sexta-feira, 26 de junho de 2009

1134) Literatura regional (1.11.2006)


(Machado de Assis)

Uma vez defendi num debate a idéia de que Machado de Assis era um autor regional, pois descrevia apenas a vida das pessoas de sua região, ou seja, da cidade do Rio de Janeiro. De fato: com exceção de alguns contos fantasiosos situados num Oriente exótico, e de O Alienista que transcorre em Itaguaí, a obra de Machado se debruça sobre essa região muito específica. Só então eu percebi o quanto de preconceito as pessoas embutiam no termo “regional”, porque quando eu tento aplicá-lo a Machado a resposta é: “Não. Machado não é regional. Ele é universal”. Até concordo – mas então por que motivo Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz e outros não podem, pela mesma ótica, ser considerados também universais?

Por que usa-se “regional” como antônimo de “universal”? Porque confunde-se “regionalismo” com uma de suas vertentes, uma literatura que eu chamaria de “Ficção Etnográfica” pelo seu esforço (que é elogiável, sob muitos pontos de vista) de registrar aspectos históricos e geográficos da região abordada. Registram-se os modos de produção característicos (agrícolas e pecuários), os usos e costumes, o linguajar, a cultura, as crenças, e aquilo que o socialista Lukács preconizada como “personagens típicos vivendo situações típicas”. Registram-se a flora e a fauna, o artesanato, o folclore. Cada romance é um “vasto painel” onde aquela comunidade pode, inesgotavelmente, inventariar a si própria.

Nem sempre essa literatura tem grande valor literário, mas isto não significa ausência total de valor. Em outro país ou numa época futura, um romance assim será um documento precioso da cultura de um povo. O escritor que se limita a isto, contudo, vai perdendo o foco da universalidade. Preocupado em retratar situações e personagens típicos, ele refreia a própria imaginação e produz apenas personagens e situações indistintos, medianos, meras cópias desbotadas do já-visto e já-sabido.

Para atingir o universal é preciso ir mais fundo, na medula da vida, um núcleo doloroso e feroz que nos é comum a todos. É preciso lidar com personagens que sejam pontos de tensão e de mutação no desenrolar da narrativa, que encarnem um feixe de possibilidades simultâneas, em vez de apenas seguirem o caminho-de-roçado aberto pelos personagens de autores que vieram antes.

O foco exclusivo no detalhismo etnográfico, por mais méritos que tenha, acarreta a perda do Universalismo – o qual, paradoxalmente, só brota das situações raras e dos personagens excepcionais. Preocupado em cobrir a maior extensão possível de terreno temático, o “regionalista” deixa de mergulhar mais fundo e de tocar as jazidas mais universais de significado. E a associação entre regionalismo e ficção rural se dá, sem dúvida, pela deformação profissional de críticos que, só conhecendo o ponto de vista urbano, consideram que a cidade é o epicentro de tudo, e que o resto do mundo se compõe de “regiões” pouco nítidas.

1133) O motorista (31.10.2006)




Eu morava em Salvador, e peguei um ônibus da São Geraldo para vir passar um fim-de-semana em Campina. O ônibus saía da Rodoviária por volta das 4 da tarde. Embarcamos normalmente e seguimos na direção da BR, por dentro do subúrbio. 

A certa altura, achei o trajeto meio diferente. Não sabia o caminho de cor, mas vi lugares que não recordava. Ruas estreitas, pracinhas, uma feira popular... trechos que não eram habituais no trajeto até a rodovia.

Alguns passageiros se entreolhavam e percebi que todo mundo estava achando o mesmo. Daí a pouco o ônibus começou a subir uma comprida ladeira que levava ao alto de uma colina. Já havia um zum-zum-zum de sussurros entre as poltronas. 

Subimos sacolejando, ao chegar no alto o motorista pegou uma estradinha de terra, mais adiante desviou de lado e estacionou embaixo de uma árvore.

