Meu saudoso professor da Escola de Cinema da UCMG, o
padre Massote, costumava palestrar longamente sobre os aspectos arquitetônicos
do cinema de Michelangelo Antonioni, um dos seus diretores preferidos. Parece
estranho, eu sei, um padre católico mineiro gostar de um diretor tão crítico da
religião, tão voltado para os dramas eróticos e existenciais de gente rica,
burguesa, européia.
Acontece que Massote era acima de tudo um adorador da
imagem, e aqui não me refiro à arte sacra: era a imagem cinematográfica
mesmo, aquele mundo falso-3D no 2D da tela, aquela Terra plana e vertical,
aquele planeta retangular.
Nisto ele seguia uma tradição brasileira, a proximidade filosófica
entre a doutrina católica e a fascinação pelo cinema. O cineclubismo
nordestino, por exemplo, sempre recebeu muito apoio das dioceses e paróquias
locais, inclusive nas épocas da “caça às bruxas”, em que jovens de 18 ou 20
anos podiam ser presos (ou pelo menos intimados a prestar depoimento no
quartel) somente porque estavam exibindo Aruanda
de Linduarte Noronha.
E havia a tradição dos livros de autores católicos que
minha geração lia com aplicação, como os Elementos
de Cinestética do Pe. Guido Logger, O
Cinema tem Alma? de Henri Agel, Caminhos
do Cinema do paraibano José Rafael de Menezes, Noções de Cinema do Irmão Samuel...
Nenhum desses livros nos conduziu ao Seminário, assim
como Aruanda não nos conduziu às
Ligas Camponesas. Por que? Talvez porque nossa geração (ou pelo menos a turma
com quem eu convivia mais) tivesse sido tocada mais pela imagem do que pela
mensagem.
Revi agora O
Eclipse (1962) de Antonioni, que não via há mais de vinte anos. É um filme belo,
frio, luminoso como um bisturi. Dizem que Antonioni celebrava (criticava? lamentava?)
o vazio emocional de seus personagens de classe média alta, e para conseguir
melhor esse objetivo drenava as emoções da platéia, impedindo que ela se
envolvesse, se identificasse, sofresse, risse, ficasse comovida ou assustada.
Neste sentido, o cineasta de Deserto Vermelho talvez fosse o mais brechtiano dos diretores, não
fosse pelo fato de que, ao contrário de Brecht, não oferecia um substituto
nítido para a catarse emotiva – não propunha um tipo qualquer de iluminação da
consciência. Nada disso. Na maioria dos filmes dele, e em O Eclipse especialmente, vemos personagens que parecem ter olhado
para o abismo e deixado lá tudo que traziam dentro de si. Voltaram “só a
casca”.
Ninguém ilustrou melhor esse vazio do que Mônica Vitti,
que foi casada com o diretor nesse período, e apareceu para o mundo em quatro
filmes sucessivos dirigidos por ele: A
Aventura (1959), A Noite (1960), O Eclipse (1962) e Deserto Vermelho (1964).
Os minutos iniciais do filme são uma amostra dos
contrastes que ele malabariza. Começam os letreiros (o filme é em
preto-e-branco) ao som de uma cançãozinha-pop estridente e banal. Quando surge
o letreiro “Música: Giovanni Fusco”, começa a trilha sonora de verdade, atonal,
dissonante, ora ruidosa, ora minimalista. Uma música “de clima”, um clima de
expectativa e estranheza.
Essas duas referências acompanham o filme todo. Podemos
dizer que está dividindo entre a estridência formal da vida moderna e a
melancolia desamparada dos que não conseguem se integrar a ela.
Um apartamento, paredes cobertas de pinturas, um
ventilador ligado. Silêncio. Um homem de camisa branca (Francisco Rabal,
“Riccardo”), uma mulher de vestido preto (Monica Vitti, “Vittoria”). A câmera
acompanha a mulher enquanto ela vagueia pela sala, mexe nos objetos. O homem
está sentado, olhando para ela. O diálogo que começa entre os dois é frouxo,
desinteressado, vê-se que ela não quer mais nada com ele, mas ele ainda
insiste, sem forçar. Há copos de bebida, cinzeiros cheios. Vê-se que passaram a
noite acordados, discutindo. Sem violência, mas naquela areia-movediça mental
em que quando mais se conversa menos se entende.
Ela se despede, volta a pé para casa, e aí vemos que os
dois estão num bairro de edifícios modernos com vastos espaços vazios entre
eles. É a área residencial e de escritórios chamada “EUR”, espólio do fascismo,
e, na época do filme, talvez um sintoma de que a Roma milenar estava
mergulhando de cabeça nas novidades americanizadas do pós-guerra (uma constante
no cinema italiano dos anos 1940-50-60).
