segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

0680) Bob Dylan sabe escrever! (24.5.2005)




Bob Dylan, que faz hoje 64 anos, acaba de publicar seu melhor livro: Crônicas, Vol. 1, o primeiro da uma série de três volumes de memórias. 

Como é habitual no caso de Dylan, críticos e fãs no mundo inteiro estão dissecando cada parágrafo, cada frase e cada letra como se aquilo fosse o Diário de Jesus Cristo, escrito de próprio punho. 

O livro acaba de sair pela Editora Planeta, por 44 reais (mais ou menos o que paguei há meses pela edição americana). Dizer que é o melhor livro de Dylan envolve um pouco de picaretagem da minha parte. O que foi que Dylan publicou? Uma colagem de frases pop-surrealistas, Tarântula, influenciada por William Burroughs e Allen Ginsberg; e songbooks com suas letras e poemas. 

Este livro, no entanto, revela uma coisa que eu mesmo, fã de carteirinha, não esperava: Dylan escreve uma prosa de excelente qualidade.

Primeiro, falemos do que o livro não é. Muita gente esperava um livro de memórias tipo Revista “Contigo”: Dylan comentando as razões de suas separações e divórcios, Dylan explicando por que trocou de empresário ou de gravadora, Dylan descrevendo o acidente de moto de 1966 (que muitos dizem ter sido forjado), Dylan revelando quanto custou a mansão de Malibu ou quem é sua namorada atual, Dylan confessando plágios... 

Nada disso. O livro tem uma estrutura fascinante, conduzida simplesmente por associação de idéias e nomes, saltando para a frente e para trás, cheio de flash-backs e de flash-forwards. No meio de uma cena ocorrida num bar em 1963 ele comenta a entrada de um personagem e aí salta para 15 anos à frente para outro episódio envolvendo o mesmo cara, e daí aproveita um terceiro nome para retroceder 5 anos e narrar outro momento, passado em outro país... 

Mas não perde o fio da meada. Cedo ou tarde, depois de 40 páginas, ele diz: “Pois é, nada disso passaria pela minha cabeça naquela madrugada, no bar de Fulano, quando Beltrano pegou o violão e começou a cantar tal coisa...” – e prossegue a narrativa como se só existisse o aqui-e-agora.

Isto é marca de um prosador maduro. O leitor liga menos para uma estrita ordem cronológica do que para a verdade e a concretude daquilo que se conta; basta fazer parecer real cada episódio que se narra. Se você através de ação, descrição e diálogo consegue fazer o leitor imaginar-se vendo a cena descrita, você pode pegar na mão do leitor e saltar com ele o quanto quiser. 

É o que Dylan faz, pulando anos e às vezes décadas – mas em cada trecho ele recria com vívidas imagens visuais o ambiente descrito, descreve em duas ou três linhas uma pessoa e nos dá a impressão de que a conhecemos (ou então uma vontade danada de conhecer alguém assim). 

Dylan não é um ficcionista – mas é sem dúvida um prosador de peso, sabendo misturar memória, imaginação e auto-análise na medida exata para prender um leitor. Se parasse de gravar, mas ficasse escrevendo coisas assim, por mim tava bom.





0679) As festas de Saint John (22.5.2005)



Sonho que estou de volta a Campina, vou andando pelo Parque do Povo mas começo a perceber detalhes estranhos. Nas “ilhas”, não vejo nenhum trio de forró: vejo grupos de músicos tocando violão, banjo e gaita-de-boca. O som que vem das enormes caixas de som nas laterais do Parque não um xote, é um rockabilly. E ao chegar no Arraial Hilton Motta, vejo com espanto que foi erguido ali um enorme cercado, onde um boi brabo escoiceia com um sujeito montado em cima, enquanto o povo grita eufórico; “Segura, peão!” Viro-me para uma moça ao meu lado, ela usa jeans, botas, camisa xadrez, lenço vermelho no pescoço, chapéu texano. Pergunto apavorado; “Em que ano estamos?” E ela: “Ora... estamos em 2015!”

Acordo banhado de suor, feliz porque foi só um sonho, mas ao mesmo tempo inquieto porque temos que seja um sonho profético. Desde que as grandes redes de TV iniciaram seu processo de “paulistização”, respondendo ao impressionante crescimento econômico do interior de São Paulo, um mercado consumidor de fazer inveja à Califórnia, o São João do Nordeste está se transformando numa sucursal das festas de peão do interior paulista. Se estivéssemos abrindo mão da cultura nordestina para trocá-la pela cultura sertaneja paulista já seria uma coisa errada; abrir mão dela para trocá-la por uma contrafação da cultura americana, por uma caricatura de um Texas que não existe nem sequer no Texas... é demais.

