalista também, vide Como Era Gostoso Meu Francês (1971), Um Azyllo Muito Louco (1970), Quem é Beta (1972) e outros experimentalismos que não perdiam para os de Glauber. 
 
E Nelson foi um dos esteios de uma faceta importantíssima (para mim, pelo menos) do Cinema Novo, que foi a aliança com a literatura brasileira. Glauber não adaptava ninguém: tudo era ele, e tudo era dele. Nelson construiu pontes cinematográficas com a obra de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, uma aliança onde a obra literária, já consagrada, fornecia o chão, e o cinema fornecia o voo. 



(Nelson Pereira dos Santos) 

 
Não vou poder desfiar aqui o perfil de cada um dos cinemanovistas –  Arnaldo Jabor, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Paulo César Sarraceni, Leon Hirszman... Tantos e tantos outros... Cada um deles é um cinema-novo à parte. E Cacá Diegues? 
 
Cacá era um cara de conversa longa e prazerosa, de temperamento cordial, sorridente e gentil  -- é a imagem que me ficou das vezes em que estivemos juntos. Tinha um perfil de amante do cinema, do espectador que vira diretor pelo prazer de trazer um instrumento novo à orquestra coletiva. 
 
Muitos diretores queriam chutar o pau da barraca, desafinar o coro dos contentes, explodir a tela em fotogramas, bouleversar para sempre o juízo das platéias. Não era o caso dele, que mesmo em seus filmes mais incisivamente políticos estava mais focado nas pessoas, nos dramas, tragédias, farsas e comédias em que as pessoas se metem por causa de coisas como política, dinheiro, poder, sexo, violência, e o mais que se segue. 
 
No cinema de Cacá sempre vi também um respeito grande e uma curiosidade grande pelos temas nordestinos. Ele era um nordestino transplantado, como tantos outros, nascido em Maceió mas vindo muito cedo para o Rio. E lembro da leve surpresa que tive, já com mais de trinta anos, quando descobri que ele era filho de Manuel Diegues Jr., grande estudioso da cultura popular, autor de ensaios definitivos sobre a literatura de cordel e a poética dos cantadores. 



 
É de Cacá a boutade famosa de dizer que aqui no Brasil “Cinema é apenas uma abreviatura de Cinema Americano”. Muita gente via nessa frase uma confissão de subserviência diante de Hollywood; eu sempre a vi como um diagnóstico sincero do que é ser espectador de cinema num país como o nosso. 
 
E olha que quando Cacá disse esse gracejo, nosso mercado era muito mais aberto a produções do mundo todo. Em Campina Grande, nas décadas de 1960-70, eu via a toda hora filmes russos, japoneses, mexicanos, iugoslavos... E o próprio cinema norte-americano ainda não estava sujeito à ditadura do “primeiro fim de semana”, que decide a vida e a morte de um filme. Ainda estávamos longe das distorções do século atual, quando um único filme de super-heróis ocupa, simultaneamente, 80% ou mais das salas de exibição do Brasil inteiro. 



 

Cacá nunca deixou  de dirigir, mas tornou-se produtor, e é neste aspecto que vejo nele (e em Nelson Pereira) uma cara mais “Cinema Novo” do que a de Glauber, que será sempre um irredutível número-primo em nossa História e nossa Cultura. Glauber forcejava para ser uma eterna exceção, mas cineastas como Cacá Diegues e Nelson ajudaram a pavimentar o caminho para a criação de uma regra. A criação (sempre polêmica e contraditória) de uma indústria cinematográfica, capaz de atrair (e salvar!) cineastas, roteiristas, atrizes, atores, fotógrafos e tudo o mais. 



 
Arte é uma coisa engraçada. Quando um artista morre, a primeira coisa que a gente sente é o choque da perda humana, da perda individual, ainda mais quando é alguém que a gente conheceu pessoalmente. Aquela ausência nunca mais será preenchida. Aquele vácuo vai ficar sempre ali, até o dia em que sejamos nós a falta que vai ficar. 
 
