sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

5212) "Nouvelle Vague" (19.12.2025)


 
 
Este simpático e devotado filme de Richard Linklater procura reconstituir, ou mitologizar, a criação do filme Acossado (“A Bout de Souffle”, 1959), de Jean-Luc Godard, um dos desencadeadores da “nova onda” do cinema francês, não por acaso um dos meus movimentos cinematográficos preferidos.
 
Preferidos por quê? Primeiro, porque a Nouvelle Vague era novinha mesmo quando comecei a me interessar por ela, sete ou oito anos depois de Godard lançar este filme fundador e demolidor. 

Em Campina Grande, era difícil ter acesso a esses filmes. Eram distribuídos no Nordeste pela Franco-Brasileira, que tinha algum problema de contrato com as duas principais redes exibidoras da Paraíba (Luciano Wanderley, dos cinemas Capitólio/CG e Municipal/JP; e Cinemas Reunidos, dos cinemas Babilônia/CG e Plaza/JP). Às vezes, os filmes vinham. Outras vezes, tínhamos que pegar o ônibus, viajar 4 horas e ver os filmes no Recife. Era mais caro, mas era mais divertido.
 
Meus primeiros godards foram Masculino Feminino (1966) e Alphaville (1965), e talvez sejam (por isso mesmo) meus preferidos.
 
O próprio Acossado eu só vim assistir anos depois, quando morei na Bahia. Mas... e daí? Um dos traços revolucionários da Nouvelle Vague é ter sido um movimento onde os cineastas eram ex-críticos. Foi A Revolução dos Críticos (no caso, os que escreviam na parisiense Cahiers du Cinéma), que se transformaram em diretores e tomaram as rédeas do Poder.
 
Numa revolução assim, livros e artigos na imprensa são tão importantes quanto os filmes em si; e isto não nos faltava. Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Resnais, eram os cineastas jovens em cujos textos, citados, comentados, transcritos, traduzidos, revelava-se também um cinema francês passado que para nós era tão inédito quanto o deles: o cinema de Jean Vigo, Jean Renoir, Robert Bresson...



 
Um livro que para mim foi crucial foi a coletânea Jean-Luc Godard, ed. Haroldo Barbosa (Rio: Gráfica Record Editora, 1968). São longas discussões sobre a obra já considerável do diretor – entre 1959 e 1968 ele dirigiu cerca de 15 longas-metragens e outros tantos filmes curtos ou episódios. 
 
Pouco importava se o leitor desconhecia os filmes. Os exemplos eram descritos com clareza e argumentados com veemência e lógica. A grande pergunta de Godard, a que sempre me seduziu, era: “Por que filmar este plano, e não outro?”. Por que filmar como todo mundo filmava?  A resposta padrão era: “Porque é assim que todo mundo faz.” E ele: “Então vou fazer diferente”. 
 
Curiosamente, é a mesma profissão-de-fé de Guimarães Rosa, numa carta famosa a sua tradutora nos EUA, tentando sossegá-la. 
 
No original, não há, praticamente, lugares-comuns. Tudo é atrevimento, estranhez, liberdade, colorido revolucionário. Todo automatismo de inércia, da escrita convencional, é rigorosamente evitado. Tudo pela poesia e por caminhos novos! Acabarão aceitando. 
(carta a Harriet de Onís, 3-4-1964)
 
Godard assinaria embaixo, e esta é uma das questões que ressurgem em cada cena de Nouvelle Vague. Todo mundo espera uma coisa, e Godard aparece com outra. O produtor se desespera, a estrela sente-se insegura, a maquiadora sente-se desvalorizada... 

O dia de filmagem acaba cedo, a equipe é dispensada depois do almoço, enquanto o diretor faz anotações em seus caderninhos. Quando vão usar o quarto de uma pessoa como locação, alguém começa a arrumar o quarto. Godard pergunta: “Se a gente fosse gravar os sons de uma floresta, começaria derrubando as árvores, espantando os pássaros, para conseguir um som sem interferência? E então? Deixa o quarto como está.” 



Isso vale para todos os filmes? Claro que não, mas essa revolução nouvellevagueana era justamente contra um sistema industrial de produção em que o que valia para um filme tinha que valer para todos. (Parecido com o que o cinema norte-americano tenta impor hoje em dia, principalmente em termos de receitas/fórmulas de argumento e roteiro, “jornada do herói”, etc.). 
 
Numa cena do filme, Godard vê a estrela Jean Seberg chegando de táxi para a filmagem. Ele diz: “Amanhã saia de casa mais cedo, e venha a pé até aqui.” “Para quê?” diz ela. 
 
É um diálogo que, na verdade, Godard travou com Marina Vlady nas filmagens de Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (1967). O diretor explica que é para que ela ande nas calçadas cheias, espere o sinal abrir, examine as vitrines, veja as manchetes nas bancas de jornais, deixe-se embeber do momento presente, do dia de hoje, dos fatos reais... 
 
Quando chegar na locação e tiver que atuar, o seu personagem estará com a cabeça cheia dessas coisas. Estará com a “área de transferência” cheia de memórias recentes que a ajudarão a ser espontânea do jeito certo. 
 