Duplas sertanejas passam o ano inteiro percorrendo as casas de show do Nordeste e faturando uma grana enorme. De onde vem essa grana? De paulistas exilados por aqui, saudosos do torrão natal? Não: vem de uma classe média nordestina que não gosta da música regional nordestina porque é feita por gente pobre e (mais grave ainda) gente pobre que vive na mesma cidade, que cruza com eles nas ruas, nos restaurantes, na praia, e que com isto perde o charme que um “artista de fora” sempre tem. Vai daí, esse pessoal acha chique botar chapéu de cowboy e cantar baladas românticas e ter o álibi de que está “apoiando a cultura regional” e “valorizando a música brasileira”.

Nada tenho contra as duplas sertanejas: pelo que sei, são músicos profissionais que estão ganhando a vida honestamente, cantando o que sabem cantar, e vendendo o que têm para vender. O que eu não entendo é que se chame esse pessoal (e as bandas de lambada que se intitulam “bandas de forró”) para fazer São João do Nordeste. Não já tem os outros 11 meses do ano? Não custava nada dar uma folguinha a eles no mês de junho para que fossem faturar noutra freguesia. Daqui a pouco teremos gritos de Carnaval nos clubes nordestinos ao som das baladas românticas de Zezé de Camargo & Luciano. Não é nada contra os rapazes, repito. É que o São João do Nordeste é o momento em que se deve mostrar a música que se faz no Nordeste dentro da tradição das festas de São João. Preciso dizer que música é esta, caro leitor? Se você não sabe, nem precisava ter lido até aqui.

0678) “Invenção de Orfeu” (21.5.2005)




Ainda conservo um exemplar, muito manuseado e anotado, da edição de bolso de Invenção de Orfeu que Jakson Agra me presenteou por volta de 1975. Me fez companhia durante estes anos todos, e creio não estar cometendo nenhuma indiscrição se disser que muitas vezes me bastou abri-lo ao acaso, ler uma ou duas páginas, para ir direto para o caderno, com um poema prontinho na cabeça. 

Plágio? Não, coleguinhas. A grande poesia tem este efeito hipnótico de poder nos transportar para um estado mental onde nossos próprios poemas desabrocham maduros ao nosso toque, implorando para ser colhidos. Numa metáfora informática: para ler um poema assim, nosso cérebro tem que rodar o mesmo programa que é necessário para escrever algo parecido.

Coisa impressionante a poesia brasileira. Temos poemas-livro de riqueza inesgotável e novidade permanente. Qualquer um deles, isoladamente, justificaria a existência de um país e de uma cultura: Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, Cobra Norato de Raul Bopp, Poema Sujo de Ferreira Gullar, Morte e Vida Severina de João Cabral, Galáxias de Haroldo de Campos... e tantos outros que imperdoavelmente desconheço.

Invenção de Orfeu de Jorge de Lima é um desses Louvres poéticos onde cada página é uma Mona Lisa, uma Vitória de Samotrácia. A Editora Record acaba de reeditá-lo, tornando novamente acessível o seu fascinante carrossel de imagens surrealistas, linguagem épica, erotismo místico, geografia mágica, mitologia cristã, métrica clássica, ousadias sintáticas e vocabulares.

“Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo”: a voz tropicalista de Gilberto Gil entoava estes versos de Torquato Neto que citavam o Canto VI da Invenção de Orfeu

Jorge de Lima influenciou os tropicalistas, e deu o ponto de partida para O Grande Circo Místico de Chico Buarque e Edu Lobo, um dos melhores discos conceituais da MPB. 

Morto em 1953, continua sendo estudado e discutido pelos críticos, mas sua obra precisa de reedições que a deixem acessível a um público maior.

Numa época em que a poesia desliza preguiçosamente pelas águas mansas do verso sem métrica, do verso sem rima, do verso curtinho, do verso meramente esperto e galhofeiro, a poesia de Jorge de Lima pode ajudar todos nós a reativar funções verbais de maior complexidade e organização, e principalmente, de maior nível de exigência. 

Não é fácil escrever com o rigor técnico e a assustadora liberdade criativa de Jorge de Lima neste poema. Não direi que a gente precisa escrever parecido com ele; mas um poeta capaz de dominar uma linguagem no mesmo nível de complexidade verbal e imaginativa que a dele é um poeta capaz de escrever qualquer coisa. 

Aprender a ler é aprender a escrever. Ler Invenção de Orfeu do primeiro ao último Canto é um curso de Doutorado em personalização da dicção poética. Uma viagem ao Inconsciente individual, da qual emerge toda a História coletiva de uma nação.