Havia bastante mato e algumas casinhas em volta. O motorista puxou o freio de mão, desceu, rodeou o ônibus e atravessou a rua. Do lado esquerdo (onde eu estava sentado) havia uma pequena ladeira com uns degraus de madeira fincados na terra. Lá em cima, uma casinha simpática, recém-pintada, com um terracinho, uma mesa, e aquelas cadeiras de balanço com armação de ferro e fio plástico entrançado. 

Uma mulher, com uma menina no braço, estava à espera. O motorista as beijou, sentou na cadeira com a menina no colo. A mulher foi lá dentro, trouxe uma poncheira cheia de suco amarelo e um copo. O sujeito bebeu com calma, brincou com a menina, conversou com a mulher, depois bebeu outro copo, levantou-se. Devolveu a menina para a mulher, pegou um pacote grande que estava à sua espera junto à parede, despediu-se, voltou para o ônibus, ligou o motor, fez a manobra e rumamos em paz para a BR.

Qualquer pessoa que ouça uma história como essa vai exclamar: “Só na Bahia!” Um estrangeiro dirá: “Só no Brasil!” 

Ambos estarão errados. Coisas assim acontecem em qualquer lugar do mundo, embora eu ache que sejam mais prováveis na Índia ou no México do que na Suíça ou na Áustria. Os adeptos da seriedade a qualquer preço ficarão escandalizados diante de uma tamanha ofensa ao profissionalismo. Um alemão sairia do ônibus direto para o escritório do Procon mais próximo.

E eu pergunto: por quê? O desvio todo não deve ter custado ao ônibus mais do que vinte minutos, que numa viagem de dez ou doze horas, como era na época, são muito fáceis de recuperar sem sobressalto. O motorista certamente não faz aquilo todas as vezes. Fez porque devia ser uma encomenda urgente, num tempo em que não havia Sedex (era por volta de 1979 ou 80), e mandar por transportadora seria caro e demorado. 

E uma prova de que o brasileiro é tranqüilo é o fato de que nenhum dos passageiros implicou com o motorista. No máximo houve um ou outro comentário bem-humorado tipo “Mas olha só que cara folgado” ou “Ei, rapaz, oferece um suco pra gente!”. Achei este episódio uma lição de civilidade (dos passageiros) e de cidadania. Estarei errado?






1132) Da página para a tela (30.10.2006)




Assisti O Processo, filme de David Jones feito em 1993, adaptando o romance de Kafka, com Kyle MacLachlan no papel de Joseph K. Como se sabe, este romance havia sido adaptado em 1963 por Orson Welles, sendo K. interpretado por Anthony Perkins. Quem se interessar, pode pegar os dois filmes em qualquer boa locadora e fazer uma comparação. São filmes que contam a mesma história, com episódios basicamente na mesma ordem, com os mesmos personagens, diálogos muito parecidos, etc. e tal. E no entanto são filmes substancialmente diversos. Pode-se também fazer o teste com o Macbeth do mesmo Orson Welles (1948) e o de Roman Polanski (1971). Mesma história, mesmos personagens, mesmos diálogos (Shakespeare, religiosamente intocado por ambos os diretores). Filmes diferentíssimos.

Não é só uma questão de visual, fotografia, cenários. É uma questão (por exemplo) de como os diálogos são ditos. Lembro-me de uma entrevista de Paulo Autran na TV em que ele recordava uma cena que fez numa peça. Havia uma cena entre um casal, e um diálogo (não lembro o quê) que era extremamente emotivo, intenso, e ele tinha medo que ficasse “over”, exagerado, e estragasse a cena. Aí ele disse que teve a idéia (aprovada pelo diretor) de dizer aquelas longas falas sentado na cama, calçando as meias e os sapatos. Isto deu às frases um contraponto de banalidade, de rotina, de cotidiano-de-casal, que tornou as frases ditas ainda mais pungentes.