Isto resolve todos os problemas? Não, mas resolve um problema específico de um diretor e de uma atriz em algum filme específico. 




Ocorre com o cinema, como em qualquer arte industrial, um processo de aprimoramento técnico, formação de equipes que dominam esse aprimoramento. Depois que é estabelecido um padrão alto de qualidade técnica, começa a exigência de conformidade com esse padrão para se poder trabalhar.  Estúdios fonográficos, de cinema, de TV, funcionam assim. 
 
Daí a pouco, qualquer vírgula que se afaste um milímetro desse padrão é condenada com veemência pelo defensores do padrão: técnicos de estúdio (defendendo seus empregos), o segundo escalão da equipe (devotos da Lei do Menor Esforço e Quanto Menos Decisões Melhor), os eternamente estressados produtores-executivos, etc. A arte torna-se engessada pela obrigação de usar todos os recursos que desenvolveu, e usá-los sempre da maneira prescrita no Manual. 
 
Daí que as grandes revoluções ocorram quando o padrão é rompido criativamente por uma feliz associação entre artistas jovens dispostos a recriar tudo, e técnicos maduros mas com sensibilidade suficiente para entender aquilo e dizer: “Dane-se o padrão, parece que tá rolando uma coisa nova aqui.” Foi mais ou menos o que o produtor George Martin e seus técnicos, juntamente com os Beatles, estavam fazendo na Inglaterra na época em que Godard filmava na França. 
 
Os defensores de um “know how” técnico, seja na música, no cinema, no teatro, não são fascistas nem mercenários, mas são muitas vezes mais conservadores do que quaisquer talibãs. Eles dedicaram a vida inteira à defesa de um território heroicamente conquistado, um estilo de cinema produzido em alto nível técnico. Não verão com bons olhos um grupo de rapazes ou moças de vinte e poucos anos anunciando: “Sai da frente, tio, vai mudar tudo!”. 
 
Nouvelle Vague mostra um desses momentos históricos especiais, e mostra com simpatia, uma simpatia misturada com gratidão que só me lembro de ter visto no filme Os Sonhadores (“The Dreamers”, 2003), de Bernardo Bertolucci. O carinho nostálgico por uma época que foi especial, sim, e que não se repetirá, porque os jovens daquela época conseguiram o que queriam: mudar o mundo. O mundo mudou, os problemas agora são outros, as revoluções de que precisamos são certamente outras, e nada nos assegura de que acontecerão. Nosso alívio é pensar que, pelo menos naquele momento da História, aconteceu. 



(o ator Guillaume Marbeck e o diretor Richard Linklater)

 
 
 
 
 







quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

5211) A quebra da Quarta Parede 2 (11.12.2025)





(The Great Train Robbery, 1903)

 
Escrevi algum tempo atrás, no meu mural do Substack, um artigo intitulado “023 – A quebra da quarta parede”. 
 
(Digressão: se você gosta de ler os artigos do Mundo Fantasmo, talvez lhe interesse ver os que eu publico no Substack – são textos diferentes, mas no mesmo estilo daqui. O Substack virou, se bem me exprimo, uma filial, um puxadinho do Mundo Fantasmo.) 
 
Procure aqui: https://substack.com/@brauliotavares?
 
A “quarta parede” é aquele conceito muito usado no teatro, sugerindo que o palco é um aposento comum, com quatro paredes, só que a “quarta parede” é invisível, mas existe – é o espaço vazio que separa o palco e a platéia. 
 


A quarta parede é uma metáfora da ilusão teatral, ou do acordo teatral, mediante o qual os atores fazem de conta que o que sucede no palco é de verdade, e nós fingimos que acreditamos. Fingimos que existe, sim, uma quarta parede ali na beira do palco, e que ela separa duas realidades que não se comunicam. 
 
Quebrar a quarta parede é, basicamente, dirigir-se à platéia. 
 
No teatro, isto sempre existiu, principalmente no teatro mais popularesco, descontraído, em que ninguém está preocupado em fornecer “ilusão de realidade”. Um dos recursos mais interessantes são os famoso “à parte” tão frequentes nas farsas e comédias do século 18 ou 19. 
 
MARQUESA DE VELMONT – Oh, meu caro Conde, sentemo-nos aqui sob este caramanchão! Estou tão emocionada com o nosso noivado... Dê-me sua mão. Fico feliz em ver que o que o atrai em mim não é a minha fortuna.
 
CONDE RENARD (PEGANDO NA MÃO DELA) – Claro, minha querida. (À PARTE, PARA A PLATÉIA) Vocês já viram uma criatura mais inocente do que esta? Chega dá pena!

 
Atores dirigem-se à platéia sempre que isso reforçar aquela cumplicidade mútua em que os espectadores se projetam num personagem. 
 
Uma forma muito popular da quebra da quarta parede é quando os atores introduzem os famosos “cacos”, piadinhas que não estavam no texto original, e que muitas vezes nada têm a ver com ele. São meros gracejos do próprio ator, ou referências a fatos do momento, coisas de conhecimento de todos.  



