Um dia desses vi por aqui na web o anúncio de que na
Inglaterra estava sendo produzida, pela BBC, uma série de TV baseada neste romance de
Agatha Christie, The Pale Horse
(1961), e como era um dos vários que nunca li, achei por bem dar uma olhada.
Não me arrependi. Lamento apenas (como sempre que leio um livro nessas
circunstâncias) não ter lido 20 ou 30 anos atrás.
A magia negra, a feitiçaria e o mundo sobrenatural não
aparecem com frequência na obra de Dame
Agatha, que costuma ser voltada para outro tipo de Oculto: o inconsciente, as
coisas que a gente pensa sem saber que está pensando, as coisas que nos pensam,
nos guiam, nos levam a agir dessa ou daquela maneira. E que às vezes nos
conduzem ao crime.
A expressão “the pale horse” é uma citação do Apocalipse,
celebrizada literariamente num livro de contos de Katherine Anne Porter, Pale Horse, Pale Rider (1939), que não
sei se Dona Agatha leu e guardou a imagem na cabeça. Pode até ter lido: fui
checar agora e vi que o livro de Ms. Porter é ambientado durante a epidemia de influenza que matou 50 milhões de
pessoas no começo do século, e que Agatha certamente acompanhou, já adulta.
Há um eco distante dessa temática neste romance dela, em
que pessoas aleatórias começam a morrer de gripes e pneumonias variadas, em
Londres e arredores. Uma combinação de circunstâncias faz chegar à polícia uma
lista de nomes repassados por uma mulher, em seu leito de morte, para um padre,
que logo em seguida é assassinado.
Os assassinos não conseguem roubar a lista (objetivo do
crime), e a polícia começa a desconfiar que aquelas mortes naturais não eram
tão naturais assim. E o que dizer das pessoas ainda vivas daquela lista? Estão sob ameaça?
O narrador é Mark Easterbrook, um historiador intelectual,
de espírito investigativo, que lembra em alguns momentos os protagonistas dos
romances policiais de Colin Wilson. Ele descobre que um vilarejo com o
interessante nome de Much Deeping abriga uma conspiração que envolve rituais
satânicos, fenômenos mediúnicos, mortes provocadas à distância... Ou será tudo
imaginação?
As histórias sobrenaturais de Agatha estão reunidas em The Hound of Death (1933), doze contos interessantes,
onde o que mais se destaca é o menos sobrenatural de todos, “The Witness for
the Prosecution”, que depois seria transformado numa peça e num filme de
sucesso. Ela se detinha geralmente em temas como premonição, mau olhado, fatalidades
inexplicáveis, clarividência, etc.
The Pale Horse
faz uma citação explícita ao Macbeth,
porque grande parte do seu enredo tem como foco três “bruxas” idosas e
excêntricas que se dedicam a rituais misteriosos.
Por outro lado, e aqui está uma interessante camada nova
de significado, o romance pertence à fase moderna da autora, onde ela se dedica
a comparar os “velhos tempos” com os “novos tempos”; nessa linha, o melhor dos
que li é o Espelho Quebrado (“The
Mirror Crack’d From Side To Side”, 1962). O choque entre gerações e entre modos
de agir, visto pelos olhos de uma mulher já sessentona ou setentona.
Entre os personagens de The Pale Horse a gente encontra tipos tradicionais, como o
milionário colecionador, o pároco interiorano, as vizinhas fofoqueiras e os funcionários
aposentados de tantos outros livros. Mas há também as moças londrinas de saia curta ou de
calças compridas colantes, que bebem nos bares; há empresas de pesquisa de
mercado; e há, perpassando todo o mistério do livro, uma conversa difusa sobre
“energia negativa”, “raios mortais”, “ondas mentais”, “cérebros eletrônicos” e
todo um jargão de pós-guerra, de princípio da era espacial.
O sobrenatural escondido no vilarejo de Much Deeping pode
ser uma força bruta, primitiva, ancestral, talvez a malignidade cega e
primordial que inspirava Arthur Machen e Algernon Blackwood; mas ela pode estar
se manifestando através de aparelhagens elétricas e eletrônicas, e é isso que
deixa Mark Easterbrook (e o Inspetor Lejeune) com a pulga atrás da orelha. E
se, afinal de contas, esses poderes mágicos existirem de fato? E se forem
apenas mais uma força da natureza que até então não conhecíamos, como a energia
atômica?...
Boa parte do romance policial no pós-guerra assume essa
dualidade entre ocultismo e ciência (ou pseudo-ciência), e The Pale Horse talvez seja um dos exemplos onde a autora melhor consegue
se equilibrar no fio de arame da dúvida até a resolução (bastante satisfatória)
nos capítulos finais.
E tão importante quanto isto é a capacidade dela em
descrever os tipos dos vilarejos do interior, seu comportamento, seus valores,
suas manias. E seu mergulho sempre alerta nos porões da maldade, da crueldade e
do sadismo, e do impulso misterioso que leva algumas pessoas à cegueira moral e
ao crime.
Ao comentar as bazófias das bruxas que se dizem capazes
de matar à distância, uma personagem diz:
Como regra geral, pela minha experiência, as pessoas realmente malignas
não vivem se gabando. Conseguem ficar quietas a respeito da própria maldade. É
somente quando seus pecados não são tão graves assim que elas se dedicam a
comentá-los. O pecado é uma coisa tão degradada, tão pequena, tão ignóbil...
Para essas pessoas é terrivelmente necessário fazer com que ele pareça algo
importante e grandioso. (p. 68)
E no final, Easterbrook e o Inspetor Lejeune comentam os
crimes:
-- O que me deixa perplexo, sempre, – [disse o Inspetor] – é pensar
como uma pessoa pode ser tão inteligente e ao mesmo tempo tão estúpida.
-- A gente sempre imagina um grande criminoso – disse eu – como sendo
um personagem imponente e sinistro, uma personificação do Mal.
Lejeune balançou a cabeça.
-- Não, não é bem assim – disse ele. – O Mal não é uma força
sobre-humana, é alguma coisa menos que humana. Um criminoso é alguém que
quer se tornar importante, mas nunca terá a importância com que sonha, porque
será sempre algo menor que um ser humano. (p. 185-186)
Não é uma formulação tão elegante e complexa quanto a da
“banalidade do Mal” de Hannah Arendt, mas é também uma boa descrição da nossa
experiência no dia-a-dia.
(Agatha Christie)