Mas nesse momento a gente procura se refugiar na obra. Reler o livro, botar o CD pra tocar, dar play no filme. A morte recente de David Lynch, no mês passado, me fez rever uns 4 ou 5 filmes e pegar agora as 3 temporadas de Twin Peaks, que estou revendo à razão de um episódio por dia. (Sou aristotélico: tudo meu é com planilha.) 



 
O que tenho de Cacá, aqui em casa? Tenho Bye Bye Brazil (1980), o meu preferido, que vivo revendo. Devo ter também Chuvas de Verão (1978), uma beleza de filme sobre o Rio de Janeiro (o Rio de Janeiro não é um conjunto de paisagens, é uma galeria de tipos humanos que só poderiam ter brotado aqui).  

No YouTube, de ontem para hoje, já achei e marquei Ganza Zumba, Rei dos Palmares, 1963 (um épico juvenil, abrindo a possível trilogia que inclui Xica da Silva, 1976, e Quilombo, 1984), A Grande Cidade (história das pessoas anônimas que são mais reais do que as pessoas famosas). 
 
Tem outros por aí, e curiosamente vejo agora que tem vários que nunca assisti: Dias Melhores Virão (o filme sobre os dubladores!), O Maior Amor do Mundo, O Grande Circo Místico... Vou botar cerveja pra gelar. Lembro que alguns deles foram desancados por este ou aquele crítico, o que não deixa de ser uma recomendação e um alerta, um pisco no radar. 



(Deus é brasileiro)


E lembro uma conversa que tive com um crítico de cinema (não-profissional) quando assisti Deus é brasileiro (2003). Falei que gostei muito do filme. Meu amigo perguntou: “É mesmo? É alguma obra-prima, então?”  E eu disse: “Longe de ser uma obra prima, mas é um filme que eu precisava ver e não sabia, e acho que qualquer filme ganha mais sendo isso do que sendo obra-prima”. 









 
 
 
 
 





quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

5152) Um paraibano na Copa do Mundo (12.2.2025)




 
Ser o primeiro jogador paraibano a disputar uma Copa do Mundo é algo tão importante quanto ser a primeira atriz brasileira (ou a segunda) a ser indicada para o Oscar. 
 
No resto do mundo, fora do “universo de interesse”, fora dessa bolha (por maior que seja, é uma bolha), pode não ter a menor importância; mas só quem chega a esse patamar sabe a ladeira que subiu. 
 
A verdade é que se um filme brasileiro ganhar um Oscar ou um escritor brasileiro ganhar um Prêmio Nobel todo brasileiro (=um grande número de brasileiros) se sentirá implicitamente valorizado por essa premiação. Um pouco dessa glória choverá sobre nós, que compartilhamos com o premiado um parâmetro dos mais importantes: somos do mesmo país, do mesmo caldo cultural. 
 
Me lembro do que dizia Jorge Luís Borges: “Talvez algum átomo de oxigênio que eu respiro agora já tenha sido respirado por Shakespeare”. 




 
Se Fernanda Torres (que eu admiro muito) ganhar um Oscar, tenho o direito (poético) de imaginar que uma raspa da estatueta dourada choverá sobre meus cabelos, e poderei espalhá-la com o pente. Serei (poeticamente) oscarizado também. 
 
Se em vez da atriz for premiado o filme, comemorarei também. Meus amigos do-contra escarnecerão: “Ah, está comemorando vitória de um bilionário? Você não diz que combate eles?...” Em primeiro lugar, não combato bilionários, combato os mosquitos da dengue, uma luta onde pelo menos posso contabilizar relativas vitórias. E se a categoria “poder aquisitivo” me distancia do bravo Walter, somos aproximados pela categoria “colaborador-na-construção-da-muralha-da-China-levemente-absurdista-que-é-o-cinema-brasileiro,-uma-indústria-em-país-ocupado”. Fica uma coisa pela outra. 
 
Uma exposição que se abriu hoje em João Pessoa (Manaíra Shopping, em frente à Livraria Leitura) celebra o jogador Índio, do Flamengo, hoje meio esquecido pela imprensa e pela torcida. É compreensível. Eu mesmo, que sou paraibano, sou flamenguista, e ainda tenho o cacoete das estatísticas de futebol, lembrava o nome dele, mas somente como atacante do Flamengo, nem lembrava dessa passagem pela Seleção.
 