0677) Teoria da inspiração (20.5.2005)




(Colin Wilson)

Não tem pra onde correr. Toda vez que um cineasta, teatrólogo, escritor, etc. dá uma entrevista, lá vem a pergunta de sempre: “E de onde vem a inspiração?” 

Eu entendo e compartilho o drama dos coleguinhas da imprensa, que todos os dias são forçados a fazer uma prancheta inteira de perguntas a desconhecidos. Mas isso não me poupa do suspiro resignado diante desta questão específica, que, caso vocês não saibam, é uma das mais desnecessárias entre as que abordam a criação artística. A inspiração, para o sujeito que cria, é o óbvio, é o inevitável, é o mais-que-possível. 

Um leigo deve pensar que um artista é um sujeito igual a todo mundo, que acorda, escova os dentes, dedica-se a tarefas rotineiras, e de repente é possuído por um espírito, ou atingido por um raio, e passa a produzir febrilmente uma obra de arte, antes que aqueles minutos de iluminação mística se dissolvam no ar. 

Concordo que de vez em quando acontece algo assim, mas, creiam-me, isto é um acesso eventual, e o processo normal da inspiração se dá por canais muito diferentes. Perguntar a um artista de onde vem a inspiração é como perguntar a um casal em lua-de-mel de onde vem aquela vontade de ficarem juntos o tempo todo. 

A inspiração não é um relâmpago eventual que cai quando menos se espera: é um estado permanente da alma, é uma condição mental que uma vez instaurada só pode ser revertida à custa de muita lavagem cerebral, muita discussão de besteira, muito trabalho tedioso, muito tempo desperdiçado com as irrelevâncias da vida.

O mais errôneo da pergunta, no entanto, é falsear o eixo da questão, ao sugerir que a inspiração “vem” até nós. É justamente o contrário. A inspiração é um estado mental auto-induzido. É um gesto da vontade. É uma decisão que tomamos: 

“Vou botar a cabeça pra funcionar. Vou pensar em coisas interessantes, vou examinar idéias que me atraem e me intrigam, vou começar a brincar com formas que me dão intenso prazer, vou criar variantes, vou criar comentários, vou criar respostas às coisas que estou vendo.”

Um dos meus pensadores preferidos, Colin Wilson, afirma (citando as teorias filosóficas de Husserl) que a consciência é um ato intencional. Ele a compara ao jato de uma mangueira dágua dirigido sobre os objetos. 

Quando estamos frouxos, esvaziados, deprimidos, olhamos para as coisas e elas não nos despertam nenhuma emoção, nenhuma idéia. Por que? Porque não são elas que têm de vir até nós. “Que tristes são a coisas” , dizia Drummond, “consideradas sem ênfase”. Somos nós que temos de dirigir para as coisas o nosso jato de vontade, de ênfase, de entusiasmo pensador e criador, embebê-las com toda a carga emocional de nossa memória e de nossa imaginação, encharcá-las com nossas emoções. 

Eu diria que o gesto artístico não depende de inspiração, e sim de “expiração”: ele é o sopro criador que dirigimos sobre as coisas inertes do mundo, transmitindo-lhes a vida que existe em nós, e somente em nós.





0676) A poesia marginal (19.5.2005)



Nos anos 1970-1980 houve um movimento de poetas jovens que, diante das dificuldades que encontravam para ter seus livros publicados nas grandes editoras, decidiram publicar e divulgar os livros por conta própria. Muita gente chamou a isto “Poesia Independente”, o que me parece uma descrição satisfatória; mas alguns grupos de poetas chamavam o movimento de “Poesia Marginal”, e o que isto rendeu de polêmicas não está no gibi.

Para mim era muito claro. Chamava-se poesia marginal porque estava à margem da corrente principal da literatura, daquilo que em inglês chama-se de “mainstream”. A imagem embutida neste conceito é de que a literatura oficial é como um rio onde alguns conseguem colocar suas canoas para que este os leve; e que quem não consegue fazê-lo vai ter que ir a pé, pela margem. “Margem”, para quem tem cultura literária, também lembra de imediato o conceito das margens de um livro, local onde muita gente gosta de fazer anotações. Daí o título de “Marginália” que se dá a muitas obras de literatura que consistem em pequenas notas, comentários curtos, fragmentos, lembretes, indagações...

Vai daí que os poetas chamavam a si próprios de “poetas marginais”... e a imprensa e a sociedade consideravam isto um escândalo. Porque para os de fora do mundo literário, “marginal” é quem vive à margem da sociedade, é bandido, criminoso. Quando eu chegava num programa de TV e dizia, com esta minha incurável inocência, que era um “poeta marginal”, era como se estivesse dizendo que era um “poeta assassino” ou “poeta estuprador”. Não é de admirar que ninguém comprasse meus poemas filosóficos.

