Tenho observado ao longo dos últimos cinquenta anos uma
guinada muito forte no mundo literário em benefício daquilo que chamamos, de
modo desajeitado, de “romances de enredo”. Que são contrapostos, meio
absurdamente, aos chamados “romances de estilo”, como se fossem duas coisas
opostas e como se um escritor qualquer, ao optar por uma, perdesse necessariamente
a outra. Meu Deus!
De qualquer maneira, multiplicam-se as Oficinas
Literárias, os Manuais de Roteiro, os vídeos “Eu Vou Te Ensinar”, e todos repisam:
é preciso contar uma história com começo, meio e fim. É preciso preparar
narrativas como se fossem um mecanismo, com todas as peças bem encaixadas, nada
gratuito, cada frase cumprindo uma função necessária, como um parafuso em um
transatlântico.
Todos citam (eu cito muito) “a espingarda de Tchecov”: se
você mostra uma espingarda no Ato 1, ela tem que ser disparada por alguém no
Ato 3. Tudo existe com uma finalidade.
Do famoso prefácio de Jorge Luís Borges para La Invención de Morel (1940, Adolfo Bioy
Casares) até os manuais de roteiro de Syd Field e Robert McKee, adotados em
qualquer oficina do ramo, todos batem furiosamente esse martelo: é preciso
contar uma história com arco dramático, com preparação, desenvolvimento e
clímax, ao longo da qual o(s) protagonista(s) tenha(m) um objetivo, enfrentem
obstáculos, vençam adversários... “História é conflito”, dizem todos.
Estão errados? Não. Mas estão descrevendo a orelha do
elefante, e ele é maior e mais variado do que isso.
Escrevi algum tempo atrás sobre um tipo de romance que é
meio a antítese disto, certos romances do século 18 que não se assemelhavam a
uma maratona e sim a um passeio. Maratona é um percurso focado, de trajetória
única, com uma resposta na chegada. Esse é o romance-de-enredo contemporâneo,
esse é o roteiro de cinema industrial.
O romance do século 18 era um passeio. Ele se assemelha
àqueles feriados em que o sujeito não tem nada pra fazer e sai vagando pela
cidade, tipo flâneur, entrando numa
rua, saindo em outra, parando numa vitrina, pegando um bonde, sentando numa
praça, conversando com um pipoqueiro ou um flanelinha, entrando numa galeria,
saindo do lado oposto...
Um caminho sem objetivo final, uma travessia que se
justifica a si mesma, onde não se busca “chegar a outro lugar”, um passeio cuja
frase definidora é: “Eu já estou onde queria estar”.
Citei alguns exemplos no meu artigo:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4587-uma-literatura-ao-res-do-chao.html
Terminei agora a leitura de Jacques Le Fataliste et son Maître (1771-1786) de Denis Diderot, o
grande enciclopedista. É um desses “romances ao rés-do-chão”. Não se propõe a
criar um grande edifício dramatúrgico, e sim uma série de paradas ao longo de
um caminho que não tem fim. É uma road
novel, tal como nos referimos a road
movies, histórias onde as coisas se sucedem, sem necessariamente terem algo
a ver com o que aconteceu no capítulo anterior e o que acontecerá no próximo.
Diderot escreve numa época do romance pré-psicologismo,
sem aquelas extensas descrições do mundo social e das idéias íntimas do
personagem. Isso viria depois, visando justamente aprofundar o modelo que
Diderot usava.
Thomas Mann, em Morte
em Veneza (1912) gasta um capítulo inteiro (o segundo) explicando quem é o
personagem, o que pensa, o que sente, por que é assim, de onde veio, para onde
pretende ir, o que acha do mundo, o que o mundo acha dele... Balzac é capaz de
levar três páginas descrevendo a mobília de um salão.
Diderot escrevia numa época mais leve. O primeiro
parágrafo de Jacques já dá o tom de
desimportância quanto a esse retratismo.
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4587-uma-literatura-ao-res-do-chao.html
Como foi que eles se encontraram? Por acaso, como todo mundo. Como se chamavam? Ora, o que lhe interessa isso? De onde eles vinham? Do lugar mais próximo. Iam para onde? Mas será que alguém sabe para onde vai? Diziam o quê? O amo não dizia nada: e Jacques dizia que seu capitão dizia que tudo que nos acontece de bom e de ruim está escrito nas alturas. (trad. BT)
JACQUESMas meu senhor, me jogar água! Jogar água benta em Jacques! Era muito melhor que mil legiões de demônios se metessem no meu corpo do que beber uma gota dessa coisa, benta ou não-benta. O senhor não percebeu ainda que eu sou hidrófobo?...Ah! hidrófobo? Jacques disse hidrófobo? Não, leitor, não: confesso que a palavra não pertence a ele. Mas diante de uma crítica tão severa como esta, eu o desafio a ler uma cena de comédia, de tragédia, um único diálogo, por mais bem escrito que seja, sem surpreender ali a palavra do autor na boca do personagem. Jacques disse: “O senhor não percebeu ainda que basta a visão da água para me deixar furioso?” E então? dizendo de outra maneira, fui menos verdadeiro e fui mais breve. (p. 350-351)
E você, leitor, fale sem dissimulação, pois como vê estamos num ótimo clima de franqueza: prefere que deixemos de lado essa Hoteleira tão tagarela, tão elegante e prolixa, e voltemos aos namoros de Jacques? Por mim dá no mesmo. Quando a Hoteleira voltar, Jacques o tagarela não precisa de nada mais para retomar seu papel, batendo-lhe a porta na cara e dizendo pelo buraco da fechadura: “Boa noite, senhora, meu amo já pegou no sono, vou me deitar também.” (pág. 156)
Enquanto isto, o Amo continuava avançando, mas eis agora amo e criado separados, e não sei a qual dos dois dar preferência. Se vocês quiserem seguir Jacques, cuidado: a busca da bolsa e do relógio pode se tornar tão longa e complicada que ele demorará muito a se reunir com seu Amo, o único confidente de seus namoros, e neste caso adeus namoros de Jacques. Se, permitindo que ele vá sozinho à procura da bolsa e do relógio, vocês escolherem a companhia do Amo, estarão sendo corteses, mas logo vão se aborrecer; porque não conhecem esse tipo de gente. Têm poucas idéias na cabeça, e quando acontece de dizerem algo sensato é porque se trata ou de reminiscências ou de inspiração. (pág. 47)