E hoje cá estou eu, cheio de orgulho retroativo, imaginando como eu-menino teria me sentido, se na infância longínqua tivesse sabido que ele era paraibano. 



(Índio, com a bola, entre Evaristo de Macedo e Didi)


A exposição é organizada por Fábio Henrique Alves, também autor da biografia Índio, o Herói de 57 (Livros De Futebol, 2022), e de um documentário sobre o jogador. 
 
Quando Índio teve seu auge no futebol, no Flamengo, em meados dos anos 1950, eu nem era gente ainda. Pelo clube rubro-negro ele realizou (entre 1951 e 1957) 202 jogos e marcou 134 gols. 
 
Meu pai colecionava revistas de futebol, entre elas a inesquecível Manchete Esportiva, e foi ali que ouvi falar em Índio pela primeira vez. Não sabia que era paraibano e, pensando bem, talvez se soubesse não tivesse dado importância. Quando eu era menino, Campina Grande e o mundo eram uma coisa só. 



(A batalha de Berna: Hungria 4x2 Brasil) 

 
Há dois grandes momentos na carreira de Índio na Seleção. Ele jogou na partida conhecida como “a Batalha de Berna”, na Copa da Suíça em 1954, quando o Brasil foi eliminado pela Hungria, num jogo de muitos pontapés, algumas expulsões, que terminou 4x2 para os húngaros. 
 
O segundo momento foi em abril de 1957. O Brasil disputava um mata-mata contra o Peru. Quem ganhasse iria à Copa da Suécia em 1958. No primeiro jogo, em Lima, o Brasil conseguiu empatar por 1x1, com gol de Índio; e classificou-se na volta com 1x0, no Maracanã, graças a uma folha-seca de Didi. 




Eu soube de tudo isto lendo na Manchete Esportiva, que meu pai encadernava. Já com 12 ou 13 anos, eu sentava na poltrona com um volume ao colo (era uma revista grande, maior que a Piauí) e ia descobrindo o imprevisível passado. 
 
Índio nasceu em Cabedelo em 1931, morreu no Rio de Janeiro em 2020, aos 89 anos. Além do Flamengo, jogou no Corinthians e no Espanyol (Barcelona). 




 
Toda vez que eu, como torcedor do Flamengo, via um jogador nordestino vestindo aquela camisa, sentia um orgulho particular, semelhante ao que muitos fãs do cinema brasileiro sentem quando veem Rodrigo Santoro, Sonia Braga ou Selton Mello trabalhando em grandes produções internacionais. Eu lembrava logo o alagoano Dida, o alagoano Zagalo, o sergipano Nunes, o paraibano Júnior, sem falar em vários baianos, desde Júnior Baiano até Hernane “Brocador”.  

E, é claro, o cearense Everton Cebolinha, o maranhense Wesley, e o potiguar Ayrton Lucas (“acelera, Ayrton!”). 
 
Aqui, no “Baú do Esporte” da TV Globo, uma entrevista com Índio, aos 81 anos, e imagens raras de um Flamengo x Vasco em que ele marca gol.
https://www.youtube.com/watch?v=70JfW_T9ilQ
 
A exposição ‘Índio – O Primeiro Craque’ será realizada no Manaira Shopping (em frente a Livraria Leitura), de 12 a 16 de fevereiro, das 14h âs 20h. A Realização é do Manaira Shopping e TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo, na Paraíba. A exposição terá uma série de objetos utilizados pelo ex-jogador durante a sua trajetória no futebol, acervo de Fábio Henrique Alves.
 




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

5151) E uma canção me consola (10.2.2025)





Que mistério tem Coutinho? O documentarista, falecido há cerca de dez anos, deixou uma obra que tem sido variadamente analisada ao longo destas últimas décadas. Há quem goste muito (a maioria), há quem não goste, há quem não se interesse. 
 