(Bertolt Brecht, A Alma Boa de Setsuan)
 

Tudo isto conduz a uma idéia: há um tipo de encenação que ganha com a manutenção da quarta parede, e um tipo que ganha com sua quebra. Produzir essa ruptura e dirigir-se explicitamente ao público pode ter um efeito cômico, como nos exemplos acima, mas também um efeito dramático. No “teatro épico” de Bertolt Brecht, frequentemente os atores interrompem uma ação e questionam o público. Estão percebendo o que acontece? O que acham daquilo? Está correto, está errado? O que deveriam fazer os personagens, numa situação como aquela?  
 
Esse recurso aparece na literatura de uma forma que considero menos disruptiva, menos sobressaltante. Num certo tipo de literatura, pelo menos, dirigir-se ao leitor é algo comum, estabelece um laço coloquial que parece nos trazer de volta às histórias em torno da fogueira, ou diante da lareira, ou na mesa de bar. Não há quebra de realidade. Alguém esta contando uma história a você, leitor. 



 
Machado de Assis tem uma maneira inimitável e encantadora de usar esse recurso. Machado escrevia nos jornais e revistas de sua época. Seus contos, tantas vezes, são conversas mansas, episódios contados numa voz sem pressa, trazendo o leitor (ou mais frequentemente: “a leitora”) para dentro da ação. 
 
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada naqueles anos remotos. 
 
O conto é o clássico “Cantiga de Esponsais”, um dos meus preferidos. É um conto de 1883, publicado nas revistas A Estação e O Álbum, antes de ser recolhido em Histórias Sem Data (1884). 
 
O conceito de data é crucial neste caso. Para nós, alienígenas de 2025, os anos de 1883 e de 1813 são igualmente remotos, quase indistinguíveis. Machado está contando uma história ambientada 70 anos antes, num tempo que ele nem sequer conheceu. Ele precisa chamar a atenção da leitora para esse detalhe, e convocar sua imaginação: “Podem imaginar o que seria...” 
 
Trazer a leitora para dentro do conto, dirigir-lhe a palavra, conduzi-la, tudo isto sem quebrar a “ilusão de realidade” (a ilusão de que aqueles acontecimentos narrados ocorreram de verdade), não é uma tarefa muito fácil. 
 
Hoje em dia, nós, blogueiros e cronistas da imprensa diária, usamos e abusamos do “caríssimo leitor”, “meu caro leitor”, “querida leitora”, vocativos meio insulsos, sugerindo uma intimidade, uma espécie de “tamo junto”, que não vai muito além disto.  
 
Tudo que uma leitora quer é sentir firmeza, sentir que o autor sabe o que está fazendo quando se dirige ao nosso mundo e quando nos leva ao mundo que está fantasiando. Machado mostra sempre essa firmeza, com a segurança que exibe no primeiro parágrafo de “Habilidoso” (Gazeta de Notícias, 1885): 
 
Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para dentro.
 
O que garante a fluência do texto é a forte impressão de realidade produzida por tantos detalhes verossímeis. É um ambiente rico de detalhes visuais (que lembram um álbum de fotos de Cartier Bresson), vívido, que não se rompe quando o autor diz que “...cá fora estamos apenas o leitor e eu...”



Machado inventou este recurso? De jeito nenhum. Todos os autores de folhetim do século 19 o utilizavam, puxando o leitor pela manga da camisa para comentar certas atitudes dos personagens, explicar certos detalhes do ambiente. É outro tipo de “narrador onisciente” – ele não apenas parece conhecer tudo do mundo que nos está contando, como também tem trânsito livre neste daqui. 
 
Isto é “quebra da quarta parede”? Sim, no sentido de que qualquer narrativa de ficção pressupõe essa divisória invisível entre nosso mundo e o outro. No entanto, uma das lições da narrativa com origem no jornal é essa coloquialidade, esse trânsito fácil entre os dois mundos. Esse Machado de Assis que trata o(a) leitor(a) com intimidade logo nas primeiras frases de seu conto. 
 
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. 
(“O Lapso”, Histórias sem Data
 
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? 
(“O Enfermeiro”, Várias Histórias
 
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar. 
(“Miss Dollar”, Contos Fluminenses
 
Vêde o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. 
(“A Chinela Turca”, Papéis Avulsos
 
 
Cinema, teatro, televisão tudo isto oferece aos olhos do público um universo cuja existência se impõe visualmente, sonoramente. A quarta parede surge muitas vezes para preservá-lo, impedir que se desfaça como um enorme aquário trincado.
 
Na literatura, só existe a voz do autor, murmurando ao ouvido do leitor. Não há parede: há essa voz que aproxima duas consciências e, quando bem manejada, consegue fazer com que pensem juntas. 
 
Aqui, meu artigo no Substack sobre o mesmo tema: 
https://brauliotavares.substack.com/p/023-a-quebra-da-quarta-parede-1



sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

5210) A Mesa do Banquete era tão Longa (5.12.2025)


 



A mesa do banquete era tão longa

que o meu assento estava na cozinha.

Havia caviar, faisão, vitualhas tantas...

Eu me servi cerveja, e moela com farinha.

 

De longe eu via o mundo e seus senhores,

tanto maiores quanto mais distantes,

e mesmo estes, os que eu avistava,

deviam estar nos ombros de gigantes.

 

Uma orquestra tocava, e não se via

se nos vinha do chão, ou se do céu.

