Toda nossa vida intelectual se baseia em “idéias
preconcebidas”. Usar o termo preconceito (que é sinônimo) é perigoso, porque
ele adquiriu uma conotação ofensiva. Querem insultar alguém, tirá-lo do sério?
Digam: “Você é uma pessoa cheia de preconceitos.”
Mas o fato é que somos mesmo. Só que é preciso pegar o
bisturi e sair desdobrando fibra por fibra essa expressão, para saber o que ela
diz de fato. Nenhuma idéia é totalmente preconcebida: só o seria se já
nascêssemos com elas. As idéias se formam na infância, depois uma camada maior
na adolescência, depois outra na casa dos 20 anos (quando estamos na faculdade,
p. ex.), e assim por diante. Somos receptivos, basicamente. Nossa vida é um
aprendizado constante.
Só que a quantidade de informações, conceitos, verdades
abstratas etc. que temos de assimilar aumenta exponencialmente. Um homem de 30
anos sabe que existem no mundo mais coisas do que ele imaginava aos 15. Só que
não dá para ir atrás de tudo, se informar sobre tudo, “ter opinião formada
sobre tudo”.
E mesmo que dê, algum tempo depois vai ser preciso dar
uma revisada, porque as coisas mudam.
Tem uma definição famosa dizendo que política é como uma
nuvem: você olha ela está de um jeito, dois minutos depois você volta a olhar e
ela está completamente diferente. Não é só a política. Tudo, praticamente, é
assim.
Muitos dos nossos valores morais, por exemplo, se formam
na infância, com a lavagem-cerebral-do-Bem promovida pelos nossos pais. Muita
gente convive em paz com isso até o fim da vida, e não há problema algum.
Outros, no entanto, sentem a necessidade de chutar-o-pau-da-barraca e fazer o
contrário do que os pais lhes aconselhavam – e também não há problema, pela
parte que me toca. Cada vida tem um desenho diferente. Boa sorte a todos.
Porque quando falamos em “idéias preconcebidas” estamos
falando na verdade em “idéias que recebemos e nunca mais nos demos ao trabalho
de questionar”. E começamos a construir coisas em cima dessas idéias. Opiniões,
valores, etc etc. E quando um dia alguém as questiona, achamos mais simples
fincar pé e dizer que AQUILO É VERDADE SIM, UMA VERDADE ABSOLUTA do que colocar
em perigo tudo que edificamos naquela areia movediça.
Vou fazer uma lista de coisas que nunca questionei muito,
e que para mim são uma espécie de “verdades estabelecidas”, mera questão de fé,
ou de preconceito:
Dois mais dois é igual a
quatro.
As pirâmides egípcias foram
construídas por máquinas rústicas e a força muscular de escravos.
A Terra é um globo que gira
solto no espaço, em volta do Sol.
Quem escreveu as peças
atribuídas a William Shakespeare foi ele mesmo.
Quem descobriu o Brasil foi
Pedro Álvares Cabral.
Quem matou John Lennon foi
Mark Chapman.
Somente nessa listinha já tem uma mixórdia ininteligível entre
as “verdades indiscutíveis” e os “clichês falsos” que são o arcabouço da nossa
cultura. Não importa. Convivo bem com isso.
“Como assim, quem
descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral?!”
Sei muito bem que antes disso outros navegadores já
tinham percorrido a costa brasileira. E que “descobrir” uma coisa que já
existia é mera arrogância. O que havia aqui não era “brasil” nem nada, era uma
terra já habitada, e que foi invadida por gente com mais logística e armamento
superior.
Calcula-se (as fontes divergem) que o Brasil tinha pelo
menos 1 ou 2 milhões de índios espalhados pelo litoral, e mais do que isso no
interior, enquanto a população de Portugal em 1500 era de um milhão de
habitantes.
Se os índios brasileiros tivessem tido a disposição de
construir balsas no estilo da “Expedição Kon-Tiki”, bem que poderiam ter
descoberto Portugal.
Esses “marcos históricos”, no entanto, se incorporam à
cronologia dos fatos, por mais questionáveis que sejam. Quando um consenso
errado é suficientemente amplo e estabelecido, tem que se levar em conta, o que
não é o mesmo que concordar com ele.
Sabemos que
Jesus Cristo (o Cristo histórico) não nasceu em 25 de dezembro do Ano Zero da
Era Cristã, mas nem por isso vamos ressetar todos os calendários. Mesmo não
sendo verdade, torna-se um parâmetro. Parâmetros são coisas que a gente é
obrigado a usar no dia a dia, não pode parar pra questionar tudo, a toda hora.
Mas deve questionar de vez em quando.
A Terra é esférica e solta no espaço? Eu acho que sim,
mas esse é um parâmetro que deve ser questionado de vez em quando. Quando mais
não seja, para que os defensores da Terra Esférica se vejam forçados a
defendê-la com argumentos mais claros, demonstrações menos refutáveis, pequenas
provas capazes de convencer uma pessoa de boa fé e de inteligência mediana, que
não seja um fanático.
Existem os fanáticos da Terra Plana (que acreditam, sem
refletir muito, numa bizarrice) e existem os fanáticos da Terra Esférica – que
acreditam, sem refletir muito, numa coisa que lhes disseram, que eles nunca
investigaram, e que eles são incapazes de explicar convincentemente até mesmo
aos próprios filhos, se estes chegarem do colégio anunciando que um professor
“provou” que a Terra é plana.
Filhos são uma boa medida para isto, para a nossa
capacidade (ou não) de explicar por que acreditamos no que acreditamos.
Na História, na Geografia, na Astronomia, na Economia, na
Política, na Arte, acreditamos em milhões de coisas que alguma figura-de-autoridade
nos impôs, por bem ou por mal, e que achamos conveniente acreditar. Mas nunca
corremos atrás. Nunca pedimos provas (ou então nos contentamos com as poucas
provas que nos mostraram).
Como leitor de ficção científica, me acostumei desde cedo
à hipótese de que as Pirâmides egípcias foram construídas por extraterrestres
(leiam O Falso Planeta, de Peter
Randa). Achei uma boa hipótese! Extremissimamente improvável, mas mesmo assim
interessante. E eu não saberia contestá-la se não tivesse visto, nos últimos
trinta anos, uma série de demonstrações práticas de como foi possível, sim,
construir aquilo com a tecnologia “rudimentar” da época.
Construímos os prédios das nossas crenças num terreno que
jamais examinamos para saber se ali embaixo tinha infiltração de água, tinha
sumidouro, tinha cemitério indígena. A gente vai construindo às cegas, ao longo
da vida, e quando na idade madura alguém questiona a firmeza do prédio, é mais
fácil defender com unhas e dentes o nosso terreno do que confessar que não
fazemos uma idéia muito clara do que tem ali.