Num ponto, contudo, creio que todo mundo concorda: Coutinho tinha o dom de ouvir. Tinha a capacidade de colocar diante da câmera uma pessoa de verdade (não um ator, não um político, não um intelectual, não alguém acostumado a falar em público), e extrair dela depoimentos sinceros, espontâneos, verdadeiros (ou sinceramente mentirosos). 
 
(Falei isto porque lembrei que em O Fim e o Princípio um dos entrevistados conta como foi ao Inferno e conseguiu voltar.) 




Reza a lenda que em geral Coutinho não conversava com seus “personagens” antes da entrevista. A pesquisa era feita antes, e todos os contatos com os entrevistados ficavam a cargo de sua equipe, de seus assistentes. Quando estava tudo pronto para rodar, ele aparecia, cumprimentava, e começava a fazer perguntas. 
 
Não sei até que ponto isso era uma técnica recorrente, mas já ouvi gente comentando que este método ajuda a entrevista a ter mais peso. Uma longa conversa prévia é algo bom, mas, de certa forma, atenua a tensão de quem está sendo entrevistado. Coutinho aparecia com um certo impacto, mas deixava o entrevistado à vontade com seu jeito de falar – um tanto brusco mas espontâneo. Um tom de-pessoa-para-pessoa, que geralmente dava mais verdade àquele diálogo. 



Vi estes dias, pela primeira vez (verei outras), As Canções (2011), um filme de hora e meia que mostra pessoas cantando e conversando. 
 
A idéia de Coutinho foi muito simples: seus pesquisadores ficavam parados, no Largo da Carioca, no centro do Rio, com uma placa: “Qual é a canção da sua vida?”. As pessoas chegavam perto, cantavam, deixavam as informações. Do enorme banco de dados foram escolhidas vinte pessoas. 
 
As regras eram simples: um palco escuro, uma cadeira e a equipe de filmagem. A pessoa teria que cantar uma música apenas, “à capela” (sem instrumentação), e depois explicar por que aquela canção era tão importante para ela. 





E assim se sucedem músicas variadas, do repertório de Roberto Carlos, Jorge Ben, Noel Rosa, Tom Jobim & Chico Buarque, Silvinho, Nelson Gonçalves, Wanderléa... 
 
Séculos atrás, a música era uma experiência rara: concertos em teatros, palácios, igrejas; ou então cantorias populares para gente de pés descalços, nas praças, nas feiras, nas ruas. 
 
Hoje, é este oceano de som onipresente onde nadamos. Rádio, televisão, os aparelhos-de-som em cada casa, a eterna “muzak” dos elevadores e das esperas-telefônicas, e agora a Internet e os celulares. Nunca a música foi tão massacrante quanto nos últimos 120 anos. 




Nossa vida tem trilha sonora. O repertório é determinado em parte por escolhas nossas e em parte pelo Acaso – pelo que a rua, a cidade e os eletrônicos nos oferecem para escutar. (Nos obrigam a escutar.) 
 
Coutinho pergunta: “Qual é a música da sua vida?” Ele sabe que este é um conceito familiar à maioria dos brasileiros. Gostamos de eleger músicas especiais associadas a momentos especiais da vida. Casais que se amam gostam de escutar mil vezes, de mãos dadas, “a nossa canção”. 
 
A canção fala por eles, diz por eles o que não conseguiriam dizer sozinhos. Como no mote tradicional da Cantoria de Viola: “Poeta, diga o que eu sinto; / que eu sinto, porém não canto”




As pessoas escolhidas por Coutinho cantam bem? Sim e não. “Não” porque volta e meia estão desafinando, desentoando, semitonando, falhando uma nota mais aguda ou mais grave, “mentindo” uma frase musical mais complexa. Pudera. São vozes não treinadas, não trabalhadas. Certamente renderiam melhor, com o que já têm, se submetidas à rotina de treinos de um cantor profissional. (“Profissional”, neste caso, é quem treina com afinco, não quem recebe pagamento.) 
 
E cantam “bem”, sim. Demonstram o que a crítica chama “a musicalidade nata do povo brasileiro”, a consciência das notas a serem cantadas (mesmo que na hora a garganta escorregue).  Mesmo quando perdem algumas notas, essas pessoas geralmente demonstram sensibilidade para a frase musical, sabem levá-la até o fim, têm a percepção instintiva do seu desenho rítmico e melódico. 