Entre nós desfilavam bailarinas

invisíveis: o corpo era o seu véu.

 

Olhei meu prato. Estava sempre cheio.

E o copo mais pesado que um navio.

Tudo oscilava, os pêndulos, os lustres,

saltimbancos saltavam no vazio.

 

Havia riso, havia amor sem conta,

como corrente de eletricidade

acendendo um clarão de ponta a ponta

dessa mesa maior que uma cidade.

 

Eu me servi do quanto estava exposto.

Do que tinha o direito, e tive a chance,

tudo eu provei, de tudo tive o gosto,

tudo foi meu que estava ao meu alcance.

 

E a mesa se alongou, e alongou tanto

que de repente eu me encontrei na rua.

Saciado de festas e de encantos,

voltei a pé.  E a mesa continua.

 

 







sexta-feira, 28 de novembro de 2025

5209) Sou o Trocador de Estrelas Queimadas (28.11.2025)


 

Sou o Trocador de Estrelas Queimadas.
Aquelas de que ninguém sente falta,
mas é preciso manter brilhando, e se esforçar
para que haja um pouco de ordem no Universo.
Na noite seguinte, lá está ela. Triunfando
para ninguém além de si mesma
e deste operário que a trocou.
 
Um coqueiro faltou na praia?
Um colega já vem arrastando outro
pelas enormes raízes. Aos transeuntes
aquilo passa despercebido.
Estão conferindo seus celulares
enquanto nós, os roadies do cosmos,
pedimos licença e vamos passando.
 
Reconstruímos fachadas. Trazemos de volta
a praça omitida, o prédio faltante.
Corrigimos os erros de continuidade
de uma Realidade já de si precária,
e que não resiste a um exame,
a um questionamento,
a um dedo na ferida.
 
A Existência é uma ferida no Nada,
uma chaga que se espalha.
Seus resultados não passam
de balbucios, contradições,
curto-circuitos de incompletude;
mas alguém precisa
todo dia arredondar a Terra,
e encher o mar todas as noites.
 
 


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

5208) "O Agente Secreto" (20.11.2025)

 



Um dos começos mais famosos da literatura é o de L. P. Hartley em seu romance The Go-Between (1953), belamente filmado por Joseph Losey (“O Mensageiro”, 1971).

 

O Passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um jeito diferente.

 

O Brasil de 1977 é o país estrangeiro visitado por Kleber Mendonça Filho em O Agente Secreto (2025). É um filme sobre a ditadura militar onde os militares praticamente não aparecem.  E onde se confirma o ditado popular: “O grande problema nas ditaduras nem é o ditador: é o guarda da esquina”. Porque os guardas-da-esquina, percebendo o novo estado de coisas instaurado pela ditadura, passam a adotar seus métodos, em benefício próprio.



Esta premissa é estabelecida na primeira sequência do filme, em que “Marcelo”, o personagem de Wagner Moura, é pachorrentamente achacado por um policial rodoviário, que ignora um cadáver ao lado, exposto aos cães, mas espreme o motorista do fusca até conseguir extrair dele meio maço de cigarros amassados. Não tinha colírio para dizer um “pinga aqui”.

 

Minha sorte foi ter ido ver o filme sem saber nada dele, a não ser um trailer com aquela cena onde um cara aborda Wagner dizendo: “Você é policial?...” “Não, não sou policial.” “Tem cara de policial. Como é seu nome?”  “Marcelo.” “Marcelo de que?” “Alves.” “Nome de policial.” “Eu não sou policial.”



(Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho)

 

Já li uma porção de textos sobre o filme, e algumas centenas de comentários. Percebo que muita gente acha o filme “lento”, acha que as coisas demoram a acontecer... Marcelo é um cara que está se escondendo, isso fica claro desde cedo. E em termos dramatúrgicos é importante (penso eu) que a gente só vá saber exatamente quem é ele, e por que se esconde, lá para uma hora de filme.

 

O escondimento é o traço principal do personagem. E do ambiente onde ele, por isto mesmo, vai parar.

 

Marcelo vai morar num pequeno prédio, num daqueles edifícios tão palpáveis, tão reais, de que a cidade cinematográfica de Kleber está cheia (O Som ao Redor e Aquarius, principalmente, são filmes sobre prédios, vizinhanças, espaços de moradia, e mostram formatos arquitetônicos subliminarmente recifenses e brasileiros).



É o prédio dos refugiados, o prédio das histórias pela metade. Há alguns angolanos fugidos da guerra civil. A moradora anterior do apartamento foi assassinada pelo marido. Ninguém comenta. Sabe-se das histórias a meia-boca, um pedaço aqui, outro ali.


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco. (...)

No beco

apenas um muro

sobre ele a polícia.

No céu de propaganda

aves anunciam

a glória.

No quarto,

irrisão e três colarinhos sujos.

(Carlos Drummond, "Nosso Tempo", em "A Rosa do Povo", 1945)


O poema de Drummond é do tempo da ditadura Vargas. Quando acontecem os fatos de O Agente Secreto, esse já era um passado distante, mas... e daí?  Disseram uma vez a William Faulkner que parasse de falar do Passado, que o Passado tinha morrido, e ele respondeu: “O Passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou.”