O crítico Roger Ebert tem uma frase ótima sobre isto: “Um filme não precisa ser fiel ao livro. Adaptação não é casamento. Refilmagem não é adultério”. Seria terrível se Guerra e Paz ou Grande Sertão: Veredas só pudessem ser adaptados para o cinema uma única vez. Adaptar não é transpor. Adaptar não é transcrever-o-mais-fielmente-possível. Adaptar pode ser várias coisas, porque não existe uma receita universal, existem soluções que cada cineasta, seja ele Welles ou David Jones, acha mais adequada ao seu modo de fazer as coisas.

Para uns, é mais fácil captar e reproduzir a atmosfera psicológica e social de um filme, mesmo desmontando sua estrutura, inventando episódios, deletando personagens, etc., e no fim o filme torna-se quase que um prolongamento do livro, uma extensão, um complemento de cenas que poderiam muito bem estar no livro, poderiam ter sido escritas pelo autor. Para outros, adaptar é preencher as lacunas, colocar em primeiro plano o que no livro estava sem destaque, comentar visualmente o que tinha sido dito em palavras. Mal comparando, é como vários compositores receberem uma mesma letra, e a incumbência de musicá-la, sem alterar uma palavra sequer. Cada um vai fazer aquela letra dizer coisas que estavam latentes e a gente nunca tinha percebido. Dali resultarão canções diferentes – e irmãs. Imagine Guinga, Luiz Tatit, Arnaldo Antunes e Antonio José Madureira recebendo, para musicar, o mesmo soneto de Camões.


1131) O político e o técnico (29.10.2006)




Fulano pagou uma fortuna de imposto numa transação imobiliária qualquer, e depois descobriu que um amigo dele tinha feito a mesmíssima coisa sem pagar um vintém. “Mas como?!” exclamou ele. O amigo explicou que tinha achado o preço caro, aí apelou para o coração dos funcionários, explicou que estava sem grana... enfim, os caras se comoveram, acharam uma brecha na legislação, e ele fez tudo de graça.

Soluções políticas como esta nos revoltam. Afinal, a lei é igual para todos, mas volta e meia ficamos sabemos que a lei foi driblada para favorecer o cunhado de A ou o primo de B. Não me refiro a subornos ou propinas, refiro-me a um simples gesto de simpatia do funcionário para com um cliente que sabe chorar no tom certo. 

Não é desonestidade, repito. Dinheiro algum trocou de mãos. Foi um mero favor, um simples drible-de-corpo nos regulamentos, aquele jogo-de-cintura que orgulhosamente chamamos de jeitinho brasileiro.

Você chega esbaforido ao Banco, com uma conta para pagar, e o Banco fechou há cinco minutos. Desesperado, você explica ao guarda: é a inscrição num Congresso, último dia para pagar, você não tem Internet, não sabe fazer no caixa eletrônico... 

O guarda pega o papel, olha prum lado, pro outro, e diz: “Sinto muito. A ordem que eu tenho é essa. Não pode”. Você vai pra casa revoltado com essa mentalidade técnica. Quem diabo ele pensa que é? Um suíço?

Tecnicamente falando, o guarda está certo, porque um Banco ou uma repartição não podem ser como um restaurante, que anuncia estar aberto “das 14 horas até o último cliente”. Tem que ter uma hora de fechar, e aí fecha. 

Mas... o nosso temperamento se insurge contra essa precisão de relojoaria. Há exceções, ora que diabo! E aí damos graças a Deus quando encontramos um funcionário compreensivo, como eu já encontrei, que pegou meu papel, foi lá dentro, reabriu um guichê, religou uma máquina, processou meu pagamento, e quando eu me desmanchei em agradecimentos, disse apenas: “Da próxima vez chega mais cedo”. Viva o Brasil!

Há dois tipos de comportamento funcional: o técnico e o político. 

O técnico significa cumprir os ideais da Constituição, do Código Penal e legislações complementares. A Lei é cega e surda, e é igual para todos. 