Acho que na música, como na literatura, a frase importa mais do que a nota ou a palavra, no sentido de que é a unidade expressiva básica. Mesmo quando há um erro de nota ou de palavra, se a frase é forte ela se impõe, e é o que importa. 
 
As pessoas tão simpáticas e às vezes pitorescas de As Canções são não-cantores cantando num ambiente estranho, sem acompanhamento musical. De vez em quando alguém dá uma desentoada braba e a música derrapa para outro tom, o que dificilmente aconteceria se tivessem um violão acompanhando. 





Não é uma performance musical – a intenção é que seja um depoimento, mas essas pessoas demonstram o prazer singelo de cantar para uma equipe de filmagem e saberem que provavelmente serão vistas numa tela de cinema. 
 
E choram. Aquela canção sempre remexe alguma coisa. A certa altura começam a segurar um choro, naquela catarse mansa de quem domina a prática de puxar as emoções para fora e dar-lhes um polimento de vez em quando. Bons documentários têm estes momentos de deixar fluir, deixar acontecer em paz, deixar o entrevistado ir se soltando e trazendo assuntos por conta própria. 
 
Coutinho (a crítica fala isto de vez em quando) tem algo do espírito de psicanalista: aquele presença pressionante e silenciosa.  E o entrevistado se sente à vontade para responder-lhe à altura quando ele faz suas intervenções bruscas, coloquiais. “Gente conversando” e não “jornalista perguntando”. 
 







sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

5150) Luís Custódio, 1950-2025 (7.2.2025)


 

 
A vida traz os amigos, a vida os leva. Para alguns milhares de paraibanos, Luís Custódio, falecido dias atrás, era o “professor Custódio”, que durante muitos anos formou gerações sucessivas de jornalistas nos nossos cursos de Comunicação. Vendo os obituários na imprensa, fiquei sabendo alguns detalhes de sua carreira que eu nem sabia. Cursos, títulos, pioneirismo no ensino... Nada me surpreendeu. 
 
Fomos da segunda geração do Cineclube de Campina Grande, a turma que em 1967 recebeu de Dorivan Marinho a documentação e o arquivo do CCCG, que estava então inativo, e o botou para funcionar. Éramos um grupo de garotos, todos com menos de vinte anos, “nerds” (a palavra não existia) que comiam, bebiam e respiravam cinema. 
 
Quando a primeira diretoria foi eleita, Custódio ficou como presidente e eu como secretário. Ele me disse depois da votação: “Você poderia ser o presidente, mas o problema é que você é muito tímido”. Eu disse: “Custódio, graças a Deus vai ser você, eu não gosto de assumir responsabilidades.” 
 
O deus-pequenino de Custódio era Michelangelo Antonioni, cuja famosa trilogia (A Aventura, A Noite e O Eclipse) ele deu um jeito de ver, não sei como, porque todos eram filmes “proibidos para menores de 18 anos”. Eram filmes castos, o sexo era implícito e fora de cena, mas aqui-e-acolá apareciam mulheres bêbadas dançando de forma provocante. Vai ver que era por isto a censura. 



(Cineclube de Campina Grande, 1967. Ao centro, o presidente Luís Custódio. Eu sou o de óculos. Foto: Jakson Agra. ) 

 
Apesar de não termos tanta-coisa-assim contra mulheres bêbadas dançando de forma provocante, o que nos atraía em filmes desse tipo, além das imagens (pouca gente usou o preto-e-branco tão bem quanto Antonioni) era o tema da “incomunicabilidade”. Éramos todos um bando de adolescentes tímidos, livrescos, hipopótamos, e não nos encaixávamos de jeito nenhum no modelo playboy da época. Para nós, era mais fácil dizer a uma garota que a sociedade tecno-burocrática canalizava a libido e os sentimentos para a produção de mais-valia do que perguntar se ela queria um sorvete.  
 
(Eu fui salvo pelo violão, a banda de rock, e depois os grupos de teatro.)  
 