 

Cada onda ditatorial que varre o país e vai embora deixa atrás de si lembranças, respostas, atitudes. Entre elas, o escondimento, a meia-palavra, a história mal-contada, a versão incompleta, o documento com linhas inteiras borradas em tinta preta. (E, como consequências colaterais, as Lendas Urbanas e as Teorias da Conspiração.)




O escondimento é o traço principal da uma época de repressão, de perseguições gratuitas, de vendetas pessoais que ficam impunes. Uma época em que um presidente da República tinha um AVC, ficava inválido, e a imprensa não podia noticiar. Ou em que um dos jornalistas mais conhecidos da grande imprensa era “suicidado” e ninguém podia escrever a respeito. Tudo se esconde, se deixa não-dito, vai para baixo do tapete. E depois, se esquece. O esquecimento é também uma forma de esconder alguma coisa.

 

Embora Armando-Marcelo possa ser visto como herói ou como vítima, ele é um personagem que tem lá suas transversais. “Eu sei usar um martelo”. Ele seria capaz de se vingar brutalmente do homem que o persegue, se tivesse a chance. E no momento de confessar isso, ele desliga o gravador, usa a seu favor o direito à censura, ao ocultamento.

 

Ele traiu a esposa Fátima, quando ela era viva? O pai dela lhe pergunta a certa altura: “Quando minha filha estava viva, você raparigou?”. Armando é um rapaz direito. Não custava nada mentir: “Que é isso, Seu Alexandre, eu sempre fui 100% fiel a Fátima”. Mas ele dá um drible de corpo atrás do outro e tenta mudar de assunto. É um rapaz direito, e não quer mentir, mas provavelmente raparigou.

 

Já os policiais... Há algo de vingativo no incômodo realismo com que eles são retratados. Aquela polícia civil de peixes-miúdos, da lumpen-direita, aquele exército anônimo de homens rancorosos, covardes, defendendo-se mediante uma jovialidade excessiva, agregando-se em pequenas máfias de mútuo apoio para descolar uma propina ou um cala-a-boca. Sabem-se fracos e por isso apegam-se a quem detém o Poder. Serviram a ditadura militar, e se aqui porventura baixasse um dia uma ditadura comunista, seriam eles os primeiros à sua porta, ansiosos para prender e matar em nome dela.


 

E os pistoleiros terceirizam tudo. O Brasil é sempre o país da violência terceirizada: cada encarregado de um crime embolsa o dinheiro, e paga uma fração desse cachê a outro, que passa a outro, até chegar num peixe-miúdo que não tem para quem passar adiante, e que de alguma maneira não faz aquilo só por dinheiro, ou por ódio pessoal: faz pelo prazer de matar, de dizer “fui lá e fiz, sou foda”.

 

Tenho visto algumas queixas em relação ao filme, e muitas poderiam ser traduzidas assim: “Eu fui pensando que era um filme tipo espionagem, mas é um filme sobre um cara assustado, que não reage, não faz nada, fica fugindo o tempo todo...” Talvez o título tenha a ver com isso. Eu gosto do título, mas para o público em geral talvez “venda a idéia” de um filme jamesbondiano.



Um dos cartazes do filme tem três rostos de Wagner Moura, que interpreta, na verdade, três personagens. 

Armando é o barbudo e cabeludo, o pesquisador de universidade pública que encara os poderosos, não leva desaforo pra casa e acaba dando murro em ponta de faca. 

“Marcelo”, de bigodinho e cabelo curto, o gato escaldado, calmo por fora, mas por dentro sempre em guarda, fugido, refugiado, sem ter a quem apelar. 

E Fernando, o filho, clean-cut kid, reservado, distante, comentando mais sobre os avós paternos do que sobre os pais, e diz à pesquisadora, sem espanto: “Você lembra do meu pai mais do que eu”. Ele está em paz, sereno, simpático, rosto limpo, jaleco branco. Ele é uma casa bacana construída em cima de um sumidouro.





sexta-feira, 14 de novembro de 2025

5207) Quem é Susan? (14.11.2025)



 
É um meme que circula por aí há muito tempo, e cada ver que emerge na tela eu solto uma gargalhada. O texto é em inglês. Alguém aplica uma prova para crianças, com problemas simples de Matemática. 
 
O problema destacado na foto diz: 
 
Jane tem 12 lápis, e Kim tem 7 lápis. Quantos lápis Susan tem a mais do que Kim? 
 
E no espaço para a resposta a criança escreveu: 
 
Quem é Susan? 
 
Este pequeno episódio gera tantas idéias que chega dá uma vertigem. 
 
A primeira coisa que me ocorre é: a resposta da criança foi considerada certa? A criança perdeu o ponto? Sei de muitos colégios, e já vi muitos exemplos, em que uma criança questiona uma pergunta-de-prova. Questiona de uma maneira totalmente aceitável, mas perde o ponto e ganha uma repreensão. 
 
(O que, no-fundo-no-fundo, é muito mais educativo do que passar-lhe a mão na trunfa e proclamá-la inteligentinha. A punição por questionar a autoridade avisa: “Filhota, o mundo funciona assim, caia na estrada e perigas ver.”) 
 