A certa altura surge o que é talvez a cena mais polêmica
do filme: um número de dança blackface.
Vittoria e uma amiga visitam outra mulher, que mora no Quênia e tem opiniões
arrepiantemente racistas sobre os africanos. Este seu apartamento em Roma é
coberto por objetos nativos, fotos, etc. E então, “do nada”, Vittoria se pinta
de preto, veste um traje ficcionalmente africano e executa uma dança selvagem.
Como disse um crítico da época: “Passarão mil anos e Mussolini continuará
invadindo a Etiópia”.
Nos planos externos dessa parte do filme Antonioni se
multiplica (com o fotógrafo Gianni di Venanzo) em ângulos de pessoas perdidas
numa paisagem de superfícies vazias e enormes blocos de concreto. Essas
sequências lembram Brasília, lembram o sonho modernista de eliminar tudo que
seja rugosidade, dobras, capilaridade, proliferação biológica. Lembram o poema
de João Cabral de Melo Neto:
A luz,
o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O
lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em
certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A
água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Em O Engenheiro, 1942-45)
Essa arquitetura (que no filme cumpre um papel
modernista, independente de seu estilo) contrasta com as sequências que trarão
o namoro seguinte de Vittoria, com o jovem workaholic
Piero (Alain Delon). Nas cenas no centro
velho de Roma, na Bolsa de Valores, tudo é o contrário desse episódio inicial.
Os velhos prédios carcomidos, escritórios desmazelados, cheios de tralha
funcional (papel, máquinas de escrever, pastas, anotações...) e na Bolsa
propriamente dita o berreiro frenético dos investidores.
Nas sequências da Bolsa e sua gritaria atordoante,
Antonioni cria uma coreografia circular de homens possessos, e faz Alain Delon
rodear esse círculo, rompê-lo, entrar, sair, numa dança precisa. (Conta-se que
o diretor escolheu um investidor real e fez o ator copiar-lhe os mínimos
gestos.)
Delon está no auge de sua versatilidade física, saltando,
correndo, esbarrando, gesticulando com veemência. A certa altura, Vittoria
pergunta, agastada: “Você não pára?!...” Ele é um personagem totalmente
moderno, um yuppie (a palavra não
existia em 1962) jovem, obcecado em fazer muito dinheiro no menor tempo
possível, o cara que não pára, não relaxa, só pensa em dinheiro, mal escuta o
que lhe dizem...
No filme, ele é o contrário de Monica Vitti, que aperfeiçoou
aqui a sua “persona” frágil, desamparada, hesitante, parecendo consumida por
algo que não pode revelar. Aquilo que o crítico
Andrew Sarris chamou de “antoniennui”
(“antedioni”?...). Ela exprime melhor que ninguém aquela instabilidade que
Antonioni imprime a alguns personagens, que parecem (no dizer de David Thomson)
“epidermes frágeis que mal conseguem roçar umas nas outras sem se ferir”.
Nesses filmes Antonioni/Vitti renasce o mito do diretor
que usa a câmera para acariciar o corpo da mulher que o inspira, como fizeram
Jean-Luc Godard com Anna Karina e Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Não
importa se o cineasta quer mostrar um mundo burguês emocionalmente estéril ou
um vibrante mundo moderno em que tudo parece possível: entre ele e o mundo se
interpõe aquela presença carnal que arrasta a câmera consigo.
O Eclipse
poderia também ser o filme de abertura de um hipotético festival intitulado
“Amores Inconclusos”, e que incluiria também In the Mood for Love de Wong Kar Wai, Vestígios do Dia de James Ivory, Lost in Translation de Sofia Coppola, Nunca Te Vi, Sempre Te Amei de David Jones e certamente muitos
outros.
Dizia-se de Antonioni ser o cineasta da
incomunicabilidade, do desencontro. Ele é também o cineasta do personagem
humano perdido na paisagem urbana, uma paisagem não propriamente ameaçadora ou
hostil (como nos filmes do Expressionismo Alemão), mas indiferente. Uma proliferação
de edifícios em multiplicação constante e que parecem expulsar de seu projeto esses
seres humanos incômodos, que vagueiam como zumbis.
O mundo modernizou-se tão depressa e tão cruelmente que
nos deixou para trás. Minto: nos leva
consigo, mas nos leva fora dele, como astronautas que saíram da
espaçonave para dar uma volta e depois não conseguiram mais entrar, ficaram pendurados
no vácuo, sendo arrastados espaço afora, mas fora do mundo.
Um objetivo aparentemente conseguido na famosa sequência
final de O Eclipse, uma série de
imagens desconexas mostrando os ambientes por onde Vittoria e Piero passaram,
como se os dois tivessem finalmente deixado de existir e a Cidade pudesse ser
somente a Cidade.