Em termos de cinema de arte, Custódio era mais purista do que eu, e às vezes se escandalizava quando eu colocava Alfred Hitchcock num pedestal à mesma altura de Antonioni ou Ingmar Bergman.  Por outro lado, éramos militantes fiéis do cinema de Richard Lester, que para nós era tão moderno e inventivo quanto o de Godard. 
 
Colecionávamos todos os volumes da “Biblioteca Básica de Cinema” da Ed. Civilização Brasileira, e um dos grandes momentos da história do CCCG foi quando exibimos Rocco e Seus Irmãos de Luchino Visconti – depois de termos lido e relido o roteiro publicado na “BBC”. 

 


(Sede da União dos Moços Católicos, por trás da Catedral, onde funcionou o Cineclube de Campina Grande)

 
Outro grande momento foi quando, através de contatos que tínhamos no Rio de Janeiro, nos ofereceram a chance de exibir os curta-metragens premiados no “Festival JB/Mesbla”. Fizemos uma sessão cheíssima no auditório do Colégio das Damas (com convites impressos!). E não é preciso dizer que, fora a sessão oficial, exibimos vezes sem conta, em nossa própria sala, nossos filmes preferidos. (O meu continua sendo Telejornal de Oswaldo Caldeira, uma espécie de FC sobre cidade-abandonada-no-futuro, ao som de “A Whiter Shade of Pale”). 
 
Durante o ano de 1968, Custódio tomou conta da programação do Cine Distração (acho que era esse o nome), a sessão das 10 da manhã do sábado, que o Cine Capitólio adotou para seguir a moda lançada pelo Cine São Luiz, do Recife (acho que lá o nome era “Sessão Bossa Jovem”). Muita gente dizia: “Sábado de manhã? Não vai colar.” Colou. As sessões botavam gente pelo ladrão para ver os filmes que ele selecionava: A Fonte da Donzela de Bergman, O Processo de Orson Welles, A Bossa da Conquista de Lester... 
 
Este último ficou sendo uma obra-prima definitiva para nós. Não só pela linguagem leve, fragmentada, descontínua e absurdista, mas pelo seu tema – rapazes desajeitados e feiosos morrendo de inveja de um amigo que conquista todas as garotas. Porque éramos assim. Ficávamos sentados nos degraus do Estadual da Prata (no turno da noite), passava uma colega nossa, esvoaçando com todas as asas dos seus dezessete anos, e Custódio murmurava: “Eu sou meio apaixonado por essa menina”, e eu respondia baixinho: “Eu também”. 
 
Nunca estudamos na mesma turma – apesar de termos quase a mesma idade (ele era alguns meses mais velho): eu tinha perdido um ano no Ginásio, e ele estava um ano à minha frente. E foi um dos primeiros a arribar de Campina Grande para fazer vestibular no Recife, onde ficou durante muitos anos, estudando jornalismo, dividindo com alguns amigos um apartamento onde me hospedei de passagem mais de uma vez. 
 
O tempo continuou passando, eu casei, ele casou, ele virou professor, eu virei artista, o cinema nunca saiu da nossa cabeça.  Ele mergulhou muito profundamente nesse ideal de ensinar jornalismo, e aqui nem digo nada – basta ver as dezenas de depoimentos emocionados dos seus alunos, de quinta-feira para cá. Ser artista é muito bom, porque (dizem) faz vibrar o coração das platéias. Mas ser professor é algo muito diferente, é produzir uma vibração que acompanha aquele aluno ou aluna pelo resto da vida. Ter sido amigo de Custódio me consola um pouco de nunca ter podido ser aluno dele. 
 


(The Wild Bunch. Alguns remanescentes do CCCG, em 2015: Luís Custódio, Rômulo Azevedo, BT, Romero Azevedo.)





(Em 2017, no Bar do Baixinho)

 




terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

5149) As anotações finais de Antonio Cândido (3.2.2025)




(Gilda de Mello e Souza e Antonio Cândido)
 
 
No ano passado chegaram à web duas belas homenagens a Antonio Cândido (1918-2017), sociólogo, ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), e um dos grandes críticos de literatura de sua geração. 
 