Mas (quando isto nos prejudica) clamamos por uma atitude mais flexível, mais maleável, e é aí que entra a política. Ela consiste na decisão de considerar “cada caso um caso”, enxergar o individual, o pessoal, para além do anonimato da Lei. A Lei desconhece o favor, que é a moeda preferencial da política.

Nenhum dos dois tipos é bom ou mau em si. O comportamento técnico tanto pode ser justo e correto como pode ser cruel e indiferente. O comportamento político tanto pode ser compreensivo e humano como pode ser caminho aberto para a maracutaia e a corrupção. 

Para os dois, amigos, vale a lei (maior e mais sábia) do mel e da farinha. Ficou muito seco? Bota mais mel. Ficou muito molhado? Bota mais farinha.






1130) A burrice artificial (28.10.2006)



Quando se fala em inteligência artificial, uma das reações mais freqüentes das pessoas é de receio. Elas temem que as máquinas se tornem inteligentes demais e acabem tomando conta do mundo. A ficção científica tem uma parcela de culpa por essa mentalidade retrógrada, porque não são poucos os filmes e livros descrevendo mundos futuros em que robôs implacáveis escravizam os seres humanos, ou computadores de dimensões babilônicas controlam os mínimos de detalhes de nossa vidas. Os exemplo são incontáveis: O Exterminador do Futuro, Colossus 1980, THX 1138, Admirável Mundo Novo...

Minha teoria é justamente o contrário desta. A maior ameaça à Humanidade não é o desenvolvimento da inteligência artificial nas máquinas, é a expansão de burrice artificial em nós mesmos. As duas coisas estão ligadas, claro, porque quanto mais ficamos dependentes das máquinas mais o nosso raciocínio fica preguiçoso, nossa vontade atrofiada. Posso detectar sintomas em mim mesmo, naquelas horas em que fico imobilizado na cama, assistindo na TV um programa que detesto, e olhando com angústia o controle remoto lá longe, em cima do aparelho.

Há poucos dias, na Alemanha, um motorista cujo carro tem sistema de navegação autônomo saiu da pista 30 metros antes do cruzamento onde deveria virar à direita e derrubou uma escada e um toalete que havia perto da estrada. Ele alegou que o sistema de navegação avisou: “Vire à direita agora”, e mesmo vendo que ainda não tinha chegado à esquina ele obedeceu, porque o sistema lhe deu uma ordem. Causou um prejuízo de 2 mil euros. Dias antes, em Hamburgo, outro motorista ignorou um sinal de “Em Obras” e preferiu seguir seu sistema de navegação, que o aconselhava a seguir em frente. Por sorte, tudo que fez foi colidir com um monte de areia e encalhar.

O desenvolvimento da inteligência artificial nas máquinas só é perigoso porque não sabemos o que fazer com o tempo livre e a energia extra que essa transferência de trabalho nos proporciona. Em vez de ficarmos mais espertos e mais atentos, imobilizamo-nos como zumbis, desobrigados de pensar e de decidir porque a Máquina decide por nós. Há um conto notável de Isaac Asimov em que ele mostra a perplexidade do Alto Comando Militar no futuro quando descobre um sujeito capaz de fazer contas de cabeça. Perguntam-lhe quanto é 25 vezes 43, e daí a trinta segundos ele responde: 1.075. Os generais puxam suas calculadoras e conferem: está certo. Mas como será possível?!

Nossa mente implora atividade, assim como nosso corpo implora exercício. Por que motivo as pessoas lêem Caras na sala de espera? Não é só para se inteirar sobre o saltitante cotidiano de Danielle Winitts ou de Kelly Key. É para exercitar a mente. Por que fazem palavras cruzadas no avião? Por que jogam joguinhos eletrônicos no metrô? Porque nossa mente suplica por utilização, aterroriza-se à simples possibilidade da inação e do ócio. Mexei-vos, galera! Vamos praticar Sudoku!