A segunda coisa é a pena que eu tenho da professora que elaborou a prova. Esse texto deve ter sido preparado tarde da noite, após um dia estafante, um jantar conflituoso ou às pressas, uma pilha de provas para corrigir, outra prova para preparar, e chega um momento em que as perguntas envolvem tantas “Susans” e “Marys” e o escambau... Não há como não errar, e como não ter pena de quem erra. 
 
A terceira coisa é a quebra existencialista. A criança está crescendo, aprendendo a ler, a escrever, a fazer contas, e é nesta fase que começa a ser-lhe vendido, em suaves e eternas prestações, o enorme Falso Bilhete Premiado da Loteria que é a entrada no mundo adulto. “Estude, pra se formar, arranjar um bom emprego, ganhar dinheiro e casar.” E a venda desse bilhete depende terrivelmente da idéia de que a vida é bela, o mundo é justo, o país vai pra frente, a felicidade é para todos, a honestidade é recompensada... 
 
Enfim: é uma cartela inteira de bilhetes que a criança está comprando com seu esforço. 



 
E de repente, no meio daquilo, aparece o equivalente à cara de um palhaço estirando a língua, botando os polegares nos ouvidos e agitando os dedos. Tem um erro na prova. A realidade está bugada. O mundo é falso. Os professores erram. Os padres pecam. Os jornalistas mentem. A polícia comete crimes. 
 
Quem é Susan? 
 
Esta Susan invisível e intrusa é o sexto lado do Pentágono, a terceira margem do rio? Algo que não podia existir, mas está ali? 
 
Por trás de uma contazinha aritmética inofensiva (12 – 7 = 5) foi introduzida uma serpente daninha e perniciosa no Éden da Matemática: o elemento humano. Enquanto se tratasse apenas de Jane e de Kim, que por definição já faziam parte do problema, tudo se resumia a fazer as contas, de forma impessoal e não-envolvida. Você tem tantos, e você tem tantos. Mas de repente aparece um nome não previsto na equação. Um elemento humano intruso, não-convidado, que não estava na ficha técnica do mundo. 
 
Os problemas escolares de Matemática são assim: não admitem o elemento humano, que está ali só para ilustração. “Joãozinho comprou 50 melancias na feira, mas no trajeto perdeu 8; quantas melancias Joãozinho trouxe para casa?...” Ninguém ousará perguntar: “Mas para que Joãozinho queria tantas melancias? E ele estava sozinho? Ele trouxe as melancias num carrinho, num táxi, num cesto?...”  Essas questões são proibidas. A única função da existência do hipotético Joãozinho é ajudar a entender que 50 – 8 – 42. 
 
Quem é Susan? 
 
Susan é um clinâmen, um salto quântico inesperado, uma mutação não prevista. Alguém que não estava nos cálculos mas de repente irrompeu problema adentro, estraçalhando tudo com sua existência intrusa. 
 
É o “J. Pinto Fernandes” que não estava na história mas chega de repente e arrebata consigo a sapeca Lili, no poema de Carlos Drummond (“Quadrilha”). 
 
Ou então é alguém parente do sujeito que vai passando na rua e alguém lhe grita: “Manuel, tua mulher está passando mal na tua casa em Niterói!...” e ele dispara na carreira, pega um táxi, e quando está no meio da ponte pensa consigo: “Mas... espere aí... eu não me chamo Manuel, eu sou solteiro, e eu não moro em Niterói!...”. 
 
Georges Perec (a quem devo a dica do conceito de clinâmen, já comentado aqui no blog) dizia que o uso de uma “contrainte” na literatura, ou seja, o uso de uma regra auto-imposta pelo autor, deve sempre permitir uma exceção. O sujeito pode dizer: “Vou escrever um texto em que todas as palavras começam pela letra C”, e ele deve ser capaz de obedecer a essa regra; mas no final, depois do texto impecavelmente pronto, ele deve (diz Perec) inserir discretamente, sutilmente, uma palavrinha que não obedece à regra. Uma exceção proposital, que ele poderia perfeitamente ter evitado. Por que? 
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/search/label/clin%C3%A2men
 
Respondo: para contaminar de realidade e de imprevisto esse “constructo” artificial que é a literatura. Para contar (digamos, hipoteticamente) a história completa da família Buendía, com seus prenomes maniacamente repetidos, mas poder, a certa altura, dizer algo como: 
 
Nesse instante, bateram na porta da frente, a avó Úrsula disse: “Aureliano, tem gente batendo, vá ver quem é”. Aureliano abriu a porta para uma moça loura, de olhos azuis. “Quem é a senhorita?”, perguntou. E ela disse: “Eu sou Susan”. 

 




 
 




sexta-feira, 7 de novembro de 2025

5206) As Filmagens Redescobertas (7.11.2025)




O conceito de “found footage”, que traduzo aqui por “filmagens redescobertas”, é um tema recorrente na ficção, tanto a realista quanto a fantástica. Implica na descoberta, ou redescoberta, de algum tipo de material filmado algum tempo atrás e que estava desaparecido, ou por alguma razão era conhecido por poucas pessoas. 
 