Um filme mais profissional, feito pelo veterano Eduardo Escorel, e outro mais intimista, mais coloquial, tendo como foco as conversas de Cândido com sua neta. 
 
Este último é O Avô na Sala de Estar: a prosa leve de Antonio Cândido (2024), e tem algo de filme doméstico que antigamente era rodado no formato Super-8 para ser exibido nas reuniões de família, ou enviado a parentes distantes para amenizar saudades. São pessoas trocando idéias, checando lembranças, respondendo a pequenas curiosidades. A direção é de Marcelo Machado e Fabiana Werneck, que acompanham as conversas entre o professor, então com 91 anos, e sua neta Maria Clara Vergueiro. 
 
O segundo filme, Antonio Cândido: Anotações Finais  (2024), dirigido por Eduardo Escorel, é mais elaborado como narrativa. Ele recorre às anotações dos cadernos pessoais que Cândido manteve a vida toda, uma espécie de diário íntimo onde ele comentava o mundo, registrava fatos do dia e da vida política, pregava fotos e recortes. 
 
O texto surge na voz de Mateus Nachtergaele, como substituto da voz de Cândido. Muito plausível e bem encaixada, em termos de dicção, pronúncia, gravidade e ritmo. A voz flui em paralelo com a página manuscrita, onde a caligrafia é solta, segura, legível, e se encadeia sem esforço ao fluxo do pensamento. 



 
Com mais de 90 anos de idade, Cândido queixa-se das pernas, e o filme mostra as calçadas paulistanas por onde ele caminhava todo dia, mas cada vez menos.  Ele comenta, com a curiosidade distanciada de cientista, a diferença do “ser” com o corpo em repouso, quando tudo parece estar normal-como-sempre-foi, e o corpo em movimento – quando os problemas começam a aparecer. 
 
Muitas das rememorações de Cândido se referem à família, à infância. A memória dos velhos é como um gramado onde logo se veem os caminhos muito percorridos. Percorrê-los mais uma vez os traz de volta à existência compartilhada, ao mundo das coisas verbalizadas, coletivas. Cândido nasceu em 1918, e a história de sua vida de rapaz, de estudante, de professor, de autor, está o tempo inteiro costurada aos fatos da História do Brasil. 
 
“O pai de Vovó Mariana enriqueceu no tráfico [de escravizados]”, informa ele, aduzindo em seguida que o dinheiro dessa atividade do bisavô não chegou à mãe. 



 
Cândido lembrava de maneira recorrente, ao discutir literatura, que sua formação era de Ciências Sociais, e que para ele a literatura não se limitava a questões estéticas, precisava ser vista em conjunto, no seu modo de brotar naquele lugar e naquele momento. Cabe ao crítico (e ao leitor) entender o como, o por quê e o para quê de uma literatura assim. 
 
Toda literatura é um acordo entre o coletivo e o individual. Todos nós escrevemos para o nosso tempo, inclusive quando queremos escrever contra ele, ficar livres da presença dele. 
 
Ninguém é moderno em 360 graus, na verdade. Ninguém é ousado em todas as direções. Cândido lembra que um iconoclasta como Baudelaire era moderno pela temática, pelo vocabulário, pelos seus retratos escandalosos da sociedade, pelo uso de drogas, pelas perversões sexuais – mas Baudelaire escrevia sonetos tradicionais e impecáveis, e poemas longos que eram classicamente rimados e metrificados.  
 
Não admira que as gerações seguintes, os Mallarmés, os Maiakóvskis, procurassem explodir também essas formas. “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”. Tinham razão, porque cada um escrevia para o seu tempo. Todo vanguardista numa direção é conservador em alguma outra. Em literatura, ninguém incendeia uma floresta; no máximo, pode atear fogo à própria árvore. 
 
Curiosamente, Cândido confessa nas Anotações Finais que a poesia, embora o comova, não lhe produz reações fortes, reações físicas como choro, tremores, etc.  Quem consegue isso (diz ele) é a prosa de ficção. E passa a enumerar algumas das obras que em diferentes idades sucessivas, desde a adolescência, lhe produziram essa comoção física: Os Miseráveis (Victor Hugo)... o Père Goriot (Balzac)... Os demônios (Dostoiévski)... Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)... 
 