É preciso ter cuidado com os rótulos que escolhemos. Os músicos de choro, por exemplo, ficam danados da vida quando alguém diz que eles tocam chorinho, ou que são músicos de chorinho. Acham que o diminutivo envolve um certo paternalismo não isento de desdém – é como dizer “um forrozinho, um sambinha”... Digam “choro”, colegas, para não correr o risco de uma gafe. Outro rótulo que sempre me pareceu inofensivo foi o de “forró universitário”, que se usa muito no Rio e São Paulo para designar esses grupos de jovens estudantes, urbanos, que fazem faculdade e que querem compor e cantar forró, como é o caso do grupo Falamansa. Para mim é uma descrição adequada, mas certa vez ouvi um forrozeiro da velha guarda reclamar: “Eles são o forró universitário, e nós somos o que? O forró analfabeto?!” É preciso cuidado, porque calos todo mundo tem.

Perguntem a esses milionários e zés-ricos que tocam nos rodeios se eles gostam de ser chamados de “duplas caipiras’. De jeito nenhum. Tem que ser “dupla sertaneja”, se bem que no frigir dos ovos até eu sou mais sertanejo do que esses caras, com seus helicópteros, suas Pajeros e suas canções texanas. Mas eles acham que “caipira” são os sertanejos pobres, e é preciso traçar uma linha deixando bem claro quem é quem. Às vezes a gente pensa que está elogiando um cara, e está chamando ele justamente do que ele menos gosta de escutar.

0675) Ah, eu mudei de idéia (18.5.2005)


(Steven Spielberg)

Num mesmo dia me caíram sob os olhos dois episódios que colocam uma questão interessante da vida prática, questão que de vez em quando vai parar nos tribunais. Como sei que há pelo menos uma meia-dúzia de leitores desta coluna que são formados em Direito, talvez eles possam me trazer alguma luz sobre o assunto.

O primeiro caso diz respeito à possível venda do atacante Adriano, do Inter de Milão, por uma soma de cerca de 140 milhões de dólares. Nem vou discutir se o jogador vale isto tudo (se Adriano vale isto, quanto vale Ronaldinho Gaúcho? E Robinho? E Zidane? ). O detalhe é que Adriano pertencia originalmente ao Flamengo, o qual por contrato teria direito a 25% da venda do seu passe. Se esta transação agora proposta pelo Chelsea fosse realizada, o Fla botaria no bolso cerca de US$ 34 milhões. Acontece que anos atrás, na catastrófica gestão de Edmundo Santos Silva, o clube estava tão endividado que cedeu aquela percentagem do passe de Adriano em troca de 1 milhão e meio de dólares. (Se o Flamengo fosse um vampiro já tinha morrido, porque cada presidente que passa por lá enfia-lhe uma estaca no coração)

O segundo caso diz respeito ao nosso velho conhecido, o cineasta Steven Spielberg. Quando Spielberg era um jovem diretor desconhecido, seu primeiro curta, “Amblin” (1969) foi financiado por um cara chamado Dennis Hoffman. No contrato entre os dois, ficou estabelecido que Spielberg se obrigava a, em algum momento dos dez anos seguintes, dirigir um filme para Hoffman pelo salário de 25 mil dólares, e ceder-lhe também uma fatia dos lucros. Ora, seis anos depois Spielberg já era famoso no mundo inteiro com “Tubarão”, uma das maiores bilheteria de todos os tempos. Hoffman vivia telefonando: “Cadê meu filme?” E Spielberg tirando o corpo de banda: “Calma, não é bem assim, vamos rever essa história”.

Não sei como terminou, mas li estas duas notícias numa mesma tarde, e fiquei matutando. Spielberg entrou na justiça questionando seu contrato com Hoffman, dizendo que tinha mudado de idéia (não sei exatamente quais foram seus argumentos), e que não era besta de dirigir agora um filme naquelas condições. Será que o Flamengo poderia fazer o mesmo? Dizer que não gostou de ter cedido sua fatia no passe de Adriano, e querer seus 25% de volta?

Tudo em nosso mundo civilizado se baseia nos “contratos sociais”, explícitos ou implícitos, que fazemos uns com os outros. Contratos devem ser cumpridos, porque se não “valer o que está escrito” a civilização afunda. Mesmo assim... “Data venia”, nobres colegas: será que não é possível o cara voltar atrás num acordo, considerar que foi pressionado ou iludido, pedir de volta os direitos que ingenuamente cedeu num momento de aperto? Deve existir alguma interpretação jurídica que permita dar um passo atrás e dizer: “Peraí, vamos conversar de novo”. Socorram-me, nobres causídicos. De preferência, antes que o Inter venda Adriano.