As variações são muitas. O que importa é que este subgênero narrativo se alimenta de um certo fetichismo cinéfilo por material filmado, algo que já existia mas não era conhecido.  Algo que era fisicamente real, mas não fazia parte da “realidade consensual”, da consciência coletiva de um grupo, um país, etc. 
  
Às vezes é a obra de um diretor obscuro, filmes que foram exibidos para platéias obtusas ou indiferentes, e que somente anos depois alguém assiste a sério e percebe conter implicações mais sombrias. 



É o caso de Flicker (1991), romance de Theodore Roszak (aquele mesmo que escreveu o clássico A Contracultura). Alguém começa a ver os filmes de um diretor de filmes B de terror e descobre ali uma conspiração internacional e maligna, mistura de Dan Brown com H. P. Lovecraft. 
 
Redescobertas desse tipo recorrem a um tema dos mais interessantes da narrativa de ficção: o de que o Passado às vezes nos reserva mais surpresas do que o Futuro. 
 
Há fragmentos do Passado que a maioria de nós desconhece, mas no momento em que se tornam conhecidos mudam radicalmente a nossa maneira de enxergar não só o Passado, mas o próprio presente. São revelações que mudam nossa visão do mundo. 



O filme inglês LOLA (A Máquina do Tempo), de Andrew Legge (2022), é uma experiência curiosa de ficção científica e filmagem redescoberta. Sua premissa narrativa é de que por volta de 1938 duas moças inglesas órfãs, filhas de um casal de cientistas, inventam uma máquina de espiar o futuro, captando as transmissões de rádio e TV de meses ou anos à frente. 
 
Como elas têm câmeras portáteis em casa, e gostam de se filmar uma à outra, o filme é narrado a partir dessas cenas. (Com som direto, meio improvavelmente, mas tudo bem.) 




De início as moças se limitam (de um modo muito divertido) a ficarem fãs de David Bowie e do rock em geral. Mas começa a II Guerra, começa Blitz nazista contra Londres, elas se dão conta de que podem captar transmissões de rádio do futuro e avisar onde as bombas vão cair. Não conseguem evitar o bombardeio – mas avisam as pessoas, e salvam vidas. 
 
Passam a trabalhar em conjunto com as forças armadas britânicas, uma delas se apaixona por um oficial (e é correspondida), mas daí a pouco elas percebem que algumas de suas interferências estão de fato alterando o curso do tempo. Porque quando elas saltam para o Futuro mais afastado (ou seja, a década de 1970) David Bowie não existe mais – quem está em seu lugar nas paradas é um roqueiro de extrema-direita, com canções tipo “The Sound of Marching Feet”. E então começa o pesadelo. 
 
O filme está no streaming do “Belas Artes À La Carte”, do qual sou freguês. 



Filme de filmagens redescobertas, no entanto, precisa ter uma estética particular – e nesse sentido é possível ver variações interessantes, principalmente em filmes fantásticos ou de terror, como A Bruxa de Blair (1999), Cloverfield (2008) e tantos outros. 
 
LOLA é um excelente exemplo da estética-do-fragmento que esses filmes exploram. Porque uma filmagem redescoberta nem sempre é de um filme completo, editado, pós-produzido, lançado comercialmente. É sempre um rascunho cinematográfico, um esboço, um conjunto de tentativas que ficaram pelo meio do caminho. 
 
LOLA não faz muito esforço para eliminar este aspecto, pelo contrário, aposta nele. A história é contada aos solavancos, de um modo ziguezagueante, cheio de falsos começos, interrupções, repetições, ações que nunca se concluem...  



(LOLA: Emma Appleton, "Thom", e Stefanie Martini, "Mars")
 

Eu gosto de narrativas assim, mas sei o quanto é difícil fazer o público-em-geral aceitar.
 
É preciso ir montando mentalmente o quebra-cabeças da sequência de acontecimentos, mas neste sentido o roteiro (do diretor Legge e Angeli Macfarlane) é muito bem amarrado, mesmo quando a narrativa parte para o território do improvável. Há uma sequência lógica nos fatos; o diálogo fornece a informação complementar. 
 
Neste aspecto, LOLA exige tanto esforço mental (ou menos) quanto um filme de super-heróis qualquer – só que está sendo contado em outro idioma, que é preciso aprender a dominar enquanto se assiste. 







sexta-feira, 31 de outubro de 2025

5205) O inesgotável G. K. Chesterton (31.10.2025)



 
Aqui no Brasil, Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) foi nos anos mais recentes abduzido por uma ideologia conservadora, estreita demais para acomodar seu diâmetro e quebradiça demais para suportar seu peso.
 
Chesterton é o criador do Padre Brown, um dos grandes detetives de todos os tempos. Ao padre poderia se aplicar com perfeição aquele velho slogan do seriado radiofônico The Shadow, de que Orson Welles fez parte, há quase um século: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração dos homens? O Sombra sabe!...”
 
O Padre Brown observa sem ilusões a comédia humana e a tragédia humana. Conhece os cordéis invisíveis que atuam sobre o pensamento destes homens e mulheres tão confortáveis no seu imaginário livre-arbítrio. Sabe que toda pessoa é (no dizer de Olavo Bilac) “capaz de horrores e de ações sublimes”. E age de acordo.