É curioso que um crítico admita esse impacto (que em mim é muito raro, mas já aconteceu, e o compreendo) não na poesia, que parece ser mais emotiva, mas na prosa. Cândido talvez fosse mais sensível a essa perspectiva ampla, coletiva, que no romance é superior à da poesia. Aquilo que chamamos de “os grandes painéis históricos e humanos”.  E não é toda prosa, qualquer prosa: ele próprio afirma que há grandes escritores que não o emocionam assim. Como Machado de Assis: “prende, mas não abala”. 



 
(Antonio Cândido e Gilda de Mello e Souza) 

 
Fiquei fazendo uma conexão entre este trecho e outro depoimento, desta vez em O Avô na Sala de Estar. A certa altura, Cândido faz, para a neta, uma distinção interessante. Ele diz:
 
-- Eu expliquei pras minhas filhas. “Ah, você é mais afetuoso que a mamãe...”  Não. O negócio é o seguinte: eu sou mais afetuoso que a sua mãe, mas sua mãe é mais afetiva do que eu. Eu sou muito afetuoso. Eu encontro qualquer pessoa, “Oooh... como vai... você vai bem...  senta aqui, vamos conversar...”  Sua avó era mais seca. Agora, o sentimento... Sua avó era mais afetiva do que eu. Sua avó gostava muito mais das pessoas. 
-- Era mais emotiva?
-- Emotiva, e afetiva. Eu não sou.
-- Você não liga a mínima!
-- Eu sou muito indiferente pro meu próprio... Sou muito cordial, por isso sou muito afetuoso. “Oh, João, como vai, venha, João, apareça, e tal...” Mas no fundo, é uma pessoa que... Eu sou morno. Não sou nem quente nem frio. Não tenho ódio às pessoas, não quero mal às pessoas, também não quero muito bem. 
 
Do jeito que o mundo anda, em plena exaltação carnavalesca à emoção despudorada, não duvido que daqui a algumas décadas resolvam cancelar Cândido por sua tepidez confessa. Mas a simplicidade corajosa com que ele se descreve me deixa pensando no que diabo as nossas sociedades costumam carimbar como “normalidade afetiva”, e imaginar que, daqui a algumas décadas, pessoas como Antonio Cândido (e talvez eu próprio) venham a ser classificadas dentro de algum espectro psico-divergente, e precisem tomar algum abracadabra farmacêutico. 
 
Talvez seja essa afetividade contida a responsável por algumas das grandes viravoltas na vida do professor. Nos dois filmes que estou comentando ele lembra de forma renitente, reiterada, a figura de Gilda de Mello e Souza, a esposa falecida, e afirma que encontrá-la, conhecê-la, casar com ela foi o fato mais importante de sua vida. O que é normal (imagino) em pessoas que viveram juntas por mais de sessenta anos. E ele sente a sua perda como uma “injusta mutilação”. 



(Gilda de Mello e Souza e Antonio Cândido) 

 
A certa altura, porém, Cândido afirma que seu encontro com Gilda foi acima de tudo um encontro de amizades, e que ele e ela foram amigos durante quatro anos antes de começarem a namorar. Não seria isto um indício de uma afetividade (ou afetuosidade) sob controle?  De uma relação que se constrói no vagar da vida real, e não no arrebatamento das paixões repentinas? A pensar. 
 
Nonagenário, o professor se auto-examina e descreve a si mesmo nestes termos: “Inquieto, tenso, insatisfeito, mas com uma dose forte de bom humor – que não perdi.” Tomara que qualquer um de nós, com mais de noventa anos, tenha a graça de se sentir assim. 
 
 
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O Avô na Sala de Estar está no streaming do SESC Digital:
https://sesc.digital/conteudo/filmes/cinema-em-casa-com-sesc/o-espirito-da-colmeia
 
O documentário Antonio Candido, anotações finais já pode ser alugado nas plataformas de streaming Claro TV (antiga NET NOW) e Vivo Play, via Canal Brasil. O filme também entra na programação do canal em fevereiro.