Leio o Padre Brown desde os doze ou treze anos. Comecei pelos livrinhos de bolso da saudosa Coleção Tucano (Ed. Globo de Porto Alegre). São, basicamente, cinco coletâneas de contos: A Inocência do Padre Brown (1911), A Sabedoria do Padre Brown (1914), A Incredulidade do Padre Brown (1926), O Segredo do Padre Brown (1927) e O Escândalo do Padre Brown (1935).



São 49 contos ao todo. Pelo menos um terço deles pode figurar com mérito em qualquer antologia dos melhores contos de mistério. Incluí dois deles em minhas antologias Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, de 2005 (“A Honra de Israel Gow”) e Crimes Impossíveis, de 2021 (“A Maldição do Livro”).
 
Há uma série da TV inglesa adaptando as histórias do Padre Brown, mas não me identifiquei muito. O ator escolhido é bom ator, mas bonachão demais, gente-boa demais. Falta-lhe o que Jorge Luís Borges (um grande admirador de Chesterton) chamaria de “fulgor satânico”, e que eu encontro, por exemplo, nas feições e na atitude de Anthony Hopkins. Nele, sim, eu consigo visualizar um Padre que, apesar de seu compromisso definitivo com o Bem, conhece o Mal tanto quanto os criminosos que desmascara.



(Anthony Hopkins, em Dois Papas)

Brown vive a dualidade (e essa dualidade é a marca de Chesterton, o rei do paradoxo) de conhecer o Mal por experiência espiritual própria, se bem que não pela ação. Ele tem a palavra cristã de ética, empatia, humanismo e perdão, mas olha seus criminosos não com os olhos de um santo, e sim com os olhos azuis e frios de um Hannibal Lecter.


 
Seu romance The Napoleon of Notting Hill (1904) foi o primeiro a usar a data de “1984” para projetar uma Distopia futura (ao que se diz, George Orwell ignorava este detalhe). Seus escritos católicos tiveram grande influência. Tim Powers (autor de The Anubis Gates, On Stranger Tides etc) indicava The Everlasting Man (1925) como um livro que ajudou sua conversão ao catolicismo. Orthodoxy (1908) tem, paralelo à sua argumentação metafísica, um capítulo (“The Ethics of Elfland”) que é uma das melhores vindicações da literatura imaginativa.
 
O Homem Que Era Quinta-Feira (1908) é também, a seu modo, uma prefiguração do 1984 de Orwell – um homem é cooptado por uma organização subversiva, apenas para descobrir que quem o recrutou é da polícia. Diferentemente do que pode ocorrer com o livro de Orwell, cujo áspero realismo convoca uma vinculação emocional por parte do leitor, esse tipo de spoiler em nada atenua o interesse inesgotavelmente criativo do pesadelo de Chesterton (o subtítulo do romance é A Nightmare), nem o encanto da sua Londres saturada do insólito, do exótico e do absurdo.
 
Chesterton é criticado porque escreveu “excessivamente”. O auge de sua atividade ocorreu na imprensa londrina: não esqueçamos que em sua época os jornais e revistas eram, tanto quanto os livros, um escoadouro para a prosa de ficção. Romance, conto, poesia, ensaios, artigos, crônicas, polêmicas, em tudo ele se metia e de tudo ele se saía bem, inclusive em suas pelejas ideológicas (sempre elegantes e bem humoradas) contra autores tão talentosos quanto ele, gente como Bernard Shaw ou H. G. Wells, situados mais à esquerda do espectro político.


 
Conservador, religioso, tradicionalista; parece incrível, mas GKC se sentiria perfeitamente à vontade no mundo de hoje, o mundo da Internet e da conectividade. Mais do que qualquer outro de sua época ele se integraria com perfeição não só no ambiente acalorado das redes sociais, mas no estilo de escrita de cem anos depois.
 
Twitter, whatsapp, tik-tok, tudo isto ele tiraria de letra. Era o rei do aforismo inesperado, da frase definitiva, da piada matadora, do paradoxo desconcertante que inseria nos seus adversários o vírus fatal do esprit d’escalier. Em The Club of Queer Trades (1905) ele inventa indivíduos com profissões excêntricas; um deles é alugado para tomar parte (junto com seu “cliente”) em reuniões sociais onde lhe cabe dizer algo específico para que o cliente o conteste com uma resposta esmagadora, sob uma trovoada de risos.
 
Grandalhão, obeso, desarrumado, vestido de maneira pouco convencional, Chesterton era tido como um excêntrico, mas acabava sendo o centro de qualquer grupo de que fizesse parte. Foi homenageado por John Dickson Carr, o grande inventor dos “crimes de quarto fechado”, que usou sua figura para descrever o detetive Gideon Fell.  Neil Gaiman o trouxe para a série Sandman no papel do personagem “Fiddler’s Green”.


(Em Sandman: Fiddler's Green e Rose Walker)
 
  

Todo crime engenhoso é descoberto, em última análise, por causa de algum fato muito simples – um fato que em si não tem mistério algum. A mistificação começa no ato de encobrir o crime, em conduzir a atenção das pessoas para longe desse detalhe.

(“The Queer Feet”, trad. BT)